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Agricultura em Santarém: progresso ou ameaça?

OESP, Geral, p. A12
01 de Fev de 2004

Agricultura em Santarém: progresso ou ameaça?
Depois da borracha, do ouro e da madeira, só se fala em arroz e soja na cidade paraense

HERTON ESCOBAR

Floresta e agricultura estão brigando por espaço em Santarém, na Amazônia Oriental. Palco de encontro dos Rios Tapajós e Amazonas, a mais importante - porém de aparência decadente - cidade do oeste paraense é hoje uma das mais promissoras, e polêmicas, fronteiras agrícolas do País. Depois da borracha, do ouro e da madeira, que ditaram os rumos da vida na cidade ao longo do último século, em Santarém hoje só se fala em duas coisas: soja e arroz.
Produtores de todo o País chegam diariamente para comprar terras nos arredores da cidade. Com eles, entram em cena interesses políticos, econômicos e ambientais que, assim como as águas dos rios, têm dificuldade em se misturar. Muitos vêem a agricultura como um motor de desenvolvimento, mais do que bem-vindo em uma região carente de perspectivas econômicas.
Outros enxergam a atividade como uma ameaça à floresta amazônica, mais propensa a destruir o meio ambiente do que gerar empregos.
No centro do debate está o novo porto graneleiro da multinacional Cargill, uma imponente estrutura de concreto e metal com capacidade para escoar 1.500 toneladas de grãos por hora. O logotipo da empresa, impresso no telhado de um grande silo prateado, domina a paisagem dos barcos enfileirados à borda do calçadão.
As mudanças, no entanto, são perceptíveis por toda a cidade. Caminhonetes reluzentes, de cabine estendida e vidros fumês, antes uma raridade, são comuns por todos os lados. Nas calçadas, nos restaurantes e nas filas de empréstimo do banco, não é difícil ouvir o sotaque dos "gaúchos", como os santarenos chamam todos aqueles que vêm do Sul.
Muitos dos gaúchos, na verdade, vêm do vizinho Mato Grosso, onde a soja bate recordes de produtividade, mas falta uma rota de escoamento para a produção.
Em 1998, a prefeitura de Santarém encomendou um levantamento do potencial agrícola do município. Descobriu que era grande e foi até Mato Grosso divulgar os resultados.
"As expectativas são as melhores possíveis", diz o empresário Andrigo Zuchelli, um dos muitos que atenderam ao chamado. No encalço dos agricultores, ele encaixotou o negócio em Sorriso e abriu uma loja de insumos agrícolas em Santarém. "A cada ano dobra o número de produtores aqui. A soja substituiu o ouro."
Segundo o secretário de Agricultura, Rosivaldo Colares, a cidade tem entre 500 mil e 600 mil hectares de floresta antropizada - já modificada pelo homem -, que podem ser usados para a agricultura. "Com o fim do garimpo, ficamos à deriva, sem direcionamento econômico. Precisamos tirar o município da estagnação." Ele também vê o porto como o caminho para um "sonho maior":
a pavimentação da BR-163, que liga Santarém a Cuiabá.
Em 2002, segundo Colares, a agricultura ocupava 18 mil hectares do município - todos eles plantados com arroz, cultura que se beneficia do clima úmido e prepara o solo para a soja. Em 2003, essa área já aumentou para 42 mil hectares: 35 mil de arroz e 7 mil de soja. A previsão oficial para 2004 é de 80 mil hectares cultivados: 60 mil com arroz e 30 mil com soja.
Agricultores, entretanto, falam em 150 mil hectares já para este ano.
O valor da terra também explodiu. O preço de um hectare, que há cinco anos custava R$ 25, hoje passa facilmente de R$ 1 mil, segundo Rosivaldo.
Investimentos - O comércio também está otimista com os novos consumidores. O PIB do município cresceu de R$ 563 milhões, em 1998, para R$ 1,235 bilhão, no ano passado, segundo levantamento do economista José de Lima Pereira. "Se melhora o comércio, melhora a economia como um todo", avalia o presidente da Associação Empresarial de Santarém, Renato Siqueira Dantas. Seu objetivo é trazer para a região um pouco da riqueza de São Paulo - cidade que, apesar da poluição e da criminalidade, é vista como um ícone do desenvolvimento.
"Se lá as pessoas sonham em ter 100 hectares de floresta, nós sonhamos em ter 20 indústrias aqui", diz Dantas. "Esse negócio de deixar a Amazônia intocada não vai funcionar. Tem que se criar áreas de preservação, mas as áreas que puderem ser exploradas para a sobrevivência das pessoas precisam ser aproveitadas."
É o que está fazendo o gaúcho Ceser Busnello, de Erechim, que chegou a Santarém há três anos para plantar arroz e soja. Trabalhando em uma área de 150 hectares em Santarém e outra de 600 hectares em Alenquer, do outro dado do rio, Busnello garante que a produtividade na região pode ser tão boa quanto a do Sul e Centro-Oeste, apesar da crença de que o solo amazônico não presta para a agricultura. "O importante é o clima", diz. "O solo a gente corrige." Na última safra, o produtor colheu 3.500 quilos de arroz e 3 mil quilos de soja por hectare - em Mato Grosso, diz, a média é de 3.500 quilos.
"Vejo Santarém como Cuiabá nos anos 70. Mas acho que o ciclo (da agricultura) vai acontecer ainda mais rápido aqui", diz o paranaense Caetano Rubens Vendruscolo, que deixou Sorriso, em Mato Grosso, para arrendar 250 hectares de terra em Alenquer. "Por enquanto é só um experimento. Se fecham o porto da Cargill, todo mundo vai embora."
Ao contrário de agricultores mais moderados, ele defende abertamente a derrubada da floresta. "Tem de derrubar mesmo, para gerar riqueza", diz.
"Nós estamos preservando a natureza muito mais lá (no Paraná) do que o pessoal aqui."
A geógrafa Ane Alencar, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), atesta que as terras ocupadas até agora são de áreas já degradadas.
Mas adverte: "Quando acabarem essas áreas, certamente vão partir para o desmatamento." Tanto ela quanto os agricultores e a secretaria municipal defendem o zoneamento agroecológico da região como forma de determinar quais áreas podem ser exploradas e quais precisam ser preservadas. "De outra maneira, as autoridades vão sempre optar pela opção que dá mais dinheiro.
Nesse caso, a soja", conclui Ane.
Cargill enfrenta a oposição de ambientalistas Ação contesta instalação de terminal da multinacional no porto, feita sem EIA-Rima
SANTARÉM - Um dos primeiros sojicultores gaúchos a chegar a Santarém, ainda na década de 80, foi Severino Dombrowski, o Polaco, de Santa Rosa. Ao contrário de colegas recém-chegados, porém, ele não veio para plantar soja, mas para se distanciar dela, depois de uma intoxicação por agroquímicos que o deixou em coma por cinco dias. Hoje, vivendo como seringueiro na Floresta Nacional do Tapajós, vê sem entusiasmo o crescimento das fazendas na região. "Vim até aqui fugindo da soja, mas ela me seguiu", diz. "Agora, correr daqui, só se for para o cemitério."
O futuro da soja no oeste paraense está diretamente ligado ao terminal de grãos da Cargill, inaugurado em abril, com investimento de US$ 20 milhões.
Instalado em área de concessão da Companhia Docas do Pará (CDP), o porto é tema de acirrada batalha jurídica que, em muitos aspectos, lembra a polêmica dos transgênicos. De um lado, grupos ambientalistas. Do outro, uma empresa multinacional, maior exportadora de soja no País. E, em debate, a exigência de um estudo de impacto ambiental (EIA-Rima).
"O porto é um símbolo da chegada da soja à Amazônia", diz o procurador da República no Pará Felício Pontes, que, alertado por organizações não-governamentais, entrou com a primeira ação contra a licitação do projeto pela CDP, em 1999. O terminal foi instalado em área de 45 mil metros quadrados, ao lado do porto da CDP, onde havia uma praia urbana. Segundo Pontes, a licitação não poderia ter ocorrido sem a realização prévia do EIA-Rima, "para dizer o que poderia e o que não poderia ser feito".
Ambientalistas temem o impacto da água de lastro dos navios de outros continentes, que terá de ser despejada no Tapajós.
A Cargill afirma que tem licença de operação e o terminal foi construído em área que já era concessão portuária. Portanto, não precisa do EIA-Rima. "A Cargill está cumprindo tudo o que determina a lei", disse a gerente de Assuntos Corporativos da empresa, Maria Helena Miessva. Outra cobrança do Ministério Público é de que haveria um sítio arqueológico sob o local, mas, segundo a empresa, nada foi encontrado.
Uma ordem judicial do início de janeiro fez com que o porto suspendesse as atividades no dia 19. Mas o fechamento durou menos de 24 horas, revogado até a retomada dos trabalhos do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região, neste mês. "O porto pode até funcionar, desde que tenha o EIA-Rima para dizer como", diz Pontes.
Mais preocupante do que o impacto no rio, segundo ele, é o estímulo à produção de soja nos arredores. O procurador teme que a região siga o mesmo destino do sul do Pará, onde madeireiros e pecuaristas acabaram com a floresta e deixaram um rastro de pobreza. "O resultado é que a região é hoje um barril de pólvora, com o maior índice de trabalho escravo e assassinato de trabalhadores rurais no País", diz. "O que o governo tem de decidir é se a soja é o caminho para o desenvolvimento na Amazônia."
Para o taxista Francisco Antonio Clarindo de Souza, o terminal da Cargill "é a melhor coisa que já fizeram". "A praia que tinha lá era um motel a céu aberto. Só tinha prostitua, bandido e cheirador de cola", diz. "Por que as ONGs não vem aqui brigar por causa do esgoto que jogam no rio?", esbraveja, apontando para a sujeira que se acumula na orla. Para outro taxista, a soja representa um "falso progresso". "Estão acabando com a nossa Amazônia."
O mecânico João Araújo Pereira, que conserta motores em uma oficina próxima ao porto, reclama que nem a Cargill nem os agricultores empregam mão-de-obra local. "Não tem ninguém em Santarém que sabe trabalhar com soja", diz. "Para nós, que somos pobres, não muda nada." O terminal da empresa tem 39 funcionários.
Na loja de máquinas e utensílios agrícolas Comam, uma das mais tradicionais da cidade, o gerente Wilson Soares de Oliveira disse que ao mesmo tempo que ganha um novo cliente perde outros três ou quatro - pequenos agricultores que venderam suas terras. "De início parece bom, mas, a longo prazo, não tenho certeza."
A compra desenfreada de terras e o êxodo de pequenos agricultores para a cidade é apontada como um dos efeitos negativos do latifúndio. A preocupação chegou até à Reserva Extrativista do Tapajós-Arapiuns (Resex), na outra margem do Tapajós - que nesse ponto tem 16 quilômetros de largura. "Se não fosse a Resex, já teríamos um problema enorme aqui", afirma Miguel Lima, coordenador da associação de moradores, que sobrevive da produção de farinha e látex. "O desenvolvimento da Cargill é uma mentira. Quem tem de construir nosso desenvolvimento somos nós mesmos." (H.E.)

OESP, 01/02/2004, Geral, p. A12

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