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Aldeia global

CB, Revista do Correio, p. 10-13
15 de Nov de 2009

Aldeia global
Os povos indígenas do país mantêm um fértil intercâmbio virtual em sites de relacionamento e fóruns especializados. A Revista mergulha nesse universo, em que tradição e tecnologia andam de mãos dadas

Maria Fernanda Seixas

Pendurado em uma fita de náilon, o pen drive repousa sobre o tórax avermelhado, entre colares de sementes e flores. Os toques de celular competem com as barulhentas maracas e as reuniões em torno da fogueira dividem espaço com as que acontecem ao redor de um computador. A máquina, inclusive, ganhou o apelido de arco digital - uma referência ao sustento e à proteção milenares proporcionados pelo arco e pela flecha. Desde 2004, pelo menos 20 aldeias indígenas brasileiras passaram a ter acesso à internet via rádio e, posteriormente, algumas foram contempladas pelo sistema Gesac de conexão via satélite, implantado pelo Ministério da Comunicação.

Nas páginas a seguir, a Revista investiga em que pé se encontra a participação dos índios no mundo virtual e como a inclusão digital modificou suas vidas. São internautas de todas as idades e etnias que, dentro ou fora das aldeias, filtram o que há de bom na tecnologia para adquirir conhecimento, divulgar seus costumes, fazer amizades e, principalmente, lutar por seus direitos.

Eles estão presentes em blogs, chats, sites de relacionamento, no YouTube e até no Twitter. Mas é no portal indiosonline.org.br - uma rede de diálogo intercultural formada pelos povos Kiriri, Tupinambá, Pataxó-Hãhãhãe e Tumbalalá, da Bahia; XucuruKariri e Kariri-Xocó, de Alagoas; e os Pankararu, de Pernambuco - que eles se encontram e se fortalecem. São 848 usuários cadastrados. Desses, aproximadamente 600 são indígenas.

Inclusão premiada

Tudo seguia conforme o protocolo na entrega do prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pelo Ministério da Cultura no mês passado.

Os contemplados subiam ao palco do Teatro Nacional, discursavam e eram aplaudidos pelo público - ansiosos pelo show de encerramento com a sambista Teresa Cristina. Mas eis que uma mulher anônima rouba a cena.

Trajada de meia-calça preta, sapato de salto médio, vestido distinto e ornamentada com uma espécie de cocar de flores, a índia potiguara Yakuy Tupinambá, 49 anos, estava ali para representar o portal indiosonline.org.br, ganhador do prêmio na categoria divulgação.

Yakuy começou seu longo discurso falando sobre o site. Sobre como reportagens, vídeos e comentários postados no portal divulgam a cultura, a história e a arte de seu povo, além de fomentar as lutas a favor das causas indígenas.

O site já é considerado um sucesso pela ONG Thydêwá, idealizadora do projeto. Não é para menos: o portal hospeda cerca de 3 mil matérias, mil fotografias, 100 vídeos, divulga notícias e promove diálogos interculturais. Desde que foi ao ar, contabiliza cerca de 12 mil comentários e quase 2 milhões de visitas.

É certo que boa parte das pessoas presentes naquela plateia nunca ouvira falar no portal.

Mas Yakuy não se intimidou e prosseguiu seu testemunho. Falou sobre sua trajetória e sobre como a internet a transformou. No seu primeiro contato com um computador, ficou tão extasiada com o mundo de possibilidades que se abrira em sua frente que decidiu voltar a estudar. Hoje, cursa direito na Universidade Federal da Bahia.

Contou também a história de uma moça da aldeia que estava tendo um trabalho de parto dificílimo.

E que, graças à conexão com a rede, obteve auxílio médico emergencial. No fim, o público aplaudiu Yakuy de pé, com olhos marejados.

De volta à aldeia, Yakuy nos concedeu uma entrevista. "A internet vem proporcionando o que nos foi negado há séculos. O mundo virtual pode aproximar pessoas. Especialmente as que vivem à margem de uma sociedade excludente como a brasileira", apontou. Atualmente, Yakuy tem também um perfil no site esperancadaterra.ning.com, que promove discussão entre índios de diversas etnias e possibilita a criação de um cadastro de cada usuário, de modo semelhante ao Orkut e ao MySpace. Nesse ambiente virtual, ela é dona de 42 amigos, diversos recados e 33 fotos. Além dela, a comunidade conta com 148 membros.

Ponte para o mundo

No sul da Bahia, a cerca de 20km de Ilhéus, a comunidade de Olivença - uma das 23 da etnia Tupinambá - teve um rápido acesso à urbanização na década de 1930, quando foi construída uma ponte sobre o rio Cururupe, que liga a aldeia à cidade de Ilhéus. As consequências foram severas. Os coronéis do cacau afugentaram boa parte dos índios, que se refugiaram no interior da Bahia. A memória então se dissipou.

"Lembro de várias histórias que meus avós contavam toda noite.

Mas passei minha infância e parte da minha adolescência sem saber que aquilo que ouvia era uma cultura secular que minha família trazia em sua raiz", conta o tupinambá Jaborandy Yandê, 26.

Natural de Olivença, hoje ele mora na aldeia Itapuã, na comunidade de Águas de Olivença.

Atualmente, a ponte não colabora mais para o enfraquecimento da memória histórica dos tupinambás.

Foi por ela que chegaram, em 2005, os primeiros computadores das aldeias. "Lembro que nossos anciões temiam que a tecnologia pudesse atrapalhar o trabalho de resgate do que haviam deixado esquecido no tempo", relata Jaborandy. O resultado, porém, surpreendeu até os tradicionalistas.

A internet despertou o interesse dos mais jovens por suas origens e instigou as lideranças a postar textos e vídeos sobre a realidade de cada aldeia.

"A internet não nos faz menos índios. A maneira como a usamos nos permite mostrar quem somos e a divulgar nossa verdadeira história", opina a universitária Irembé Potiguar, 22, do povo potiguara da Paraíba. Para Luciano Henrique, da etnia pankararu, as pessoas de sua aldeia sempre acolheram muito bem a chegada da tecnologia.

"Só tivemos melhorias na nossa educação, saúde e em todas as áreas sociais, pois hoje com um simples e-mail ou um telefonema resolvemos determinados assuntos que antes tínhamos que nos deslocar para a cidade para resolver. Mas nosso objetivo principal com a internet é mostrar ao mundo que existimos e que a maneira como muitos nos conhecem está errada", diz.

Especialista em causas indígenas, a advogada e professora universitária Maria Rachel Coelho considera a internet uma ferramenta útil para as tribos.

"Eles, os índios, são os únicos que podem nos ensinar e nos deslumbrar com toda essa cultura", defende a professora, coordenadora do Movimento Educacionista do Brasil (MEB).

Câmera, ação!

Na internet, os índios não só se expressam e se comunicam,como, por exemplo, cobram salários atrasados,merenda escolar, fazem denúncias, solicitam a retirada do lixo de suas aldeias,vendem artesanato e promovem o turismo nas aldeias. No site indioonline.org.br há um espaço com notícias diariamente atualizadas,um chat,oferta cursos de cidadania e,o mais divertido,um espaço para divulgação de vídeos produzidos por eles. A ideia surgiu por iniciativa da ONG Thydêwá,que lançou o projeto "celulares indígenas",no qual doaram 80 aparelhos de celular com câmeras acopladas para os que se inscreveram numa espécie de concurso lançado pelo site.
Lá, existem vídeos em que os jovens se apresentam, outros com músicas e cenas da aldeia, uns narrando um pouco sobre a história de suas etnias. E um espaço permanente,que ensina a fazer a edição dos vídeos no próprio celular.

Sinais de fumaça
Apesar de a inclusão digital fortalecer a voz das nações indígenas brasileiras, muitos pontos ainda precisam ser aperfeiçoados, especialmente com relação à qualidade do serviço e ao alcance do benefício. Em algumas aldeias, a conexão já é feita via satélite, o que garante velocidade na transmissão de dados. Em outras tantas, porém, a internet ainda é via rádio. Muitas das máquinas usadas precisam ser substituídas, pois estão defasadas. "As aldeias com conexão que eu conheço têm internet via programas do governo. Em minhas pesquisas, vi também que alguns institutos têm financiado conexões em diversas aldeias. Tivemos computadores comprados pela ONG Thydêwá, outros doados pelo sistema Gesac ou pelo Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) e também por doações da população", detalha a advogada Potyra Tê Tupinambá, diretora executiva da ONG Thydêwá.

Ainda assim, eles se viram como podem. E cada comunidade dita suas regras. Em algumas, os usuários têm um tempo de uso do computador pré-estabelecido; em outras, o acesso é livre. Existem também as que gravam o histórico de cada usuário para o controle do que é acessado.

"O primordial é que usem a internet para conhecer e lutar pelos seus direitos.

Que verifiquem os recursos federais destinados a eles, e que assim possam se posicionar como cidadãos brasileiros", resume o argentino Sebástian Gerlic, presidente da ONG. O trabalho de controle de qualidade dos pontos é feito nas reuniões dos gestores do indiosonline.org.br.

O historiador e indigenista da Funai André Ramos aponta que ainda são poucos os e-mails enviados à Funai por índios que moram em aldeias.

"A maioria dos contatos que fazemos pela internet são com os mais engajados e com os estudantes, que moram nas cidades", relata

Saiba mais
Existem 460 mil índios no Brasil.
Quatro vezes mais do que há 56 anos, quando se chegou ao mínimo da população indígena brasileira.

Eles estão distribuídos em 215 comunidades indígenas e representam 0,25% da população brasileira.

Estimativas revelam que existam outros 190 mil índios vivendo em áreas rurais e urbanas.

Mais da metade da população indígena vive nas regiões Norte e Centrooeste do Brasil.

A ONG Thydêwá estima que existam 50 computadores distribuídos em 20 aldeias do Brasil.

São 180 línguas indígenas distintas.

Existem 55 comunidades de índios isoladas.

A população indígena brasileira cresce em média 3,5% ao ano.

Segundo o site do Observatório da Inclusão Digital, são aproximadamente 66 pontos digitais via Gesac (satélite) em comunidades indígenas brasileiras.

CB, 15/11/2009, Revista do Correio, p. 10-13

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