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Amazonenses vivem dois dias de agonia na fronteira

A Crítica, Cidades, p. C5-C6
08 de Jan de 2004

Amazonenses vivem dois dias de agonia na fronteira
Fechamento do comércio deixou 200 turistas do Amazonas no meio da estrada sem água, combustível e mantimentos

Gerson Severo Dantas

Os amazonenses que estavam indo ou voltando da ilha de Margarita, na Venezuela, viveram ontem mais um dia de agonia parados nas estradas em razão de um protesto organizado por agricultores e índios contrários a homologação da reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima. Autoridades roraimenses estimaram em aproximadamente 200 o número de amazonenses que se hospedaram em hotéis de Boa Vista desde terça-feira.
Em Pacaraima, onde estão pelo menos dois ônibus de excursão cheios de turistas de Manaus, a situação é considerada crítica, pois além de estarem parados no meio da estrada o comércio local foi fechado e eles não têm como comprar água e mantimentos, por exemplo. Também começa a faltar combustível. Abastecidos por Manaus, os donos de postos não tem como repor seus estoques em função do bloqueio das estradas.
Voltando de Santa Elena do Uairén, na fronteira com a Venezuela, o técnico em linhas de alta tensão da Manaus Energia, Demostenes Moura Nascimento, estava irritado com o protesto, que atrasou sua viagem de volta e vai render ainda descontos no salário do final do mês. Ele contou que ganhou uma semana de licença do trabalho e resolver ir com a mulher e dois filhos até a Venezuela. Tudo estava lindo e maravilhoso até que ao deixar Boa Vista, terça-feira, foi parado na altura do quilômetro 20 da BR-174 (sentido Roraima-Amazonas).
Sem ter como ir para hotel ele e o filho Fábio dormiram no carro e mandou a mulher e uma filha de volta por via aérea. Demóstenes avalia que a situação poderia ser pior se ele tivesse sido pego pelo protesto ainda em Santa Elena. "Como é que eu ia me virar em uma cidade estrangeira, com pouco dinheiro e toda a família aqui", disse.
Para piorar a situação do eletricitário a folga encerrou ontem e hoje ele deveria se apresentar ao setor de alta tensão da companhia. "Agora não sei quando vou voltar, mas sei que o desconto será lançado no salário", lamenta-se.
Parado do outro lado da barreira montada pelos agricultores neste trecho da BR-17.4, o caminhoneiro Edmar Rodrigues Costa, 50, que trabalha numa indústria de refrigerantes de Manaus, lamentava ter sido parado poucos minutos depois do início da manifestação, às 5h30 de terça-feira. "Eles fecharam a estrada meia-hora antes de eu chegar. Se soubesse que isso ia acontecer não teria dormido em jundiá, onde fique por duas horas", contou.
Quem estava levando o protesto na esportiva eram os motoristas da empresa que explora a linha Manaus - Boa Vista. Ontem eles já formavam um grupo de mais de dez profissionais que ganharam uma folga extra por conta do fechamento da estrada. 0 primeiro a ser pego no protesto, Antônio Pinto, estava há dois dias parados e tinha sido informado que só sairia do local amanhã. Ele contou que ao chegar na barreira montada pelos agricultores a empresa já havia providenciado um outro ônibus para onde os passageiros foram transferidos, após caminhar por aproximadamente três quilômetros. Apenas vigiando os ônibus, os motoristas improvisaram alojamentos nos bagageiros, onde também acontecia rodadas de damas e dominós. Há 14 anos trabalhando na BR-174, o motorista José Alves da Silva, trazia passageiros de Itacoatiara (a 270 quilômetros de Manális) para Boa Vista quando alcançou a barreira. Ele esperava sair do local até amanhã e retomar para Manaus, onde tem família.

Ao invés de sol e praia, só frustração
A pior situação aconteceu com quatro famílias de amigos que iriam passar uma semana em Margarida e foram detidos pelo protesto antes de chegarem a Boa Vista. Eles formam um grupo de 18 pessoas, que tiveram de abandonar os carros sob a guarda de pessoas que trabalham no aterro sanitário da capital roraimense e se hospedar em um hotel. Do mesmo grupo, o construtor Winston Santos disse que saíram de Manaus e ainda conseguiram rompera barreira montada em Rorainópolis, pouco depois da fronteira com o Amazonas. "Infelizmente aqui não deu e o pior ainda está para frente" diz, lembrando a situação encontrada acima de Boa Vista. Ontem o comércio de Boa Vista foi parcialmente fechado por orientação das entidades do setor.
Reféns em Surimu
O Conselho Indigenista de Roraima (CIR) informou ontem que os sete estudantes amazonenses da paróquia de Santa Luzia, do bairro do mesmo nome, Zona Sul de Manaus, que estão na missão de São José de Surimu, na Vila Pereira, município de Pacaraima, conversaram ontem com padres de Boa Vista e disseram que estão bem, mas apreensivos com a possibilidade de os índios que seqüestraram os padres Ronildo de França, que é de Manaus, e Cesar Avellaneda, além do missionário João Carlos Martinez, voltarem ao local Estão na missão os estudantes Anderson Vasconcelos, Gleidson Lopes, Andreza Resende, Gilberto Rodrigues, Narilete Silva, Dulcinéia Souza e Maik Anderson.

Rebelados mantêm desafio
Unidos no protesto, agricultores e índios dizem que não vão liberar reféns. Ministério Público pediu reforço para desbloquear área
Gerson Severo Dantas
O segundo dia de protesto de agricultores e indígenas contra a homologação da reserva Raposa/Serra do Sol concentrou-se em três frentes: a primeira foi a manutenção das invasões dos prédios da Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Na Funai estão 200 índios, liderados por um conselho de 20 tuxauas. Em assembléia realizada ontem eles decidiram chamar mais 300 guerreiros de aldeias localizadas na Raposa/Serra do Sol para reforçar o protesto. "Só vamos sair daqui quando o presidente Lula ou o ministro da justiça vier aqui conversar com a gente sobre essa homologação injusta", disse o tuxaua da comunidade macuxi Santa Creuza, Pedro Celson da Silva.
Os índios rebelados também propuseram que o Governo Federal levasse os 20 tuxauas até Brasília, onde negociariam o fim dos protestos. "Eles não aceitaram alegando que é muito caro. Se é caro, então que paguem a passagem de um deles para vir aqui conversar com a gente", disse Pedro.
A segunda frente de mobilização dos manifestantes é interdição das estradas federais e estaduais. A segunda frente de ação dos manifestantes é a interdição das estradas federais e estaduais de Roraima, por onde é escoado, por exemplo, parte do arroz, banana, abacaxi e farinha consumidos em Manaus.
No comando de um dos postos de interdição, na BR-401 que liga Boa Vista ao município de Bonfim e Georgetown, na Guiana, o rizicultor (plantador de arroz) Genor Faccio reforçou as palavras do tuxaua de Santa Creuza sobre a determinação de esperar por um representante federal em Boa Vista. Ele disse que o movimento não era só de rizicultores e indígenas, mas de todas as classes produtivas de Roraima, os donos da maioria dos veículos estacionados nas estradas. "Aqui temos madeireiros, agricultores de banana, melancia, transportadores e pecuaristas", disse.
A cultura do arroz ocupa uma área de 15 mil hectares e, conforme Faccio, é a principal atividade econômica do Estado de Roraima. Tomando-se como referência o preço do arroz in natura, sem qualquer beneficiamento, a safra deste ano vai render aproximadamente R$ 70 milhões. A atividade também mobiliza ouros setores, como o de transportes, por exemplo. De acordo com o transportador João Batista Alves da Silva, integrante de um cooperativa que reúne 230 profissionais, sem a rizicultura e com a homologação da Raposa/Serra do Sol em área contínua, os caminhoneiros vão ter que procurar outro lugar para sobreviver. "Aí vai todo mundo para Manaus, pois são os arrozeiros que usam o nosso serviço. É para eles que trazemos adubo e calcário da Venezuela e escoamos a produção deles para Manaus", conta.
O outro lado
A monocultura do arroz está em boa parte localizada dentro da Raposa/Serra do Sol. 0 maior rizicultor do Estado, Paulo Cesar Quartieiro, tem em posse perto de 9 mil hectares dentro de terras da reserva, dos quais cinco mil são tomados pela plantação. O restante é usado para a criação de gado.
Vista com bons olhos pelos agentes econômicos, como os representantes da Associação Comercial de Boa Vista, por exemplo, os rizicultores são o "diabinho" para ambientalistas e associações indígenas ligadas a igreja católica. Eles, por exemplo, não têm licença do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para plantar em Roraima. Também são acusados de usarem agrotóxicos que depois poluem os rios Surumu e Cotingo, principais tributários do rio Branco, que por sua vez é o principal afluente do Negro, onde deságua na altura do município de Novo Airão (a 115 quilômetros de Manaus).
0 impacto ambiental gerado pelo uso de agrotóxicos em terras de lavrado, como em Roraima, também não foi medido, pois a atividade começou e até hoje não foram feitos os Estudos de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) necessários. Por conta disso, o Conselho Indigenista de Roraima (CIR) acusa o rizicultor Genor Faccio de ser o responsável pela morte de. sete mil pássaros em uma plantação localizada dentro da Raposa/Serra do Sol.

PF vai à área de confronto
Religiosos mantidos reféns pelos manifestantes estariam sofrendo agressões físicas e psicológicas
A última frente de ação de agricultores e índios rebelados contra a homologação da reserva Raposa/Serra do Sol ocorria em Contão, comunidade macuxi onde estavam feitos reféns os padres Ronildo França, amazonense de Manaus; Cesar Avellaneda e o irmão franciscano João Carlos Martinez.
Ontem, às 10h, uma equipe formada por policiais federais e representantes da Diocese de Boa Vista seguiu para Contão, comunidade que fica a 30 quilômetros de distância de Vila Pereira, no município de Pacaraima, onde os religiosos viviam na chamada missão de São José de Surimu. Uma rádio local chegou a anunciar que um acordo havia sido feito entre o tuxaua de Contão, Genival Costa da Silva, e os agentes federais visando garantir a libertação dos religiosos às 13h. A mesma fonte informava que às 16h eles chegariam a Boa Vista. Até o início da noite a Polícia Federal não confirmou a existência do acordo tampouco a libertação dos religiosos, que segundo o tuxaua da comunidade Santa Creuza, Pedro Celson da Silva, permaneceriam presos até que a reivindicação principal do movimento, a presença do ministro Thomaz Bastos ou do presidente da Funai em Boa Vista, fosse atendida. 0 vigário geral da Diocese, padre Edson Damian, contestou as informações de que os religiosos estão sendo bem tratados. Em entrevista dada ao porta I( Damian denunciou que Ronildo França, Cesar Avellaneda e João Carlos Martinez estão sofrento violências físicas e psicológicas.

MPF quer prédio da Funai desocupado
0 Ministério Público Federal e a Advocacia Geral da União entraram ontem com um requerimento na Superintendência da Polícia Federal solicitando a desocupação dos prédios da Funai e Incra, em Boa Vista.
0 efetivo da instituição policial em Roraima é pequeno e reforços deverão seguir de Manaus nos próximos dias.
De acordo com o procurador federal em Boa Vista, Darlan Dias, o direito de manifestação garantido na Constituição Federal não dá aos agricultores e indígenas a liberdade de ocupar prédios públicos, interditar estradas federais e estaduais, bem como manter sob cárcere privado os religiosos. "Eles têm direito de se manifestar, mas isso que está acontecendo é um abuso. 0 movimento não é pacífico", avalia Darlan Dias.

A Crítica, 08/01/2004, p. C5-C6

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