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A Amazônia oficial e as dúvidas da ciência

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
26 de Ago de 2005

A Amazônia oficial e as dúvidas da ciência

Washington Novaes

Embora sem eco na sociedade - porque a comunicação a respeito é insuficiente -, continuam a pulular discussões sobre o projeto de lei de concessão de florestas públicas a empresas privadas, aprovado pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado.
Não faltam questionamentos e críticas. Seja quanto à decisão de conceder 130 mil quilômetros quadrados de florestas públicas, seja quanto aos caminhos pelos quais se dará a concessão. Pelo preço mais alto, como diz o projeto?, questionam alguns críticos. Admitindo pagamento em títulos da dívida pública, com possibilidade de pagamento em "moedas podres", como em outras privatizações? Permitindo que o concessionário contrate terceiros para executar o projeto? Admitindo "veladamente a hipoteca da floresta, que é pública", como critica o cientista Reinaldo Corrêa Costa, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)?
Esse cientista reitera a temeridade de se falar em manejo sustentável sem saber previamente a idade de cada exemplar retirado das áreas concedidas, quando o tempo de maturação das árvores ali pode variar entre 50 e 2 mil anos. E quando esse caminho despreza as alternativas do conhecimento tradicional, provadas ao longo de séculos. "Natureza em abundância", diz ele, "não é sinônimo de atraso ou de subdesenvolvimento."
Por esse caminho segue também estudo publicado no jornal ComCiência (2/8), editado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). "Parece", registra essa edição, "que a natureza só tem salvação se for mercantilizada. Talvez o problema seja exatamente esse. Os lugares do mundo que permanecem com elevado grau de biodiversidade são exatamente aqueles que se mantiveram à margem do mercado." Segundo esse texto, "voltamos a repetir a lógica bacharelística tradicional, onde parece que a criação de um novo órgão vai resolver" - e o projeto cria logo dois.
Chega-se, neste ponto, ao Dossiê Amazônia Brasileira II, que o número 54 da revista Estudos Avançados, da USP, está publicando (a primeira parte do dossiê foi comentada aqui em 6/5). São muitos e ricos em informação os textos. Forças de Transformação do Ecossistema Amazônico, dos professores Antônia M. Ferreira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e Enéas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, começa lembrando que "há tantas Amazônias quanto a nossa capacidade e/ou necessidade de percebê-las e/ou abordá-las permitirem" - o que implica um risco, numa abordagem única como a do projeto de concessão. A Amazônia, dizem os autores do estudo, é um dos ecossistemas mais complexos e vulneráveis do planeta.
Cabe, então, perguntar "qual é a concepção de desenvolvimento que desejamos e propomos para a Amazônia e a estratégia produtiva, de conservação e melhoria da qualidade devida, que, integradas, tornem sustentável esse patrimônio nacional". O projeto não esclarece. Corre-se o risco de, mais uma vez, atender a "forças transformadoras geradas, na maior parte das vezes, em espaços extra-amazônicos e extracontinentais". Até aqui, o desmatamento "respondeu a diferentes demandas externas e internas por matérias-primas e insumos necessários ao modo de produção vigente, bem como à necessidade de resolução de questões sociais em diferentes regiões extra-amazônicas" (Nordeste, Sul, Centro-Oeste).
Por esses caminhos, "a Amazônia brasileira transformou-se em um espaço estratégico da definição de formas de inserção do país no processo de globalização da economia".
Estratégico porque - pode-se acrescentar - estamos vivendo uma crise de insustentabilidade dos padrões globais de produção e consumo, além da possibilidade de reposição da biosfera terrestre. E nesse quadro, diz o estudo de Antônia M. Ferreira e Enéas Salati, "a instituição dominante no processo tem sido invariavelmente um poder externo à região, atuando em resposta ao contexto internacional e à situação nacional". O avanço do desmatamento "não é produto de pressão demográfica direta, mas sim de forças econômicas transformadoras (locais, regionais, internacionais) referenciadas por pacotes tecnológicos excludentes de grandes quantidades de mão-de-obra". Grave.
Mesmo que se ignorasse esse contexto, seria preciso perguntar se o caminho de concessão de florestas será eficiente. Dificilmente. "A implementação de medidas regulamentadoras de caráter ambiental", diz o estudo, "exige instituições públicas fortes, sólidas e legitimadoras política e socialmente; mas o Estado está em crise e autoproclama sua incapacidade." E por aí se chega à carta enviada no último dia 15 pelo Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (que representa mais de 900 instituições) à Casa Civil da Presidência da República, denunciando "o abandono e esvaziamento do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento, anunciado em março de 2004".
O fracasso - diz a carta - ocorre em todas as grandes linhas do plano: obras de infra-estrutura ("completamente abandonada"), política fundiária e fomento ("entraves significativos" e "baixo grau de desempenho" do governo), fiscalização e controle ("falta de recursos" - implantadas até maio de 2005 apenas 3 das 19 bases operacionais previstas). Além do mais, segundo a carta, falta a "abordagem transversal" (que o faça chegar a todas as áreas do governo) e coordenação pela Casa Civil.
Como confiar, então, nos mecanismos de orientação e controle propostos pelo projeto de concessão de florestas?
Muito mais há a comentar nas teses de cientistas que compõem o Dossiê Amazônia Brasileira II. Mas não há espaço. Fica para outro dia.

Washington Novaes é jornalista.

OESP, 26/08/2005, Espaço Aberto, p. A2

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