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AGU intervém e concessão de terras para quilombolas é suspensa

OESP, Nacional, p. A4
15 de Mar de 2008

AGU intervém e concessão de terras para quilombolas é suspensa
Advocacia da União quer reduzir poder do Incra, que considera excessivo, mas comunidades resistem a mudança

Roldão Arruda

Por uma falha interna do governo, o processo de demarcação de terras de remanescentes de quilombos está sendo paralisado no País. O centro do problema está localizado no órgão encarregado de demarcar e titular as terras - o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). De acordo com análises internas, a autarquia concentrou poderes excessivos e criou atritos com outras instituições, como a Marinha e os Ministérios do Meio Ambiente e o da Defesa, entre outros.

Desde dezembro o governo tenta mudar a Instrução Normativa no 20, com a qual o Incra definiu, em setembro de 2005, suas tarefas em relação aos quilombos. Mas não obtém sucesso por causa dos quilombolas: eles se recusam a discutir a nova instrução normativa e o governo não pode colocá-la em vigor sem ouvi-los.

Por causa do impasse, os órgãos oficiais continuam tocando os processos de demarcação em andamento, mas relutam em aceitar novos pedidos. Daí a paralisia que já se verifica.

A polêmica começou em setembro. Foi quando o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), vinculado à Presidência da República, depois de receber reclamações de diferentes órgãos do governo, encaminhou à Advocacia-Geral da União (AGU) um pedido para coordenar um grupo de trabalho interministerial - com a tarefa de aparar as arestas e aprimorar as demarcações.

Após dois meses e meio de debates, a AGU concluiu que o nó do problema estava na instrução do Incra, como explica o consultor-geral da União, Ronaldo Araújo Vieira Júnior: "Em 2003, quando o presidente Lula assinou o Decreto 4.887, que regulamenta o artigo 68 das Disposições Constitucionais, sobre a legalização de quilombos, ele transferiu para o Incra a tarefa de demarcar e titular as terras. Em 2005 o Incra publicou sua instrução, com orientações para o trabalho. Mas assim que foi posta em execução ela causou problemas."

Segundo o consultor, o maior problema foi o excesso de poderes dados aos funcionários da autarquia na solução de conflitos. "Hoje, quando surgem controvérsias jurídicas entre órgãos do governo sobre as áreas reivindicadas pelos quilombolas, quem resolve é o superintendente regional do Incra", diz, dando um exemplo. "Na minuta da instrução normativa que preparamos, e que está à espera de discussão, o órgão encarregado de dirimir as dúvidas jurídicas será a AGU. Ela decidirá, por exemplo, se é o Incra ou o Ibama que está com a razão numa disputa. Por outro lado, se a controvérsia for política, ela será dirimida pela Casa Civil."

BALIZAS

A nova instrução também detalha balizas técnicas para definição dos quilombos. "Do jeito que está, o texto parece carta de princípios. A proposta é usar como paradigma a portaria que trata do reconhecimento das terras indígenas e eliminar critérios subjetivos", conta Vieira.

A minuta trata até da contratação de antropólogos para o trabalho de certificação dos quilombos. "Tivemos que especificar que antropólogos que possuem contratos de trabalho com as comunidades quilombolas não podem ser usados nesta tarefa, para não haver contradição de interesses."

Para o consultor, o eixo norteador das mudanças é a sustentabilidade jurídica: "Não adianta fazer demarcações a toque de caixa, para mais tarde vê-las derrubadas no Judiciário."

A minuta está pronta desde dezembro. Mas para vigorar o governo precisa apresentá-la às comunidades quilombolas - uma vez que o País é signatário da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), pela qual povos indígenas e tradicionais devem ser consultados sobre leis que afetem suas comunidades.

Os quilombolas não aprovam a minuta. Seus representantes estão se reunindo para discutir uma estratégia de ação, mas evitam falar sobre o assunto. Na opinião do deputado estadual Simão Pedro (PT-SP), coordenador da Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades Quilombolas, a retração dos quilombolas é justificável: "A demarcação de suas terras tem sofrido tantas pressões contrárias e tantos ataques da bancada ruralista do Congresso que é natural desconfiarem da mudança. Acho que o governo não deve recuar e deve manter a instrução do Incra."

No Incra, a assessoria de imprensa informa que a instituição apenas leva adiante pedidos de demarcação que recebe; e que a Instrução Normativa no 20 permanece em vigor.

Há 1.170 comunidades certificadas e 3.524 na fila
Até o fim do ano, a Fundação Palmares, do Ministério da Cultura, já tinha certificado 1.170 comunidades quilombolas - o que lhes permitia apresentar-se ao Incra para reconhecimento, demarcação e titulação das terras que reivindicam. Outras 3.524 comunidades estavam na fila, após terem dado o primeiro passo, que é a autodeclaração de remanescente de quilombo.

Mas, de acordo com a avaliação de organizações do movimento negro, o número de comunidades deve passar de 5.500. O Incra calcula que, se forem atendidos todos os pedidos, o governo federal terá que titular um total de 25 milhões de hectares para os quilombolas - o equivalente ao Estado de São Paulo, que tem 24,8 milhões de hectares.

As demarcações iniciadas causaram conflitos com proprietários rurais, fato que vem mobilizando a bancada ruralista no Congresso. E também com órgãos do governo. Em Rondônia, os quilombolas reivindicam uma área que o Ibama afirma ser parte de uma reserva biológica quase intocada.

Uma das polêmicas mais azedas ocorre na Ilha da Marambaia, uma área de 106 mil hectares, no litoral do Rio de Janeiro, que é controlada pela Marinha e vem sendo reivindicada pelas famílias de pescadores que vivem ali - e que se autodeclaram remanescentes de quilombos. Acredita-se que foi essa briga com a Marinha que deu origem à revisão das normas sobre a demarcação das terras pelo Incra.

OESP, 15/03/2008, Nacional, p. A4

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