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Ainda não foi desta vez

O Globo, Economia Verde, p. 35
Autor: VIEIRA, Agostinho
12 de Jun de 2014

Ainda não foi desta vez

Agostinho

Fora o jogo político que sempre cerca esse tipo de decisão e o interesse dos patrocinadores, a escolha do país A ou do país B para sediar uma Copa do Mundo não envolve muitos mistérios. É preciso, basicamente, que os estádios tenham um padrão compatível com o das melhores arenas e que os atletas e torcedores possam se hospedar e se locomover com facilidade e segurança. O resto é quase detalhe.
Agora, imagine se os critérios da Fifa ou do Comitê Olímpico fossem outros? E se as exigências envolvessem itens básicos? Princípios sobre os quais não haveria negociação. Cláusulas pétreas. Não estou falando de metrô dentro do estádio. Mas algo do tipo: não realizaremos eventos esportivos em cidades onde o índice de analfabetismo for superior a 2%. Ou, os municípios escolhidos precisam ter, até a data da cerimônia de abertura, uma infraestrutura de saneamento equivalente à das cidades-sede da Fifa e do COI. Ou seja, esgoto padrão Zurique e Lausanne, ambas na Suíça.
Claro que sempre é possível incluir outros indicadores. Saúde e transporte, por exemplo. Mas creio que estes dois já estariam de bom tamanho. Será que os jogadores da Alemanha, na Bahia, sabem que alguns torcedores que pedem autógrafo talvez não sejam capazes de escrever uma carta ou um e-mail? Por acaso, alguém tomou o cuidado de avisar aos craques da Holanda que as águas de Ipanema, em frente à Joana Angélica, estão impróprias para o banho?
Tenho certeza de que algumas pessoas vão achar essas regras elitistas. Dirão que, por esse critério, as Copas e as Olimpíadas seriam todas na Europa, nos EUA e em alguns poucos países da Ásia e da Oceania. Não é verdade. Poderia servir como um enorme incentivo. Pouca gente lembra, mas o anúncio de que a Copa de 2014 seria realizada no Brasil aconteceu em 2007. Tempo suficiente para que as 12 cidades-sede tivessem índices melhores de fornecimento de água e tratamento de esgoto.
Se a hipotética exigência de um padrão Zurique de saneamento já estivesse valendo, sabe quantas destas cidades estariam habilitadas? Nenhuma. A que mais se aproxima de um índice aceitável é Curitiba. Ali, 100% das casas já recebem água tratada e 95% têm ligação de esgoto. Mas quando se fala em tratamento de esgoto, o percentual cai para 87% e ainda há um desperdício de água superior aos 32%. A pior, sem dúvida, é Cuiabá, com uma cobertura de esgoto de apenas 40%, um índice de tratamento de 22% e um desperdício de água de 60%.
A situação de Manaus, Natal e Recife não é muito diferente. Mesmo São Paulo, Rio e Belo Horizonte ainda tratam apenas 50% do esgoto que produzem. O resto vai para os rios e praias onde turistas e atletas estão se banhando. Um bom exemplo de como é possível mudar é Porto Alegre. A cidade tinha índices históricos de tratamento de esgoto da ordem de 20%. Uma única estação (ETE), inaugurada em abril, elevará esse percentual para 80%. A um custo de R$ 350 milhões, equivalente a pouco mais de 1% de tudo que foi gasto na Copa do Mundo.
Dados do Instituto Trata Brasil mostram que os efeitos da falta de saneamento vão muito além da poluição e do mau cheiro. Salvador, por exemplo, registrou, em 2013, 45 mil internações causadas por doenças infecciosas. Já Belo Horizonte contabilizou R$ 16 milhões gastos com horas não trabalhadas por conta dos casos de diarreia e vômito. Cuiabá poderia ter seus imóveis valorizados em até 10% se o saneamento estivesse universalizado.
Pra quem acha que Copa e Olimpíadas não têm nada a ver com água e esgoto, vale conhecer o caso de Paraty. Há anos a cidade sonha em se transformar num Patrimônio da Humanidade. Não lhe faltam atributos, como beleza, história e importância cultural. Mas há um detalhe. A Unesco, que concede o título, tem entre as suas exigências o saneamento. O problema começa a ser resolvido este mês. Em quatro anos serão investidos R$ 85 milhões no fornecimento de água e na coleta e tratamento de esgoto.
Na verdade, isso é só um exercício. Algo para pensar nas horas que antecedem o jogo de hoje. Poderia ter sido diferente, mas não foi. Agora vamos tirar a camisa amarela da gaveta e torcer. Quando a Copa acabar, quem sabe voltemos a falar sobre isso. Talvez a gente chegue à conclusão de que saneamento é algo tão básico que deveríamos resolver logo e não esperar que a Fifa, o COI ou a Unesco pusessem o dedo na ferida do nosso subdesenvolvimento.

O Globo, 12/06/2013, Economia Verde, p. 35

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