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Ainda no mesmo barco

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
12 de Mar de 2004

Ainda no mesmo barco

Washington Novaes

Durante as três semanas em que se realizaram na Malásia as reuniões da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (que é parte da CDB), a comunicação no Brasil, além do escasso noticiário sobre esses eventos, divulgou algumas informações interessantes:
Pesquisadores da Fundação Ezequiel Dias, de Minas Gerais, anunciaram que o veneno da cobra surucucu pode ser importante arma contra o câncer, porque contém substância inibidora da formação de vasos sanguíneos que alimentam os tumores (por isso, o câncer ficaria localizado, sem produzir metástase); segundo o Laboratório de Espectrometria de Massa da Embrapa, a perereca do cerrado, encontrável nas regiões mais altas, pode curar o mal de Chagas, que atinge 4 milhões de pessoas no Brasil e 18 milhões no mundo; o Brasil começa a exportar alecrim-pimenta do Ceará, de larga aplicação em cosméticos e medicamentos capazes de tratar várias doenças da pele, além de combater vetores da dengue e do mal de Chagas (ele pode render até US$ 7,1 mil por hectare); o Escritório de Marcas e Patentes do Japão anulou o registro da marca "cupuaçu", que havia sido concedido a uma empresa japonesa.
Qual é o valor da biodiversidade implícito só nesses quatro casos? Quanto vale ajudar milhões de vítimas do mal de Chagas, outras tantas de metástases, mais outros milhões de casos de enfermidades da pele, fora o valor do mercado mundial de cupuaçu? Podem ser centenas de milhões de dólares ao ano, podem ser bilhões - pois já se estima que o mercado mundial de medicamentos provindos da biodiversidade esteja em muitas dezenas de bilhões de dólares. E ainda se pode lembrar o estudo da Universidade da Califórnia que diz valerem o triplo do produto mundial anual (que está acima de US$ 30 bilhões/ano) os serviços prestados gratuitamente pela natureza (fertilidade do solo, regulação do clima, regime hídrico, cadeia da vida gerada nos mangues, etc).
Com tantas evidências a seu favor, a biodiversidade continua a ser perdida em alta velocidade. Segundo a Organização para a Agricultura e a Alimentação, da ONU (FAO), a remoção de florestas tropicais segue à razão de 150 mil km2 por ano. Na Amazônia, dados preliminares do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Estado, 4/3) parecem indicar que o desmatamento entre agosto de 2002 e agosto de 2003 não foi inferior ao do período anterior, quando esteve em 24.456 km2. Ou seja, em dois anos mais de 50 mil km2 desmatados e cerca de 650 mil no total (dos quais 25% sem nenhuma utilização econômica). Sem falar em que restam menos de 5% do cerrado (um terço da biodiversidade brasileira) com possibilidade de sobreviver, que da mata atlântica sobram menos de 8% (e boa parte muito fragmentada), que a caatinga tem 180 mil km2 em processo de desertificação. Não por acaso, o Brasil e seu governo "ganharam" na Malásia "prêmios" indesejáveis das ONGs.
Mas o problema é universal. Quem não está perdendo biodiversidade está contribuindo, com seu consumo, para a perda nos lugares onde ela está. E por isso é tão difícil avançar, encontrar outro barco. Na Malásia, estabeleceram-se compromissos para reduzir a perda da biodiversidade até 2010 e de conservar em todos os países membros 10% de cada ecossistema; de proteção especial para áreas muito relevantes para a diversidade; de discutir caminhos para um regime internacional de repartição justa dos benefícios do acesso a recursos genéticos.
Mas, enquanto as organizações não-governamentais calculavam em US$ 25 bilhões os recursos necessários para implantar um sistema global de áreas protegidas, não se conseguia nenhum compromisso financeiro dos países mais ricos. Por isso, será muito difícil avançar na prática. Inclusive porque países ricos em biodiversidade como o Brasil não aceitam a fórmula de receber pagamentos pela conservação de áreas, por entenderem que isso implica restrições à soberania no uso de recursos naturais. Pelas mesmas razões não aceitam uma convenção internacional sobre florestas. Como sediaremos a próxima reunião dos 12 países megadiversos, em 2005, e a próxima reunião das partes da CDB, em 2006, não é difícil prever que haverá muitas situações embaraçosas. A própria ministra Marina Silva reconheceu, em Kuala Lumpur, que a CDB "até agora tem produzido mais papel do que ações efetivas de implementação".
As discussões no âmbito do protocolo da biossegurança avançaram um pouco, com a aprovação da obrigatoriedade (daqui a um ano) de identificação de organismos geneticamente modificados (OGMs) no transporte entre países. O Brasil chegou a se opor à obrigatoriedade de informações precisas e completas sobre os carregamentos, assim como aos mecanismos para monitorar o cumprimento do protocolo - e por isso ganhou outro "prêmio" das ONGs. Mas acatou a vontade da maioria. Essas regras valem tanto para alimentos como para rações ou produtos a serem processados, sementes e peixes que serão introduzidos no meio ambiente. A documentação deve conter a indicação "pode conter OGMs", quem são o importador e o exportador.
Voltando o plano interno brasileiro. O plano nacional de florestas plantadas que o governo federal aprovou recentemente e o sistema de alerta por satélite contra o desmatamento (que são importantes) não bastarão para conter o rebuliço que virá com os próximos números sobre as perdas na Amazônia. Ainda mais porque vários estudos recentes acendem outras luzes vermelhas: os números sobre o desmatamento estão subestimados e a soja está em franco avanço na área, com financiamentos do Banco do Brasil (Arnaldo Carneiro, coordenador de pesquisas em ecologia do Inpa); em 40 anos boa parte da Amazônia poderá estar transformada em savana (Inpe); a pecuária responde por 75% do desmatamento (Vinod Thomas e Sérgio Margullis, do Banco Mundial); 80% da madeira extraída no Pará é ilegal (Ibama), embora mais de 70% das terras ali sejam da União; queimadas estão reduzindo as chuvas na Amazônia e em outras partes (Inpe e Universidade Federal do Ceará).
Vem muita celeuma por aí.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 12/03/2004, Espaço Aberto, p. A12

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