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A água que vai apagar a história

CB, Cidades, p. 32-33
31 de Out de 2004

A água que vai apagar a história
Com o fechamento das comportas da hidrelétrica de Corumbá IV, previsto para abril de 2005, relíquias pré-históricas e antigas fazendas de Goiás ficarão submersas. Pesquisadores trabalham para resgatar essa riqueza

Renato Alves
Da equipe do Correio

Pelo menos uma vez por semana, a agricultora Maria Floripes Dutra, 48 anos, vai ao antigo casarão da família, na área rural de Alexânia (GO).
Passa horas sozinha dentro dos 13 cômodos vazios da sede da Fazenda São Bernardo. Sempre que entro lá, choro bastante, sofro tanto, desabafa. O prédio de quase 200 anos está com os dias contados. Mesmo com a estrutura intacta, o seu destino é a destruição. Ele fica na área a ser alagada com o fechamento das comportas da hidrelétrica de Corumbá IV.
O reservatório da usina, que será cinco vezes maior do que o Lago Paranoá e ocupará terras de cinco municípios goianos, deixará outras fazendas centenárias submersas.
O completo enchimento da represa está previsto para abril. Até lá, 631 famílias terão abandonado suas antigas casas. Em troca, ganharão indenização da empresa responsável pela obra, a Corumbá Concessões.
A família Dutra, que recebeu R$ 1,4 milhão por 11 glebas de terras desapropriadas, ainda tem esperança de salvar a sede da Fazenda São Bernardo. Morador da localidade rural onde fica a propriedade, o arquiteto Wladimir Rosa lidera um movimento para reconstruir em outro lugar o casarão. A Corumbá Concessões cedeu a casa e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) aprovou o projeto de remoção.
Wladimir, agora, corre contra o tempo.
Ele busca patrocínio para realizar o projeto, orçado em R$ 350 mil. Primeiro, precisamos pelo menos desmontar o casarão para preservar os tijolos, telhados e madeira, explica. Depois, teremos tempo de sobra para refazê-lo. A idéia é remover a casa para um terreno comprado por Wladimir na comunidade de Olhos DÁgua, também em Alexânia. Ele tenta patrocínio por meio das leis de incentivo à cultura do governo federal, que oferece descontos em impostos para as empresas financiadoras de projetos desse tipo.
Os Dutras torcem para aparecer logo um interessado. Ali está toda nossa história, ressalta Maria Floripes. Ela é a filha caçula de Ana Pereira Dutra, a última moradora da Fazenda São Bernardo. Conhecida como Dona Nega, Ana Pereira morou no casarão até morrer, aos 82 anos, em 15 de janeiro.
Ela testemunhou parte importante da história de Goiás e do Brasil.
Dona Nega era a integrante mais velha da família Dutra, que ajudou a colonizar o interior goiano. A sede da Fazenda São Bernardo, construída entre o final do século XVIII e o início do século XIX, foi centro do comércio da região. Ela era ponto de venda e troca dos produtos das fazendas de Alexânia e cidades vizinhas, conta a arqueóloga Dilamar Candida Martins, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG).
A constatação da pesquisadora veio com a descoberta de documentos na sede da fazenda.
Livros com capa dura guardam a rica e detalhada contabilidade da propriedade, com compras e vendas em grandes quantidades.
Os documentos foram restaurados, copiados e devolvidos à família de Dona Nega. As cópias ficaram no Museu Antropológico da UFG, em Goiânia.
Resgate
A recuperação desses documentos é uma pequena parte do extenso e delicado trabalho desenvolvido pela equipe chefiada por Dilamar Martins. Ela e outros técnicos goianos passaram dois anos nas áreas a serem inundadas pelo reservatório de Corumbá IV. Tudo para minimizar o impacto da usina, que, além de gerar energia elétrica, terá papel fundamental no abastecimento de água do Distrito Federal e Entorno — garantindo água para a região nos próximos cem anos.
De janeiro de 2002 a janeiro de 2004, os técnicos escavaram sítios arqueológicos, resgataram peças e documentos históricos e registraram em fotos e vídeos costumes e tradições singulares dos moradores das áreas rurais. Trabalho que custou R$ 2 milhões, financiado pela Corumbá Concessões.
O resgate arqueológico é apenas uma das exigências do Iphan para liberação da licença da obra.
Todo o acervo foi identificado e catalogado.
Alguns itens ainda estão em processo de restauração. Depois de recuperados, ficarão guardados em salas climatizadas ou expostos no Museu Antropológico da UFG. São objetos em cerâmica, porcelana, madeira, ferro e cobre. Alguns com 300 anos. Entre eles, utensílios de cozinha, móveis e ferramentas de trabalho. Relíquias dos tempos em que o país vivia da exploração da cana-de-açúcar, do café e da mão-de-obra escrava. Período de riqueza e ostentação nas casas grandes e do surgimento da cultura goiana.
Índios
Além dos sítios históricos, foram encontrados e explorados sítios pré-históricos na região a ser alagada pela represa. Os pesquisadores retiraram fragmentos de cerâmicas e instrumentos de pedras feitos pelos primeiros habitantes do Planalto Central brasileiro.
Índios que viviam nas terras onde hoje estão Goiás e o Distrito Federal, séculos antes da chegada dos portugueses ao Brasil. O mais importante disso tudo é que se trata do primeiro trabalho científico naquela região, ressalta a arqueóloga. Os pesquisadores concluíram que as comunidades indígenas pioneiras das margens do Rio Corumbá viviam em grandes aldeias, formadas por cabanas de diferentes tamanhos e formas. A prova da presença desses povos na região veio com a descoberta de fragmentos de cerâmicas e instrumentos feitos em pedra lascada e polida. Objetos usados na caça e preparo da comida.O material estava em péssimo estado de conservação. O problema é que aquela terra é muito boa e por isso foi bastante remexida ao longo dos anos.
Mas o estado de conservação não diminui a importância dos achados. A pesquisadora destaca que o estudo possibilita a reconstrução da história da colonização do Centro-Oeste do país. É fundamental também para aquelas comunidades terem uma referência do seu passado, completa. O relatório do trabalho, recheado de imagens e cópias de documentos antigos, está editado em seis volumes de livros e em um vídeo.
Depois de aprovados pelo Iphan, eles serão entregues aos moradores das fazendas estudadas e instituições de ensino.
Alguns moradores das propriedades que serão cobertas pelas águas do Rio Corumbá doaram documentos e objetos históricos ao Museu Antropológico da UFG. Em outros casos, a Corumbá Concessões deixou os ribeirinhos levarem telhas e madeiras de suas casas. Mesmo após pagarmos a indenização, que nos dá o direito de ficar com a terra e todo o imóvel, explica a geógrafa Laura Urrejola, gerente de meio ambiente da empresa.

Projetos Ambientais
Além do resgate de sítios históricos e pré-históricos, a Corumbá Concessões realiza outros 22 projetos sociais e ambientais na área atingida pela obra da hidrelétrica de Corumbá IV, ao custo de R$ 23 milhões. São exigências de órgãos do estado de Goiás e federal, como o Iphan e o Ibama, para liberação do empreendimento. Entre os projetos, há a educação das comunidades ribeirinhas, voltada principalmente para a preservação do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural da região. Também foram desenvolvidas pesquisas da fauna e flora. Os prefeitos das cinco cidades goianas que terão terras inundadas receberão orientação para ordenar a ocupação e exploração da orla do reservatório da usina.

Ajuda
Interessados no projeto de remoção e reconstrução da sede da fazenda São Bernardo, que fica em Alexânia (GO), devem entrar em contato com o arquiteto Wladimir Rosa pelos Telefones (62) 322-6268 e (61) 9904-7660.

Gameleira
Os arqueólogos encontraram dezenas de gameleiras de madeira nas fazendas às margens do rio Corumbá. A da foto tem mais de 200 anos
Para os pés
O estribo de metal era um dos componentes da tralha de montaria nos séculos XVIII e XIX. Servia como proteção para os pés das mulheres durante as cavalgadas
Escumadeira
O instrumento de cobre era usado na fabricação de melado, guloseima feita à base de cana-de-açúcar. A peça encontrada na Fazenda São Bernardo também foi restaurada em Goiânia
Porcelana
Nos arredores dos casarões centenários foram encontrados fragmentos de porcelanas com mais de 200 anos
Pote
Potes cerâmicos em argila foram encontrados nas sedes das fazendas Paulista I e II. Algumas das peças, feitas de forma artesanal, têm mais de 100 anos, segundo os pesquisadores
Moedor
O café cultivado e consumido nas fazendas goianas era moído em instrumentos de ferro como este, que foi restaurado na Universidade Federal de Goiás

Tesouros do período colonial
O resgate dos sítios arqueológicos na área a ser inundada pelo reservatório da hidrelétrica de Corumbá IV permite saber a idade aproximada de casarões onde viveram senhores de engenho e seus escravos e conhecer o modo de vida dessa gente. Além da sede da fazenda São Bernardo, pelo menos três propriedades merecem destaque por parte dos pesquisadores. Todas estão na outra margem do rio Corumbá, nos municípios de Silvânia e Luziânia. Mas, ao contrário da São Bernardo, para elas não há planos de salvamento. Todas as propriedades têm vestígios dos ciclos da cana-de-açúcar e do café.
Além da arquitetura idêntica, preservam engenhos e muros de pedra, construídos pelos negros. O prédio mais antigo e melhor conservado é o da sede da fazenda Engenho Velho, em Silvânia. O seu maior valor é o conjunto arquitetônico, destaca a arqueóloga Dilamar Cândida Martins, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG).
A propriedade também pertence à família Dutra, dona da fazenda São Bernardo.
Na sede da fazenda Engenho Velho, foram encontrados diversos elementos característicos do período colonial brasileiro, como ferramentas usadas no processo de produção, fornos e panelas artesanais. Até o começo do ano, o terreno era usado no plantio de soja e pecuária leiteira.
Outras duas fazendas de grande relevância histórica ficam em Luziânia. Nas sedes da Paulista I e Paulista II, os arqueólogos também encontraram farto acervo de ferramentas e objetos usados na produção da cana-de-açúcar. As propriedades guardavam ainda vasilhames e móveis antigos, usados pelos donos dos imóveis e seus escravos.
Indenizações
Das 631 famílias que terão as terras atingidas pelo reservatório de Corumbá IV, 75% já receberam indenização. A maioria foi reassentada na mesma localidade, em terrenos mais altos, livres da ameaça de alagamento. Uma das nossas preocupações era não deixá-los migrar para a cidade, diz a geógrafa Laura Urrejola, gerente de meio ambiente da empresa. O restante das famílias recorreu à Justiça por entender que os valores oferecidos estão aquém do que vale sua propriedade. Já foram gastos R$ 30 milhões em desapropriações.
O agricultor José Moreira Dutra, 81 anos, aceitou os R$ 120 mil pagos pelos 160 hectares de suas terras. Mas reclama do prejuízo que teve com as fortes chuvas de março. Por causa das obras de Corumbá IV, o rio subiu tanto que chegou ao quintal da casa do agricultor, na área rural de Alexânia. O alagamento provou a morte de boa parte do pasto da fazenda. Umas 30 cabeças de gado morreram de fome. José Dutra, que criou os nove filhos na fazenda, planeja construir a nova casa a 100 metros da atual. Além da residência de seis quartos, de 60 anos, ele perderá o curral, onde mantém 300 bois, vacas e cavalos. O que mais dói é o pasto, que estava todo preparado.

Visitas
Objetos e documentos históricos e pré-históricos resgatados por arqueólogos goianos na área a ser alagada pela represa de Corumbá IV podem ser consultados e visitados no Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás, que fica em Goiânia, na Praça Universitária, 1166, Setor Universitário. É recomendado o agendamento de visitas pelo telefone (62) 209-6010, ramal 42.

CB, 31/10/2004, Cidades, p. 32-33

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