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A Amazônia será ocupada

Veja, Entrevista, p. 11, 14-15
Autor: MCGRATH, David
12 de Nov de 2003

A Amazônia será ocupada
Especialista em estudos sobre a ação do homem na floresta diz que o desmatamento é um processo inevitável

Entrevista: David McGrath

Leonardo Coutinho

Pesquisador associado do Woods Hole Research Center, dos Estados Unidos, e professor do curso de doutorado do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, o geógrafo David Gibbs McGrath se recusa a participar do coro preservacionista que imagina congelar a Floresta Amazônica em seu estado atual, por questão de realismo. Segundo McGrath, a ocupação da floresta é decorrência da vida econômica. Sua tese central é que, além de estabelecerem reservas e áreas de proteção para os índios, as autoridades devem disciplinar as atividades que inapelavelmente se estabelecerão em volta desses espaços. Isso inclui a convivência com a mineração, a pecuária e a agricultura. "Como o desmatamento é inevitável, deve-se agir para que ele não leve à destruição também dos 26% de floresta que se podem encaixar nas reservas", diz McGrath. O geógrafo de 51 anos conhece a região desde a adolescência, quando a visitava na companhia do pai, um diplomata. Suas pesquisas foram iniciadas há três décadas, após a conclusão da graduação na Universidade Harvard. Pós-doutorado pela Universidade de Wisconsin-Madison, McGrath tornou-se referência em estudos sobre a ação do homem no ambiente amazônico. Eis a entrevista que concedeu a VEJA.

Veja - O senhor é a favor do desmatamento?

McGrath - Estou acompanhando esse processo no Brasil desde o início da década de 70. Não se trata de ser a favor do desmatamento, mas de ser realista. Nesse período, o discurso, a preocupação e o problema continuam praticamente os mesmos. Muitas medidas foram tomadas na tentativa de evitar a devastação, mas o avanço do desmatamento continuou e está aumentando. Uma vez fiz uma comparação da evolução anual do produto interno bruto com a taxa anual de desmatamento. Encontrei duas curvas quase iguais. Isso indica que a ocupação da Amazônia está intimamente ligada ao aumento da população e ao crescimento da economia brasileira. Por isso, a maneira mais eficaz de reduzir de verdade o aumento do desmatamento seria fazer como Fernando Collor de Mello: confiscar todo o capital e jogar a economia numa recessão brutal. O que é impensável.

Veja - Essa ocupação é necessária?

McGrath - Nem cabe discutir se é necessária ou não. Eu digo que é inevitável. Trata-se de um processo estrutural, demográfico e econômico de ocupação do território amazônico. Mais do que concentrar esforços na redução do desmatamento, o governo e as organizações não-governamentais deveriam se preocupar em ordenar esse processo. Isso me lembra a Guerra do Vietnã. Toda semana, o governo anunciava que o número de baixas norte-vietnamitas era maior que o de baixas americanas. Toda semana, havia esse saldo, positivo para os Estados Unidos. E daí? O país perdeu a guerra. Está acontecendo algo semelhante na Amazônia. Enquanto se preocupam apenas em frear a taxa de desmatamento, acabam se esquecendo de olhar para a qualidade das paisagens que surgem depois da devastação. Acaba-se perdendo duas vezes. Primeiro, perde-se a floresta. Depois, perde-se a oportunidade de aproveitar o capital natural da mata para criar uma economia regional produtiva e sustentável.

Veja - Criar reservas, como vem sendo feito, não é o caminho para a preservação da Amazônia?

McGrath - Não. Dentro do movimento ambientalista, há mesmo uma corrente que trabalha com a idéia fixa de só criar áreas de proteção. Esse grupo parte do princípio de que o que está cercado está protegido. Mas isso é um engano. Por mais que haja reservas, elas vão cobrir, no máximo, 10% do território da Amazônia. Consideradas as terras indígenas, esse número sobe para 26%. Mas essa é uma garantia que só existe no papel. Além disso, a integridade dessas reservas vai depender do que acontecer na Amazônia. O futuro da floresta depende também do que ocorre do lado de fora das reservas, e não apenas dentro de seus limites, como pensam muitas pessoas.

Veja - Por quê?

McGrath - As pesquisas mostram que o clima úmido de boa parte da região depende da interação com a cobertura florestal. E não serão esses 26% protegidos que garantirão a estabilidade das condições climáticas. Provavelmente, isso depende de uma cobertura florestal muito mais extensa. Outra questão é a manutenção da biodiversidade, da variedade da vida. Se simplesmente se ignoram as áreas entre as reservas, permitindo que debilitem seus processos ecológicos, o número de espécies nessas ilhas verdes sofrerá constante redução. A tendência atual de criar corredores interligando reservas atende parte do problema, mas não é a solução. Para piorar, com uma Amazônia mais seca e vulnerável aos incêndios, não vai ser nada fácil garantir que a mata protegida continuará intacta. Atribuir às reservas o papel central na proteção do ecossistema amazônico é, no mínimo, ignorância dos processos que formam aquela paisagem.

Veja - O esforço de criar reservas na Amazônia é inútil, então?

McGrath - Não. As reservas são importantes, mas é preciso pensar na função de uma área de preservação. Em geral, elas são criadas para isolar pedaços da floresta do que acontece a seu redor. Em vez de pensar as reservas como fortalezas isoladas no meio da devastação, devemos pensá-las como elemento central de uma estratégia de gestão da paisagem. Para conservar a biodiversidade, uma abordagem integrada, em que a prioridade não seja só a qualidade ambiental, mas também a social e econômica, será mais eficaz que uma abordagem baseada apenas em reservas.

Veja - Mas como controlar as áreas fora das reservas?

McGrath - Esse é o grande desafio. Muitos ambientalistas priorizam as reservas exatamente por serem mais fáceis de fazer e administrar. Mas o Brasil está mudando. Nos últimos quinze anos, mudou a capacidade do governo de controlar efetivamente o que está acontecendo na paisagem. As instituições estão mais fortes, a legislação ambiental é mais eficaz, a vontade política é maior e a tecnologia de monitoramento está cada vez mais sofisticada e difundida. Mas é preciso entender que esse controle não deve ser feito para evitar a ocupação, e sim para garantir que ela ocorra respeitando a legislação e mantendo o equilíbrio ecológico regional. Fala-se de desmatamento na Amazônia como se fosse um problema gerado por atividades vistas como anomalias. Não é. O desmatamento na Amazônia é a fase mais recente de um processo que começou 500 anos atrás, quando os portugueses chegaram ao Brasil. Esse processo já resultou na transformação de 93% da segunda maior floresta do país, a Mata Atlântica. Temos de entender o desmatamento na Amazônia nesse contexto histórico como um processo inexorável, resultado da ocupação do território brasileiro.

Veja - Que atividades seriam essas? É possível que mineração e pecuária, por exemplo, convivam com a floresta?

McGrath - A questão central é como essas atividades são desenvolvidas. A legislação permite o desmatamento de apenas 20% de uma propriedade e exige a preservação da mata ciliar. Se a lei for respeitada e houver fiscalização adequada, é possível, sim. O mesmo vale para a mineração, embora a questão seja mais complicada nos detalhes. Depende do tipo de minério, das características da jazida e da tecnologia de extração e do beneficiamento utilizados. E também do investimento na recuperação das áreas de onde o minério foi retirado. Existem atividades como o garimpo, na qual não há como evitar impactos ambientais bastante sérios. Essas precisam de restrições e fiscalização. Tudo depende de uma presença efetiva das agências governamentais responsáveis pela fiscalização. Como sempre dizem, a legislação brasileira é uma das mais avançadas do mundo: o grande problema sempre foi e continua sendo a implementação. Todo o território brasileiro é protegido pela legislação ambiental, e essa legislação restringe bastante o que um proprietário pode fazer em sua propriedade. Muitos diriam que restringe até demais. Embora necessitando de ajustes, existe esse aparato legal bem definido para ordenar a ocupação e o uso do solo nas áreas fora de reservas de forma consistente com a manutenção dos processos ecológicos fundamentais.

Veja - As ONGs algum dia concordarão com isso?

McGrath - O movimento ambientalista está começando a entender a necessidade de participar de um debate sobre o futuro da Amazônia. Não falo de troca de teorias, mas da apresentação de soluções concretas para questões reais e inadiáveis, como onde é melhor construir uma barragem ou abrir uma estrada. Algumas hidrelétricas são desnecessárias na Amazônia, outras são indiscutivelmente importantes. Então, quais são as aceitáveis, qual será a forma de implantá-las com menores danos? No passado, talvez fosse viável a estratégia de tentar barrar qualquer obra de infra-estrutura, programa de colonização e projeto de exploração dos recursos naturais. Hoje a situação é outra.

Veja - O futuro da Amazônia, então, é o progresso?

McGrath - Estamos em um processo aparentemente irreversível. Os ambientalistas gastaram boa parte da década de 90 falando apenas da necessidade de preservar e reverter o desmatamento e frear a taxa de desmatamento, e não adiantou nada. Perdemos um tempo que poderíamos ter usado para pensar o desenvolvimento sustentável da região.
Veja - O senhor perdeu tempo?

McGrath - Nunca defendi isso. Não sou preservacionista. Aliás, vivo uma contradição pessoal. Eu sou fascinado pela Amazônia justamente do jeito que está, e nisso incluo a população e a economia tradicional. Pessoalmente, eu não gostaria que o desenvolvimento chegasse à Amazônia. Mas preciso separar meu romantismo do século XIX da realidade. Como pesquisador, devo reconhecer que não dá para congelar a região no tempo. É minha responsabilidade social e moral dizer isso e ajudar a sociedade a lidar com essa realidade. O avanço da soja na região de Santarém, onde trabalho, no coração da Amazônia, é um indício do poder imenso por trás da ocupação da Amazônia. Não devemos nos iludir quanto a nossa capacidade de simplesmente barrar esse processo.

Veja - A expansão da cultura de soja é a nova ameaça para a Amazônia?

McGrath - É um caso complexo. Não está constatado que o desmatamento na Amazônia seja resultado direto da expansão da soja. Em geral, a preferência dos produtores é para as áreas já desmatadas. Mas a soja é um elemento bastante interessante no cenário atual. Utiliza o plantio direto e ocupa apenas áreas planas, minimizando a erosão; não usa fogo, como a pecuária e outras atividades agrícolas, reduzindo o risco de incêndios florestais. Nesse sentido, a soja não traz algumas das conseqüências ambientais mais graves da ocupação da Amazônia.

Veja - O senhor está dizendo que a soja pode fazer bem para a floresta?

McGrath - É muito cedo para ter uma opinião definitiva. Muito depende do comportamento dos produtores de soja. Existem indícios de que a resposta pode ser sim, pelo menos no que se refere ao modo de ocupação, que é mais civilizado. A dinâmica social da soja é muito diferente da expansão da pecuária. A violência é bem menos comum que no caso de madeireiros e grileiros, que já resultou em centenas de mortes e agressões contra colonos e posseiros. Os produtores de soja são uma classe empresarial organizada, formal e avessa às práticas de violência que marcaram a ocupação da Amazônia até agora. Existem denúncias, mas nada que lembre a violência armada ou física tão comum nas regiões de fronteira. Também a qualidade do emprego numa fazenda de soja é em geral bem melhor do que numa fazenda de pecuária extensiva. Por outro lado, os pequenos produtores estão perdendo espaço para a soja, vendendo suas terras e mudando para novas colônias na floresta ou para as cidades. Precisamos avaliar com calma essa nova economia da soja para definir uma estratégia que vise a minimizar seus impactos ambientais e sociais negativos.
Veja - O que se exigiria da cultura de soja para que ela integrasse o sistema de desenvolvimento sustentável de que o senhor fala?

McGrath - Depende de como o processo se desenvolve. Respeitando-se as reservas legais e as matas ciliares e minimizando o uso de agrotóxicos, a expansão da soja na Amazônia pode ser perfeitamente viável do ponto de vista ecológico. O fato de usarem, até agora, áreas desmatadas já é por si menos predatório do que a pecuária extensiva. Se vai ser sustentável em termos econômicos e ecológicos, precisamos de tempo para ver. Tudo depende da capacidade do governo, junto com a sociedade civil, de ordenar o processo de transformação na fronteira, o que nunca aconteceu. Sem uma decisão de investir o necessário para manter uma presença efetiva da fiscalização na fronteira não será possível consolidar uma trajetória de desenvolvimento realmente sustentável.

Veja - É possível imaginar como estará a floresta daqui a 100 anos?

McGrath - A Amazônia está num período crítico de sua história. A trajetória de desenvolvimento que se consolida agora vai definir a estrutura da região. Se eu tomar a posição de um ambientalista realista e me basear nos resultados dos últimos trinta anos, diria que é alta a probabilidade de a cobertura florestal ser reduzida a manchas isoladas, na maioria áreas protegidas, que estarão sofrendo modificações em resposta ao clima mais quente e seco previsto para a região. Mas, sendo mais otimista, é possível identificar outra trajetória da qual já se viram sinais no decorrer dos últimos quinze anos e que pode se consolidar. Se o governo conseguir ordenar o processo de ocupação e mantiver boa parte da cobertura vegetal na forma de florestas exploradas inteligentemente, além das áreas indígenas, é possível imaginar que o clima úmido e a biodiversidade original sobrevivam. Não se pode acreditar é que a paisagem amazônica vá continuar como está.

Veja, 12/11/2003, Entrevista, p.11, 14 - 15

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