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‘Ainda falta terra para índios’

OESP, Aliás, p. J6
Autor: AZEVEDO, Marta
15 de Jan de 2006

Ainda falta terra para índios
Antropóloga diz que demarcações feitas antes da Constituição de 1988 precisam ser revistas

Entrevista: Marta Azevedo

Ivan Finotti

Nem oito nem oitenta. Para a antropóloga e demógrafa Marta Azevedo, a questão de que os índios brasileiros têm muita terra não é tão simples como parece. A polêmica foi levantada no meio da semana, quando o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes, declarou à agência de notícias Reuters que há muita terra demarcada no Brasil e as reivindicações teriam de ter um limite.
"Existe uma divisão muito clara no processo de demarcação das terras indígenas, antes e depois da Constituição de 1988. As terras demarcadas antes seguiam uma visão colonialista de reservar apenas a área da aldeia. Depois da Constituição, foi adotado o princípio, amparado por estudos antropológicos, de que cada povo tem uma cultura e uma necessidade diferente."
Marta, que trabalha na região do Rio Negro, numa área do tamanho do Estado de São Paulo com 700 aldeias, é pesquisadora do Programa Rio Negro da ONG Instituto Socioambiental (ISA) e do Núcleo de Estudos Populacionais da Unicamp. Também fez parte do grupo que divulgou no mês passado a "explosão" do crescimento indígena, que passou de 294 mil para 734 mil pessoas entre 1991 e 2000. Na entrevista abaixo, ela fala da polêmica da semana e do crescimento de 150% dos autodeclarados indígenas no Brasil.
O presidente da Funai, o antropólogo Mércio Pereira Gomes, disse esta semana que os índios brasileiros já têm terra demais. Ele está certo?
Ele não disse exatamente isso. Disse que essa é uma questão política e as reivindicações teriam de ter um limite. Do ponto de vista do processo de demarcação pós-Constituição de 1988, as terras indígenas foram demarcadas com critérios mais justos, sobretudo na Amazônia Legal, que reúne Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso e oeste do Maranhão. Essas terras já foram demarcadas como territórios, e não apenas a região dos núcleos habitacionais do povo indígena, ou seja, aquilo que geralmente chamamos de aldeias. O grande problema é o passivo que ficou: 40% da população indígena habita 2% da extensão total das terras indígenas, enquanto 60% da população habita os 98% restantes que estão localizados na Amazônia Legal. Isso significa que, até 1988, o antigo SPI e posteriormente a Funai tinham uma política de aldeamento. Demarcavam-se apenas a região das casas e um pouquinho do entorno. Não se faziam estudos aprofundados da extensão do território que aquela população necessitava para sua sobrevivência. Um povo indígena sempre precisa de lugar para construir casas, para suas roças, que são sempre mais de uma por família, às vezes até quatro ou cinco roças por família, precisam de lugar para caçar e coletar, de água. Então a concepção de território usada por cada povo, de acordo com sua cultura, é variável. A política da Funai tem de ser rever e, principalmente, resolver a situação das terras dos povos cujas aldeias foram demarcadas antes da Constituição, isto é, a partir de outra visão, antiga, colonialista. Quais são elas? Geralmente, as terras situadas fora dos limites da Amazônia Legal.
Mas os 400 mil índios têm 1 milhão de quilômetros quadrados, área maior que Alemanha, França e Itália juntas. Não é demais?
Essa conta, número de pessoas por extensão de terra, é uma conta que não devemos fazer. Essa equação depende da cultura, da tecnologia, do tipo de ocupação, enfim, de muita coisa para que essa população tenha boa qualidade de vida. Qual é o objetivo da demarcação? Que os índios sejam respeitados em seu modo de vida, em seus costumes, tradições, etc. Quando sabemos que um povo tem o costume de explorar a terra de forma x, y, z, o estudo é feito para que se atenda e se respeite isso. E a terra varia: não adianta ter 5 milhões de hectares de areia que a sobrevivência será difícil. O conceito de "capacidade de suporte de determinado território" discutido pelos ambientalistas, por exemplo, inclui tamanho de população, extensão da terra, recursos naturais existentes e tecnologia da população.
Por que a tecnologia?
A tecnologia é importantíssima nessa equação. Tem uma historinha que ilustra bem isso: perguntaram para Claude Lévi-Strauss se os esquimós poderiam continuar matando as baleias. Isso foi quando já se falava em parar de matá-las por causa da possibilidade de extinção, mas argumentava-se que a pesca era tradicional e fundamental para a sobrevivência desse povo. Lévi-Strauss respondeu que achava que os esquimós podiam continuar matando as baleias, mas com a tecnologia tradicional deles, não com a tecnologia nova, de redes e bombas, muito mais devastadora. Ou seja, com alta tecnologia um fazendeiro pode plantar mais no mesmo espaço de terra do que uma tribo inteira. Por isso, a conta não pode deixar de lado a tecnologia de cada cultura humana.
Dito isso, a senhora considera que esse 1 milhão de quilômetros quadrados é ou não é suficiente para 400 mil índios?
Como eu disse anteriormente, a pergunta não deve ser essa. Índio é uma categoria genérica, que nós inventamos. São 215 povos no Brasil, com 215 culturas, 215 tecnologias e 215 maneiras diferentes de ocupar esses territórios e neles sobreviver. O que eu diria é que os povos que estão localizados fora da Amazônia Legal, principalmente em Mato Grosso do Sul e nas Regiões Nordeste e Sul, são os que ainda precisam de terra, com absoluta certeza. Eles estão espremidos em pequenas extensões e não têm condições de sobrevivência. Os guaranis de Carapó, Mato Grosso do Sul, por exemplo, possuem uma área de 3.594 hectares para 3.500 pessoas. Na visão de sobrevivência deles, com a cultura respeitada e dando-lhes a possibilidade de pensar sobre o próprio futuro, essa terra é pouca.
O presidente da Funai afirmou ainda que o Supremo Tribunal Federal deveria definir um limite para reivindicações de terras indígenas. A senhora concorda?
Acho que antes disso o presidente da Funai deveria conversar com as lideranças indígenas. Deve manter um diálogo com todos os povos. Não sei se ele tem mantido, mas acho que, para sugerir uma idéia dessas, deveria ser de comum acordo com as organizações e povos indígenas brasileiros. Mas imagino que os índios jamais entrariam num acordo para fixar um limite em suas reivindicações por terra.
Eu não sei. Os índios não são ambiciosos ad infinitum. Isso é partir de um princípio muito babaca: de que os índios não são cidadãos brasileiros. Eles são cidadãos brasileiros e comungam com outros cidadãos deste país. Tenho absoluta certeza de que eles não defenderiam, nessa e em outras questões, uma postura desfavorável a todos os brasileiros.
A Anistia Internacional divulgou na semana passada relatório apontando o assassinato de 38 índios em 2005, o maior índice dos últimos 11 anos. Metade desse número teria como causa brigas entre índios, grande parte em estado de embriaguez. Mas muitas foram por disputa de terras, certo?
Em geral esses casos, tanto mortes por disputa de terra quanto por briga causada por embriaguez, têm acontecido com maior freqüência nessas áreas demarcadas pré-Constituição, ou seja, em Mato Grosso do Sul, Nordeste e Sul. E aqui, sim, é preciso dizer: o governo não tem tido política de resolver essa situação nessas áreas. Deve-se ter mais competência em relação aos índios. Não é que o estudo dessas demarcações não esteja em andamento e também não digo que a Funai não faz nada. A Funai tem demarcado, sim, mas não tem sido suficiente. Essas terras vão para disputa no nosso Judiciário, que é lentíssimo, e enquanto isso crianças morrem por desnutrição, adultos por embriaguez. Os pataxós da Bahia têm um processo de mais de 30 anos na Justiça, a terra indígena Cachoeira Seca, do povo arara, no Pará, e o Cerro Marangatu ou Ñanderu, do povo guarani, em Mato Grosso do Sul, são exemplos disso.
No mês passado, o IBGE divulgou dados sobre o crescimento da população indígena no Brasil, que pulou de 294 mil para 734 mil pessoas entre 1991 e 2000, um crescimento de 150%. Por quê?
Desde 1991, já havíamos estranhado esse aumento populacional, porque aquele censo apontou 13 mil índios no Estado de São Paulo, sendo que a população indígena em terra indígena era de 2 mil pessoas. Então havia 11 mil pessoas que não eram os indígenas habitantes das terras indígenas que estavam se autodeclarando enquanto tais. Os índios cresceram? Sim e não. Quando falamos crescimento populacional, há o crescimento vegetativo, por migração e, no caso dos índios, um processo novo de identificação de novas etnias. Tanto esse processo como a migração são numericamente muito pequenos. Já o crescimento vegetativo dos povos indígenas em terras indígenas é alto, 3,5% em média, enquanto os brasileiros como um todo crescem por volta de 1%. De qualquer forma, é claro que esse crescimento vegetativo não é suficiente para explicar o aumento de 150% em dez anos. O que houve também foi um aumento de pessoas que se autodeclararam indígenas.

OESP, 15/01/2006, Aliás, p. J6

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