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Ao ser reaquecida por Brasília.

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: Lúcio Flávio Pinto
09 de Out de 2001

Belo Monte arrasta consigo uma fauna acompanhante incômoda, o dano ambiental e o prejuízo antropológico

Pela primeira vez um empreendimento elétrico é declarado de interesse estratégico para o país. Desde 17 de setembro essa posição inédita é ocupada pela hidrelétrica de Belo Monte, reconhecida em resolução do presidente do Conselho Nacional de Política Energética, José Jorge de Vasconcelos Lima, como estratégica "no planejamento de expansão da hidreletricidade até o ano 2010". Se depender do governo federal, a usina começará a ser construída no próximo ano no rio Xingu, no Pará. Ela está sendo projetada para se tornar a quarta maior hidrelétrica do mundo e a primeira completamente nacional, com 11 mil megawatts de potência, o equivalente a 15% da atual capacidade de geração energética brasileira. Incluindo o sistema associado de transmissão, o custo previsto da obra é equivalente a 6,5 bilhões de dólares (mais de 16 bilhões de reais ao câmbio de hoje).
Ao reconhecer o interesse estratégico da usina, o presidente do CNPE propôs que fosse autorizada a continuidade de todos os estudos de viabilidade econômico-financeira, ambiental e de engenharia do empreendimento. A Eletronorte, responsável por esses trabalhos, deverá entregar até o final do mês, antes do prazo final definido na resolução do Conselho, de 17 de dezembro, quase todos os documentos necessários para permitir a outra agência estatal, a Aneel, lançar a concorrência pública. Mas não o relatório de impacto ambiental, suspenso pela justiça federal em atendimento a uma ação civil pública proposta pela Procuradoria da República, em função de irregularidades no contrato assinado com a executora dos estudos, uma fundação de pesquisa da Universidade Federal do Pará, a Fadesp.
O governo não ignora que Belo Monte é uma obra polêmica. Ao conferir-lhe um status especial, porém, indica sua disposição de executá-la de qualquer maneira, num momento em que o balanço energético do país dá sinais de desequilíbrio. Para dispensar a hidrelétrica, seria preciso construir usinas térmicas a gás natural que consumiriam 42 milhões de metros cúbicos por dia. Essa demanda exigiria dobrar a oferta atual de gás do país. Ou então recorrer a oito usinas nucleares iguais a Angra II.
A importância estratégica de Belo Monte decorre das vantagens que ela irá incorporar ao sistema interligado nacional. Como as necessidades de energia internas ao Pará são consideradas mínimas, Belo Monte poderia transferir quase toda a energia gerada no primeiro semestre do ano, permitindo às usinas do Nordeste e do Sudeste armazenar nesse período água em seus reservatórios para funcionar a plena carga no período seco do ano.
Além disso, como os cálculos da Eletronorte garantem que o custo da energia na hidrelétrica do Xingu será baixo, Belo Monte permitirá ao governo postergar a implantação de empreendimentos de custos mais elevados previstos para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Combinando esses atrativos, a nova hidrelétrica reduziria o risco de déficit no sistema nos próximos anos.
Os técnicos da Eletronorte não economizam entusiasmo. Eles dizem que Xingó, no Nordeste, é o único aproveitamento energético melhor do que o de Belo Monte no Brasil. Querem começar o mais cedo possível a obra para que o primeiro dos 20 grandes geradores a serem instalados na usina comece a operar em março de 2008. A cada três ou quatro meses uma nova máquina entrará em funcionamento, com energia gerada suficiente para atender a mais da metade da população de Belém, com 1,2 milhão de habitantes, nos piques de consumo da capital paraense, a 10ª mais populosa do país.
Índia de facão
A largada podia ter sido dada em 1989, quando o projeto de Belo Monte entrou pela primeira vez na agenda das decisões. Mas nesse ano a Eletronorte perdeu a batalha da opinião pública para índios, ambientalistas, militantes políticos e até mesmo banqueiros internacionais, assustados com o perfil negativo do complexo hidrelétrico que a estatal havia concebido. A usina teria dois enormes reservatórios, que inundariam quase 7.500 quilômetros quadrados de floresta, formando o maior lago artificial do planeta, e afetando a vida de algumas comunidades indígenas. Com o apoio de muita gente, os caiapós organizaram o I Encontro dos Povos Indígenas. Atraindo nomes famosos, o encontro colocou frente à frente nas ruas de Altamira, que não ficavam nada a dever ao décor de faroeste americano made in Hollywood, opositores e defensores da obra. O momento mais tenso foi quando a índia Tuíra esfregou um facão no rosto do técnico José Antônio Muniz Lopes, que subiu de posto desde então e agora preside a Eletronorte. O flagrante correu mundo, disseminando a má fama da mega-usina. Ela foi colocada para hibernar.
Ao ser reaquecida agora, como uma resposta sonora de Brasília à perspectiva de desequilíbrio na matriz energética nacional, Belo Monte arrasta consigo essa fauna acompanhante incômoda, o dano ambiental e o prejuízo antropológico, que tinha levado instituições multilaterais, como o Banco Mundial, a retirar o financiamento de grandes hidrelétricas na Amazônia do seu portfólio de negócios. Os debates readquiram o tom aceso das campanhas e até o assassinato de um dos líderes desse movimento em Altamira, a principal cidade da região de influência direta da obra, foi colocado no caldeirão da controvérsia, que está aquecendo.
Ciente desse fato, a Eletronorte desencadeou uma ofensiva para não perder de novo a guerra da opinião pública e garantir a implantação da primeira hidrelétrica reconhecida formalmente como estratégica no Brasil. Normalmente avessa à curiosidade pública e hostil nos entreveros, a empresa se abriu para atender às consultas e se antecipar aos críticos com informações, atendendo-os conforme as regras do figurino de relações públicas.
Mas não ficou restrita aos salamaleques protocolares. A ênfase maior da empresa está sendo dada ao capítulo da inserção regional do empreendimento. Essa preocupação inexistia quando Tucuruí, a única grande usina operada pela empresa (e a segunda maior do país no momento), foi iniciada, em 1975. No final da obra, em 1984, apareceu como tintura complementar, mais para dourar a pílula, que já estava praticamente pronta. Agora será um dos elementos fundamentais do discurso, pró e contra, exatamente porque os grandes projetos se consolidaram na Amazônia como enclaves clássicos, de pouco ou nenhum efeito local, destinados a se multiplicar economicamente no mercado comprador da matéria-prima ou insumo básico, não no sítio de produção.
Não há dúvida alguma que Belo Monte será um providencial desafogo às dificuldades de suprimento energético que a parte mais antiga e mais desenvolvida do país já está enfrentando (e deverá se defrontar no horizonte do planejamento energético, que vai até 2010), qualquer que seja o custo de produzir e levar essa enorme quantidade de energia por uma distância de três mil quilômetros, da fronteira amazônica até os grandes centros consumidores. Mas e para a Amazônia, Belo Monte será um novo cavalo de Tróia instalado na jungle, no ainda relativamente intocado - e belo - vale do rio Xingu, cuja bacia de drenagem se espraia por mais de 7% do território brasileiro?
O projeto de inserção regional montado pela Eletronorte para seu novo paquiderme de megawatts é muito mais sofisticado do que o arranjo da década de 80. A empresa está mais bem preparada para o confronto de idéias (e não só de idéias, naturalmente, como esses momentos de choque acabam se tornando). Resta verificar outros dois componentes da equação de Belo Monte: o significado real da obra, se de fato é um aprimoramento na abordagem ecológica, social, de engenharia e social de uma hidrelétrica construída na Amazônia, e o preparo dos que ainda acham que deixar para depois, reduzir o tamanho e alterar a concepção desses projetos é o melhor que se pode fazer quando a intenção é usar inteligentemente os recursos naturais dessa vasta e complexa região.
Se Belo Monte já é de importância estratégica para o governo, a tarefa, agora, é verificar se pode ser também estratégica para a sociedade - e se pelos mesmos motivos.

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