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Águas turvas

FSP, Brasil, p. A5
Autor: FREITAS, Jânio de
06 de Out de 2005

Águas turvas

Jânio de Freitas

O encaminhamento mais sensato para dissolver o impasse entre o frei Luiz Flávio Cappio e o governo, em torno do projeto de transposição do rio São Francisco, seria o exame tranqüilo, frente a frente, dos argumentos das duas partes. Iniciativa prevista nos deveres do governo para com a população e atitude tipicamente cristã. Por que não se deu? Sim, há uma dedução óbvia. Mas vale a pena esmiuçar um pouco a questão.
Responsável pelo desenvolvimento do projeto, como ministro da Integração, Ciro Gomes teve o ímpeto de ir conversar com frei Luiz tão logo informado das disposições extremadas do francisco. Foi desaconselhado, até mesmo no governo, pelo receio de algum mal-entendido. A greve do frade ficou como assunto da Presidência, que a ele mandou a carta de Lula, e nada se alterou. Até anteontem. Quando Ciro Gomes foi consultado sobre a possibilidade de receber um visitante: um sobrinho de frei Luiz Flávio Cappio.
O juiz de direito Luiz Roberto Cappio levava a Ciro Gomes a sua convicção de que uma conversa com o frade poderia encaminhar a solução do impasse, e indagava de tal possibilidade. Pelos cuidados que cercaram a consulta, deve ter-se surpreendido: Ciro Gomes dispôs-se a ir naquela mesma noite, pensando em requisitar um avião da FAB que o levasse direto a Cabrobó, o recanto pernambucano onde frei Luiz faz sua greve de fome. Era a sensatez afinal em marcha.
Era. O juiz Luiz Roberto Cappio quis telefonar a Cabrobó. Sua conversa foi com um certo Adriano, que ao governo consta ser uma espécie de assessor-técnico de frei Luiz nas questões da transposição do rio. Já com algum tempo de diálogo aparentemente embaraçado, o juiz Cappio interrompeu-o para dirigir-se a Ciro Gomes: seu interlocutor telefônico pedia que o ministro se ausentasse. Como suas instalações constam de duas peças de hotel, Ciro deixou o juiz no quarto e trancou-se no banheiro, para a longa espera pelo desfecho de um telefonema longo.
Pronto. Ou melhor, nada ficaria pronto. O juiz Luiz Roberto Cappio informou Ciro Gomes de que sua ida a Cabrobó não era desejada. Ou pelo frade ou pelo assessor ou por ambos, não ficou bem esclarecido. Por quê? Não ficou bem esclarecido.
O que parecia ser uma situação clara, contrapondo a gravidade de uma greve de fome séria e a imobilidade perplexa do governo, tem ingredientes obscuros. Diante dos quais, o que pareceria encaminhamento sensato se revela um impasse a mais.
Como toda a mídia, não acompanhei o desenrolar dos trabalhos, percalços, interesses envolvidos e debates motivados pela erroneamente chamada transposição do rio São Francisco, que não seria ou será transposto para parte alguma. Nos últimos dias, procurei reduzir o meu débito no assunto. Não há dúvida de que Ciro Gomes está dotado de argumentação muito sólida, proveniente de estudo pessoal minucioso e de providências técnicas e jurídicas incomumente rigorosas. Isso não elimina o aspecto polêmico do projeto, mas acentua a necessidade, para o debate clareador, de informação pública que, se a mídia omitiu por descaso, o governo omitiu por deformação de seus gastos de publicidade e comunicação, voltados para a política reeleitoreira.

FSP, 06/10/2005, Brasil, p. A5

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