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Água desaparece?

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
09 de Jan de 2004

Água desaparece?

Washington Novaes

Só faltava essa. No preocupante e delicado panorama dos recursos hídricos no Brasil, em que acontece de tudo, só faltava mesmo desaparecer água. Pois não falta mais. Conforme noticiou este jornal (30/12 e 6/1), o Ministério Público está abrindo inquérito "para apurar o sumiço de água" da Represa de Itupararanga, que abastece seis cidades da região de Sorocaba e está com o nível mais baixo dos últimos dez anos. Os córregos e rios formadores, que há uma década despejavam 12,99 m3 de água por segundo na represa, hoje contribuem com 7,33 m3 - ou 43,6% menos. Ambientalistas atribuem a perda ao desmatamento, uso na irrigação e outros problemas.
É quase inacreditável que em tempos tão conturbados nessa matéria não se disponha ainda, mesmo no Estado mais desenvolvido da Federação, de um sistema eficaz de informações sobre recursos hídricos, os vários usos, outorgas, problemas com reduções de vazões e suas causas. Quando estas últimas ocorrem, será por causa do desmatamento, da compactação do solo, de dificuldades de reposição dos aqüíferos subterrâneos? Serão conseqüência do aumento da evaporação por causa do uso de pivôs centrais e/ou da implantação de canais de irrigação? Serão alterações no regime hidrológico em função de mudanças climáticas? Ou serão conseqüência da ocupação de áreas de mananciais? Ou, ainda, do assoreamento de mananciais por sedimentos decorrentes do alto índice de erosão do solo nas culturas e da deposição de efluentes de criações - bovina, suína, aves? São muitas possibilidades e hipóteses.
Mais difícil ainda de entender é que não se tenha montado um sistema de respostas rápidas e eficazes a esses problemas, num momento em que a comunicação se povoa de notícias sobre enchentes em vários Estados, conflitos pelo uso da água, queda no nível histórico de chuvas (em São Paulo, no mês de dezembro, 30% menos que um ano antes), ameaças de racionamento. E só se fale em novas captações e aduções. Levando o professor Aldo Rebouças, da USP, a espantar-se com que sejamos "o único país que combate escassez de água com mais oferta, quando podemos chegar a 2010 sem água na torneira por conta do mau uso".
É certo que a Agência Nacional de Águas (ANA) dispõe de 5.500 postos de medição de vazões e aferição de qualidade da água. Mas pouco mais pode fazer, já que não está recebendo um só centavo do orçamento federal. No ano passado, por exemplo, foram previstos R$ 183,4 milhões de recursos orçamentários, mas ela só recebeu R$ 63,2 milhões - menos do que o montante com que ela mesma contribuíra para o Tesouro Nacional (R$ 90 milhões, provenientes do pagamento que lhe fazem as usinas hidrelétricas pelo consumo de águas de rios federais; aliás, uma contribuição mínima pelo uso de patrimônio público por empresas que têm faturamento na casa dos bilhões de reais). Para este ano, se não houver novo contingenciamento de verbas para ajudar o ajuste fiscal, receberá R$ 76,4 milhões, de novo abaixo de sua contribuição para o Tesouro.
Deveríamos estar muito mais preocupados. Principalmente em São Paulo. Este ano, por exemplo, vence o prazo de outorga que permite a reversão, para a região metropolitana, da maior parte das águas da bacia dos Rios Piracicaba, Jundiaí e Capivari. Não é difícil imaginar os conflitos que advirão para uma cidade como a capital paulista, que gera em seu território apenas 15% da água que consome. Simultaneamente, um conselho que reúne mais de 50 entidades da sociedade em Piracicaba já ajuizou ação civil pública contra a Sabesp, a Secretaria de Recursos Hídricos do Estado e a ANA, por "prejuízos causados pelo Sistema Cantareira à bacia daqueles rios". Ele pede uma compensação no valor de R$ 11,4 bilhões pela retirada de água há 30 anos (hoje são 31 m3 por segundo do Rio Piracicaba), a cessação imediata dessa utilização e compensações aos municípios da bacia.
Enquanto isso, não se consegue fazer tramitar na Assembléia Legislativa de São Paulo o projeto que ali está há mais de três anos, sobre cobrança pelo uso da água. Os vários lobbies (agricultura, pecuária, indústria, empresas de abastecimento e outros) impedem. E sem ele dificilmente haverá recursos para aplicar os planos aprovados pelos comitês de gerenciamento de bacias.
E, para completar o quadro, já se tem o conflito judicial entre Sabesp e Prefeitura de São Paulo, para definir a quem cabe planejar e controlar o abastecimento de água na cidade.
Não é um privilégio paulistano. Também o Congresso Nacional não define a política nacional de saneamento básico - que o Ministério das Cidades ainda quer modificar. Os conflitos nessa área são da mesma forma numerosos, principalmente a definição de "titularidade da concessão" nas regiões metropolitanas, onde os sistemas de água e esgotos em geral são interligados. A titularidade é das empresas estaduais ou dos municípios? A disputa acirrada não é apenas por causa do poder político, mas também porque deter a concessão pode significar muito dinheiro se houver privatização dos serviços (embora nesse caso se pergunte quem vai pagar pela implantação dos serviços - principalmente redes de coleta e estações de tratamento de esgotos - em áreas pobres, que não suportam tarifas mais altas, que ocorrem no mundo todo com as privatizações).
A ANA tem caminhado para uma solução provisória, que é pagar pelo tratamento de esgotos. Segundo seu presidente, Jerson Kelman, é melhor do que financiar obras, porque nestas as empreiteiras costumam impor custos maiores e desnecessários (entrevista ao Jornal do Meio Ambiente, outubro de 2003). Já procedeu assim em 34 cidades, a um custo de R$ 78 milhões. Importante, mas apenas uns nove milésimos do que o Ministério das Cidades calcula ser necessário gastar por ano (quase R$ 9 bilhões) para "universalizar" os serviços de água e esgotos em 20 anos.
Nessa área dos recursos hídricos, ainda haveria muito a discutir - como a anunciada decisão de partir para a transposição das águas do Rio São Francisco ou o projeto de construção da Hidrelétrica de Marabá, extremamente problemático para toda a chamada região do Bico do Papagaio. Mas ficam para outra hora. E, de qualquer forma, os problemas colocados à mesa já são massa indigesta.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 09/01/2004, Espaço Aberto, p. A2

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