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Amazônia muito além do quilowatt-hora

Valor Econômico, Brasil, p. A2
Autor: CHIARETTI, Daniela
19 de Fev de 2019

Amazônia muito além do quilowatt-hora

Daniela Chiaretti

Existe um projeto de desenvolvimento da Amazônia que vai muito além do desmatamento e pode ajudar a catapultar a região e o país no futuro. É uma proposta econômica que vem tomando forma há dois anos e não quer preservar a floresta apenas pelo seu valor inerente. A lógica desta abordagem diz que manter a biodiversidade pode representar um ganho econômico muito maior para o Brasil e para a região do que o que vem sendo obtido com pecuária e culturas agrícolas. A ideia supera o eterno dilema entre conservação e agricultura intensiva e colocaria o Brasil na liderança da economia da biodiversidade. Bem-vindos à Amazônia 4.0.

O termo foi cunhado pelo biólogo Ismael Nobre e engloba o mundo novo que se descortina com o aprofundamento do conhecimento da Amazônia aliado ao uso de tecnologia de ponta. Muito já está aflorando.

O pesquisador Flavio Henrique da Silva, da Universidade Federal de São Carlos, descobriu no lago Poraquê, na Amazônia, um gene em um microorganismo capaz de decodificar uma enzima que transforma a celulose em açúcar. Isso pode resultar em aumento de 50% da produção de etanol para a mesma quantidade de cana-de-açúcar. A cientista Thays Obando Brito, da Universidade Federal do Amazonas, observou o formato da mandíbula de uma formiga cortadeira e sua eficiência em cortar e furar. Desenvolveu em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) um grampo de sutura inspirado na saúva. Um outro grupo conseguiu fabricar uma pele artificial a partir da borracha e nanopartículas de argila - e que ajuda a induzir pele em queimados.

"O fundamento do nosso projeto é reconhecer que a complexidade da natureza encerra alta tecnologia", diz Ismael Nobre, biólogo com doutorado no Colorado, um estudioso da interface entre ciências naturais e humanas. Interessa-se exatamente em como a sociedade interage com os recursos naturais. Ele foi o coordenador da área ambiental do governo de transição do então presidente eleito, Jair Bolsonaro. Saiu quando o advogado Ricardo Salles foi nomeado ministro de Meio Ambiente.

O projeto é liderado por ele e pelo irmão Carlos, o mais velho de uma dinastia de pesquisadores brasileiros e nome célebre entre os climatologistas globais. Carlos Nobre defende desde 2016 a ideia de uma terceira via de desenvolvimento para a Amazônia, que seja baseada na inovação tecnológica de ponta, no conhecimento tradicional e nos ativos da biodiversidade. Seria a implantação, na floresta, da Quarta Revolução Industrial, movimento mundial em curso há mais de uma década e que revoluciona sociedades pela inteligência artificial, robótica, genômica e nanotecnologia.

Qual é a ideia dos Nobre e de um grupo de cientistas apoiado pelo Instituto de Estudos Avançados da USP e do Instituto Homem e Meio Ambiente da Amazônia, o Imazon? Trata-se de inserir tecnologia de ponta na floresta e sair da armadilha atual, em que as árvores amazônicas são derrubadas porque não se consegue impulsionar um modelo de negócios que seja sustentável. Fica-se na cartilha de boas intenções enquanto a motosserra come solta.

Algumas estimativas indicam que madeira, gado e produtos da agricultura tradicional significam uns US$ 10 bilhões ao ano para a economia da Amazônia brasileira. Por seu turno, os principais produtos não madeireiros - como açaí, castanha, cupuaçu e guaraná - já respondem por algo próximo a US$ 2,5 bilhões. Somente o açaí está na casa do US$ 1 bilhão. A castanha-do-Brasil representa US$ 250 milhões.

A revolução proposta pelo grupo de pesquisadores se baseia em alguns preceitos. É preciso reconhecer o conhecimento acumulado na natureza, entendê-lo e aplicá-lo às necessidades humanas. Depois é o momento de se desenvolver bens a partir da biodiversidade e inseri-los no que chamam de "bioeconomia" local e global. Por fim, trata-se de distribuir benefícios de forma equitativa e formar as bases para a valorização do bioma.

Parece tudo muito teórico? Pois bem. Ismael Nobre passou os últimos anos estudando tudo o que existe na literatura sobre produtos da Amazônia usados em alimentos, cosméticos, remédios. A lista é grande. A frutinha camu-camu tem quatro vezes mais vitamina C que a acerola. O murici tem propriedades antioxidantes. O taperebá é rico em vitamina A. O óleo essencial do pau-rosa é um ingrediente chave para o famoso perfume Chanel no 5. A Amazônia, já se vê, é muito mais do que quilowatt-hora, gado, madeira e ouro.

"Quando falamos em desenvolver a economia da Amazônia, pensamos em criar uma economia palpável, com cadeias de valor verticalizadas no interior da floresta e que envolvam as comunidades locais", diz Ismael. A ideia dessa revolução baseada nos conhecimentos tradicional e científico, e nos ativos da biodiversidade amazônica, ocorrerá através de "ecossistemas de inovação". Capacitação é fundamental, ou não se sai do lugar. A ideia é fazer isso por meio de "Laboratórios Criativos da Amazônia" espalhados pela região. A energia viria de painéis solares, os satélites garantem a comunicação. Drones, quem sabe, podem ajudar com a logística de chocolates feitos com cupuaçu e desenhados com impressoras 3D.

Qual o efeito disso tudo para a conservação da floresta? "Produtos da Amazônia hoje geram baixo valor econômico porque são primários, sem valor agregado. Ao levar tecnologias modernas para dentro da floresta, populações não serão mais apenas coletoras. Irão coletar e ter máquinas modernas para desenvolver produtos finais", diz Carlos Nobre. A diferença entre apenas colher e vender o cupuaçu, ou vender o chocolate feito dele, pode ser um fator de ganho de 20 vezes.

O desenvolvimento da Amazônia, pode, assim, fazer um salto tecnológico. É o que os ingleses chamam de "leapfrog" ou salto do sapo. O caso dos quenianos, que nunca tiveram telefones fixos e saltaram direto para os celulares, ilustra bem. O país africano lidera hoje o ranking dos que mais usam celulares para pagamentos e transferências bancárias. A ideia dos brasileiros é fazer com que a Amazônia se desenvolva com as riquezas que vêm da floresta. Não precisa imitar São Paulo e ter que corrigir depois todos os desafios urbanos da metrópole que cresceu transformando o verde em asfalto.

Valor Econômico, 19/02/2019, Brasil, p. A2.

https://www.valor.com.br/brasil/6124327/amazonia-muito-alem-do-quilowat…

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