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Anedotas do destino

O Globo, Opinião, p.19
Autor: DUNLEY, Glaucia
29 de Nov de 2012

Anedotas do destino

Glaucia Dunley

No artigo "O que ensinam as tragédias", que O GLOBO publicou em fevereiro, procurei trazer à tona o que ameaçava submergir em nossa fraca memória: a situação inalterada do depois da tragédia na Região Serrana em janeiro de 2011.
Este cenário que permanece destruído, com seus escombros, com a falta de obras de contenção nas encostas e de construção de moradias, relembra pesadamente as perdas materiais e humanas ocorridas na época.
No artigo, referia-me a alguns fatos que seriam verdadeiras anedotas, caso o contexto não fosse trágico, e que fariam rir a Natureza, sempre magna em seu destino indomável, diante de tanto abandono, corrupção e incompetência durante estes 19 meses em que nada foi feito, de fato, em favor das cidades atingidas e de suas populações.
Logo a seguir à tragédia, a Defesa Civil ofereceu escolas, igrejas e outras construções muitas vezes situadas em lugares de risco como locais capazes de receber "desalojados e desabrigados", com suas patéticas sirenes que não levam alugar algum, uma vez que as pessoas viveram o dilema de saber-se em risco e ao mesmo tempo temer abandonar seus lares destruídos, por falta de abrigo confiável.
Tudo permanece igual. Ou pior, com as obras inacabadas das chuvas de 2007, sendo que algumas das poucas obras de contenção de encostas feitas em Friburgo depois de janeiro de 2011 desabaram com as chuvas de algumas semanas atrás, causando soterramentos com mortes, espalhando pedregulhos novos em meio aos antigos, verdadeiros meteoros que povoam lugares ermos, pois que tiveram seus núcleos de sociabilidade destruídos em 2011. Este é bem o entorno da Escola Municipal Alberto Meyer, onde se soterra desde então, pelo medo, as expectativas de futuro, a vivacidade das crianças continuamente expostas à lembrança do acontecido e do que pode vir. E já está vindo.
Novembro é mês de indicação de novos secretários municipais pelo prefeito de Nova Friburgo, cidade que tem sua história política manchada pela forte suspeita de desvio de verbas da penúltima gestão, incompetência e descaso diante do enfrentamento do terrível. Paradoxalmente, a única indicação tida como certa até agora é a do secretário municipal da Defesa Civil! O que me leva a perguntar como uma escola como a Alberto Meyer, que jaz de pé em meio à destruição e aos meteoros, pode ter na sua porta de entrada a inscrição: "Ponto de apoio para chuvas fortes." Escrevo isso porque vi, fotografei e vivo semanalmente, há mais de dois meses, o abalo permanente, o medo disfarçado das crianças que só é exposto quando se pergunta diretamente sobre as últimas chuvas. Como foi o caso, durante um dos encontros de "Sobrevivências - Literatura na adversidade" (Letras UFRJ/Faperj), quando uma das participantes, uma menina de 13 anos, disse que durante o último estado de emergência soou a sirene da escola, chamando para o abrigo, mas que ninguém foi por medo, por falta de confiança no que era oferecido como única alternativa. Ela bem o sabia, é frágil e inadequado.
Em conversas via internet com o secretário municipal de Educação, Ricardo Lengruber, foime dito que as escolas municipais têm uma verba federal para passeios, compra de livros etc.
Por que não dispõem de verba federal, estadual e municipal para retirar de vez o rastro de morte presente até hoje, lembrando sem cessar o que aconteceu e sugerindo a repetição da catástrofe? Por que nada foi feito em termos de reconstrução, nem um grande abrigo com estrutura para proteger e alojar com decência os futuros desabrigados das constantes intempéries que afetam essa região, sem ter que destituir uma escola de sua função específica, com os riscos que isso comporta?

Glaucia Dunley é psicanalista

O Globo, 29/11/2012, Opinião, p. 19

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