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Aos Excelentíssimos Senhores

Iepé-Macapá-AP
22 de Mai de 2003

Eduardo Aguiar de Almeida - Presidente da Fundação Nacional do Índio / FUNAI
Mouzar Borges - Administrador Executivo Regional da FUNAI - Macapá,AP.

c/c. para
Márcio Thomaz Bastos - Ministro da Justiça
José Grazziano - Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome - Programa Fome Zero

Prezados Senhores,
Vimos por meio desta, participar nossa preocupação com a repentina introdução do Programa Fome Zero entre os Wajãpi do Amapá, no decorrer da última semana, aproveitando a oportunidade para apresentar alguns subsídios para a revisão e o refinamento dos critérios que parecem ter justificado a distribuição de alimentos e a implantação de ações assistenciais vinculadas ao referido Programa, nas aldeias desse grupo indígena.
O primeiro critério, sem dúvida, diz respeito à participação da comunidade na implementação de intervenções assistenciais como essa. Tudo indica que, no caso em pauta, não houve consulta nem discussão mais detalhada das ações propostas, como julgamos indispensável. De fato, a notícia do benefício destinado aos Wajãpi chegou de surpresa. No último dia 16 de maio, em Macapá, recebemos a informação de que um caminhão estava entrando, naquele mesmo dia, na Terra Indígena, carregando as doações do Fome Zero. A notícia surpreendeu a todos. Os representantes da diretoria do Conselho das Aldeias Wajãpi / Apina e os jovens que realizam estágio em gestão na sede do Conselho em Macapá reagiram de forma irritada, por não terem sido consultados ou nem sequer informados. Na área, os agentes de saúde indígenas, então reunidos para um curso de formação na sede do Posto - em Aramirã - também chocaram-se com a notícia da chegada do caminhão (que ficou atolado na estrada) e com o teor das intervenções que não tinham sido discutidas nem com eles nem com os técnicos responsáveis pelo Programa de Saúde Wajãpi (desenvolvido através de convênio entre o Apina e a FUNASA). No mesmo dia, procuramos a ADR/Funai e fomos informados pelo Sr. Mouzar Borges, administrador do órgão em Macapá, que além desse caminhão, outros deveriam entrar na área, levando mais itens alimentares e materiais para construção de galinheiros e de casas de farinha. Quando indagamos a origem da iniciativa, o Sr. Mouzar Borges nos informou que teria sido proposta pelo Departamento de Assistência da Funai em Brasília e que a remessa de alimentos e materiais de construção para galinheiros fora aceita "pelos Wajãpi", ou seja, pelo que se pôde apurar até o momento, por alguns indivíduos. Tudo indica que, na pressa de realizar uma ação assistencial, não se elaborou nenhum procedimento para realizar um acerto formal com as organizações representativas dos Wajãpi.Para tentar entender o que estava acontecendo, os diretores e estagiários do Apina lembraram que, há algum tempo, haviam solicitado verbalmente à ADR Macapá a continuidade do apoio que esta vinha dando há mais de um ano, na forma de ferramentas e sobretudo de munição. Como os agentes de saúde que estavam no posto, os diretores do Apina surpreenderam-se não apenas por não terem sido consultados, mas também pela iniciativa de remessa de alimentos, que eles imediatamente criticaram.
Efetivamente, o segundo critério a ser considerado para justificar uma intervenção como a da distribuição de alimentos diz respeito à comprovação da existência de um quadro de "fome" que, como sabemos é quantitativa e qualitativamente variável. No caso em pauta, a necessidade do benefício não se coloca, pois não existe fome, nem insegurança alimentar entre os Wajãpi. Trata-se de um grupo hoje com 610 pessoas, distribuídas entre mais de 32 assentamentos, dispersos em mais de 600.000 ha de terra, rica em recursos faunísticos e que só apresenta desequilíbrios ambientais em algumas faixas. Os Wajãpi são exímios agricultores e a produção de suas roças, além de diversificada, permite-lhes destinar excedentes à atividades relevantes em sua vida social, como rituais e encontros intercomunitários. A extensão de sua terra e as formas de ocupação praticadas pela maior parte dos grupos locais - com acentuada mobilidade entre aldeias centrais e aldeias secundárias - lhes garante caça em quantidade até o momento suficiente, além de uma grande diversidade de produtos extrativistas. A equipe do Programa de Saúde Wajãpi, que atua na área realizou no corrente ano, um levantamento que indica não existir desnutrição entre os Wajãpi, notando ao contrário a riqueza em proteínas e a diversidade alimentar. Esse aspecto, já documentado em relatórios parciais do coordenador do PSW, enfermeiro Jaime Louzada, será ampliado no relatório anual, que apresentará resultados do levantamento realizado em todas as aldeias. (ver, em anexo, alguns pontos sobre o assunto)
Um terceiro critério, que nos parece o mais importante e deve ser cuidadosamente dimensionado, diz respeito às conseqüências de ações assistencialistas: como a distribuição aleatória de alimentos ou a implementação de atividades econômicas exógenas e impactantes socialmente irão representar nas relações internas às comunidades locais e na complexa relação que este povo mantém com seus ambientes.
Os Wajãpi já vem sofrendo, há décadas, os impactos de iniciativas assistencialistas que tentaram reuni-los em torno de postos, e que subseqüentemente procuraram compensar a perda de qualidade de vida que a sedentarização representa. Todas essas experiências têm sido amplamente discutidas com os representantes da totalidade dos grupos/comunidades locais, em inúmeras oportunidades, nos últimos anos. Assessores do Programa Wajãpi disponibilizaram textos consolidando as reflexões sobre o processo inicial de centralização e atual descentralização das aldeias. De fato, há pelo menos dez anos, os Wajãpi esforçam-se para retomar seu padrão de ocupação dispersa no território, que lhes garante qualidade de vida, ao mesmo tempo viabiliza um efetivo controle das invasões, hoje inexistentes nos limites de sua terra. Para tanto, em parceria conosco (e, até o ano passado, através de contratos firmados com o Centro de Trabalho Indigenista / CTI), os Wajãpi desenvolveram trabalhos de reaviventação dos limites que eles mesmos demarcaram em 1996, de implantação de novas aldeias e roças em zonas distantes dos postos, assim como de participação de um diagnóstico etno-ambiental que resultou num importante consenso a respeito da reordenação dos procedimentos assistenciais a serem adotados, para garantir o fortalecimento de seu modo de vida, sustentável tanto em termos sociais quanto ambientais. Esses trabalhos receberam apoio do PPTAL / Funai e do Fundo Nacional do Meio Ambiente. O projeto "Apoio à descentralização das aldeias Wajãpi", aprovado pelo PDPI/MMA, deverá consolidar essa experiência a partir de meados deste ano. Estudos antropológicos estão disponíveis para demonstrar que o empenho da grande maioria das famílias wajãpi em garantir a continuidade de sua autonomia alimentar está vinculado à consciência e interesse em valorizar padrões culturais embasados em conhecimentos e práticas de manejo adequadas ao ambiente em que vivem, modos de produção e de distribuição que até o momento permitem a qualquer visitante verificar que eles vivem "em abundância". Assim sendo, questionamos a distribuição de arroz, café, açúcar e outros produtos industrializados, quando as refeições indígenas são preparadas a partir de 23 tipos de mandioca brava, de variadas espécies de milho, de banana, cará, batatas doce, de carne das mais variadas espécies de aves, mamíferos e peixes. Açúcar, refrigerantes e bolachas são, claro, consumidos episodicamente pelas famílias que dispõem de alguns recursos monetários e que, incidentalmente, adquirem esses gêneros. Experimentar "a comida dos brancos" é certamente algo que interessa a todos os Wajãpi, atraídos especialmente pela facilidade de obtenção desses alimentos, especialmente quando são dados. Mas experimentos não são necessidades, nem demandas.
Um quinto critério, decorrente do exposto acima, é, portanto, indagar se a ação assistencial proposta vem ao encontro da sustentabilidade do modo de vida e das formas de organização social da população indígena beneficiada, pois entendemos que tal sustentabilidade não pode ser medida apenas em termos de consumo alimentar, devendo considerar fatores territoriais, econômicos e sócio-políticos mais amplos.
Nesse sentido, preocupa-nos sobremaneira a intenção de reativar, mais uma vez, a criação de galinhas nas aldeias dos Wajãpi. Como mencionado, uma das principais características do modo de vida desse povo é a mobilidade das famílias entre vários assentamentos onde possuem roças e trilhas de caça, exploradas conforme seu próprio calendário. A ADR Funai já tem comprovado, em outros experimentos desse tipo (inclusive com peixes tilápias) que os Wajãpi preferiram consumir rapidamente os animais, ao invés de criá-los, diante da dificuldade de adequar a necessidade de permanência nas aldeias onde foram construídos os viveiros/galinheiros e seu interesse em circular pela área, para caçar, pescar e cuidar de suas roças.
Da mesma forma, experimentos com projetos "agrícolas" - que tiveram início, há 20 anos, com as tentativas de cultivo de milho híbrido, arroz, etc... - já mostraram seu fracasso e seu impacto negativo no sofisticado sistema agrícola dos Wajãpi. Lamentamos, particularmente que, mais uma vez, as mulheres Wajãpi - tradicionalmente e até hoje responsáveis pela produção e pelo processamento dos produtos de suas roças - tenham que enfrentar enormes complicações em seu ritmo de trabalho, decorrentes da proposta de incentivar a fabricação de farinha de mandioca para comercialização, pois elas terão que trabalhar além de seu já intenso ritmo de atividades para alimentar as "casas de farinha" que se pretende implantar em algumas aldeias - provavelmente, as situadas na beira da estrada. Quanto aos homens, ao invés de aperfeiçoar sua produção de artesanato para venda, uma alternativa que vem se consolidando e é gerida pelos próprios Wajãpi, através do "fundo de artesanato do Apina", irão rapidamente constatar que a venda de farinha não suporta a concorrência de seus vizinhos, os colonos da estrada Perimetral, que vivem mais próximos dos centros urbanos e, mesmo assim, enfrentam enormes dificuldades de escoamento desse produto. Implantar casas de farinha para incentivar a produção de farinha de mandioca destinada à comercialização é, portanto, um erro grave, tanto em termos de expectativa de geração de renda, como, e sobretudo, em termos dos desajustes no sutil equilíbrio da organização da produção e distribuição agrícola praticada pelos Wajãpi.
Finalmente, como sexto critério, sugerimos que o Programa Fome Zero considere a pertinência das ações propostas em termos regionais. Todos conhecem a precária situação em que vivem a maior parte dos colonos instalados nas margens da Perimetal Norte, rodovia que dá acesso à Terra Wajãpi. Esses colonos, em mais de uma oportunidade, demonstraram sua revolta com o descompasso entre os apoios alocados aos índios e a precariedade das ações a eles destinadas. O benefício alocado pelo Programa Fome Zero aos Wajãpi irá, certamente, consolidar esta imagem negativa e deverá realimentar tensões já existentes. Poderão inclusive ressurgir campanhas latentes na região, que criticam a extensão das terras destinadas ao uso indígena, assim como todo um leque de críticas preconceituosas a respeito da "preguiça" dos índios. Lamentamos sobretudo que, nesse contexto, os Wajãpi tenham que enfrentar esse desgaste de sua imagem em função de ações assistencialistas que eles não solicitaram.Enquanto assessores dos Wajãpi, responsáveis pela condução de programas de educação escolar e ambiental, assim como pelo apoio a iniciativas de controle territorial e ambiental implementadas na área de acordo com demandas diretas das comunidades, colocamo-nos à disposição do Programa Fome Zero e da Funai para contribuir na adequação de ações futuras à realidade desse grupo indígena. As atividades e os procedimentos adotados para fortalecer o modo de vida sustentável dos Wajãpi estão documentadas em relatórios disponíveis nas instituições com as quais o Programa Wajãpi mantém parceria, em particular o PPTAL/Funai e o FNMA/MMA, além da FUNASA.
Sem mais, colocamo-nos à disposição para quaisquer informações que se fizerem necessárias.
Atenciosamente,

Programa Wajãpi

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