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Agora vou reorganizar o governo, avisa Dirceu

OESP, Nacional, p. A4-A6
25 de Jan de 2004

Agora vou reorganizar o governo, avisa Dirceu
Liberado das tarefas diárias do Planalto, ele quer fazer andar melhor a máquina do Estado

Lourival Sant'Anna

O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, se dedicará a partir de agora a reformar a máquina administrativa e a melhorar a gestão e o planejamento. Liberado da articulação política, Dirceu antecipa que promoverá mudanças em órgãos como o Incra, o Ibama, a Embrapa e a Funai, entre outros, além de acompanhar de perto o desempenho dos ministérios.
Em entrevista exclusiva ao Estado, na manhã de quinta-feira, no calor da reforma ministerial, Dirceu reconheceu que a coordenação de governo e o acompanhamento da gestão dos ministérios ficou em segundo plano no ano passado. Premido pela necessidade de aprovar as reformas no Congresso, o ministro concentrou suas atenções na articulação política, função que acumulava com a de coordenação do governo.
Dirceu garantiu que não interferirá no trabalho do novo ministro da Coordenação Política, Aldo Rebelo. O ministro lembra que presidiu o PT durante sete anos e, depois de deixar o cargo para José Genoino, não interferiu mais nos assuntos do partido. "É isso que vai acontecer agora", disse ele. "Vou me concentrar naquilo que quero, gosto e preciso."
Estado - Depois de um ano tão intenso de relacionamento com o Congresso, o sr. conseguirá se afastar da articulação política?
José Dirceu - Depois que saí da presidência do PT, nunca mais voltei lá. Na última reunião do diretório nacional, eu nem falei. E olha que presidi o PT durante sete anos. Vamos falar francamente: eu não presidi apenas o PT.
Dirigi o partido dentro de um projeto de conquistar a Presidência da República. Fui o articulador político do PT. E nunca mais dei opinião. É isso que vai acontecer agora. O Aldo Rebelo vai ser ministro e será o responsável pela articulação política do governo junto ao Congresso, aos prefeitos e governadores. As duas secretarias (de Assuntos Parlamentares e de Assuntos Federativos, antes na Casa Civil) ficarão no gabinete dele. Eu vou ser secretário de assuntos governamentais e jurídicos do País. Vou fazer ação governamental. Vou me concentrar naquilo que quero, gosto e preciso. O governo precisa disso. Eu passo a ser um ministro para dentro do governo, coisa que eu já tinha proposto na metade do ano passado.
Estado - Com a concentração de funções, a coordenação de governo ficou em segundo plano no ano passado.
Dirceu - Eu tinha consciência disso. Mas foi necessário e correto, até pelo papel que eu tinha tido na campanha, no PT, na aliança com os partidos, na relação com o presidente (do Senado, José) Sarney, com o (presidente da Câmara) João Paulo e com as lideranças partidárias. E também a minha relação política com os ministros me permitia fazer a gestão governamental. O primeiro ano, do ponto de vista do governo, foi vitorioso. O governo superou o principal problema, que era o risco da crise econômica, voltou a estabilizar o País, superou o problema das reformas, da governabilidade (política) e da governabilidade administrativa. É preciso ver como nós encontramos o País, cada ministério, como funciona a máquina. Uma das principais tarefas que tenho agora é fazer mudanças no Incra, no Ibama, na Embrapa, na Funai e noutros organismos. O País tem organismos de excelência, como o Banco Central, a Receita, o Itamaraty, as Forças Armadas, a estrutura do Planalto. Mas tem ministério que precisa ser reorganizado, porque não existia mais. Planejamento não existia, ação governamental - as câmaras de governo não funcionavam. Lógico que cada governo opta por funcionar de uma maneira. Mas nosso governo é programático, tem objetivos de reformar a administração do serviço público, de eficiência, de combater a corrupção.
Esse é meu papel agora.
Estado - Mas isso implica colocar gente do PT até em níveis de gerência?
Dirceu - Vai ver como a oposição faz nos Estados. Vi o Aécio (Neves, governador de Minas) esses dias criticar que o PT tinha aparelhado o governo. Comecei a rir. Você vai a Minas Gerais... O PSDB está fora do primeiro, segundo, terceiro e quarto escalões do governo de São Paulo, não é? O PSDB é uma freirinha que só fica no convento. Isso é brincadeira. O PT não aparelhou o Estado, nomeou pessoas competentes com a margem de risco, de tranqüilidade e de problemas que tem em qualquer governo. Não tem nada a mais no governo do PT. Pelo contrário. A eficiência melhorou, e muito, na maioria dos setores. Até porque a maioria dos ministérios não funcionava, não tinha políticas, estavam desestruturados. Ministérios como o da Saúde e Educação têm corpo burocrático, políticas públicas, eficiência. Não deixaram de funcionar porque o PT entrou. Não é verdade. Estamos reorganizando os outros ministérios: Minas e Energia, Comunicações, Meio Ambiente. A crise na administração pública brasileira vem desde a década de 80. Passou pelo (ex-presidente Fernando) Collor, pelo Itamar (Franco), ficou nos oito anos do presidente Fernando Henrique. O governo Lula vai ter de enfrentar, de 2004 para 2005, a questão da administração e do serviço público.
Estado - As nomeações de DAS-4 (Direção de Assessoramento Superior) para cima estão passando pelo sr.?
Dirceu - Todas as nomeações passam pela Casa Civil.
Estado - Uma coisa é assinar por necessidade burocrática, outra é intervir na escolha de cada indivíduo.
Dirceu - Todo mundo tem visto quem é, passado a história da pessoa, todos os antecedentes criminais, perfis administrativos. Não pense que uma indicação aqui passa (automaticamente). Às vezes, é a quinta ou sexta que passa. Aqui, temos o mesmo rigor ético que tínhamos quando estávamos na oposição. Este é um governo de corrupção zero no primeiro ano e até este momento. Corrupção governamental; a administrativa, estamos combatendo. Temos a Controladoria, o Tribunal de Contas da União, o Ministério Público, imprensa, e não somos coniventes. O governo não rouba, não deixa roubar e combate quem rouba. Não há caso nas empresas estatais. Os controles internos estão sendo reorganizados. A Advocacia-Geral da União está sendo reestruturada. O que esse governo já abriu de concurso para reorganizar a Polícia Federal, Saúde, universidades...O governo está reorganizando o serviço público. Por causa da reforma da Previdência, ainda inventaram que estamos contra o serviço público. O que não podemos é aceitar determinados direitos que precisavam ser reformados, como a pessoa se aposentar com 53 anos, com 10 anos no serviço público. Cobramos mais contribuição e diminuímos o número de benefícios, porque é uma maneira de o sistema ser viável. E falamos isso com transparência para a sociedade.
Estado - Vai precisar haver mais reformas na Previdência?
Dirceu - Acredito que você tem de reavaliar a questão tributária e previdenciária de tempos em tempos.
Estado - O que mais muda com a reforma ministerial?
Dirceu - Ela vai dar à área social não só a unificação dos programas sociais agora como a unificação das políticas sociais. Vai reduzir o número de ministérios. Vai dar ao governo mais condições de se debruçar sobre o desenvolvimento e sobre a articulação da política de infra-estrutura. E vai organizar as câmaras de governo, a partir da Casa Civil. A Câmara de Desenvolvimento Econômico será ampliada, incluindo os ministros de Relações Exteriores, Agricultura, Trabalho e Minas e Energia. E vai ganhar um papel importante no governo. A prioridade do governo passa a ser o desenvolvimento, o crescimento, e eu fico liberado para a gestão governamental, que era uma demanda da maioria dos ministros e do próprio presidente. Por que isso é possível? Porque nós consolidamos a relação com os governadores, consolidamos uma secretaria de Assuntos Federativos que tem um comitê de articulação dos municípios. O governo aprovou no Congresso praticamente toda a pauta de reivindicações que os municípios tinham, incluindo o aumento do Fundo de Participação dos Municípios, que todo mundo considerava quase impossível.
Estado - Qual o alcance da aliança com o PMDB?
Dirceu - O governo não está só fazendo uma reforma para incorporar o PMDB.
Deixamos falar porque reforma você não pode ficar discutindo publicamente. O governo está sendo reestruturado pelo presidente, primeiro para consolidar a maioria parlamentar, que expressa forças políticas e sociais. A aliança com o PMDB não é só de Parlamento nem de eleições de 2004. Estamos tentando dar a ela um caráter estratégico.
Estado - Ele vem inteiro para essa aliança?
Dirceu - Nenhum partido vem inteiro. O PT não veio inteiro para o governo.
Sempre tem os recalcitrantes. Tem gente que não sabe ser governo. Tem um deputado aí que diz que a convocação é uma salsicha. A convocação vai aprovar a Parceria Público-Privada, o Plano Plurianual, a Lei de Biossegurança, o (novo marco regulatório do) setor energético, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) vira autarquia e tem mais uns dez projetos. O Senado vai fazer reforma do Judiciário. Se você olhar o que o Parlamento brasileiro aprovou em 2003 e olhar os do mundo inteiro - eu mandei o presidente Sarney fazer esse estudo comparativo -, você cai de costas.
Estado - Não dava para fazer na sessão ordinária?
Dirceu - Claro que não dava. Tem a PEC (proposta de emenda constitucional) paralela (para a Previdência), que precisamos fazer. Não vai ser fácil aprová-la na Câmara. A maioria da Câmara é contra.
Estado - O que o sr. acha de sua imagem de pragmático e implacável?
Dirceu - Não diria que sou pragmático, diria que sou um político. Você tem de buscar determinados objetivos de acordo com as circunstâncias históricas e a realidade sócioeconômica e política de cada momento. Aprendi rápido com a experiência. Tem gente que demora muito para aprender. Meu pai era janista, da UDN, e eu o vi chorar com a renúncia do Jânio. Vivo a vida política nacional desde 61. Por isso é que sou às vezes duro. Muitos me tomam até como excessivamente duro porque falo as verdades. Temos experiências no Brasil de tentar governar como muitos querem que o presidente governe. Dura seis meses o governo. Geralmente dura menos. Tem gente que subestima as forças contrárias às mudanças. Porque ou partem da idéia de que não estamos querendo fazer mudanças, acreditam no próprio discurso ou na propaganda da oposição, ou não aprenderam as experiências históricas. Procuro sempre ser muito claro e direto quando faço a crítica.
Ainda que estou fora dessa arena, não tenho participado do debate político porque meu cargo não permite.
Estado - O sr. acha que se exprimiu bem no episódio do "desagravo" do deputado Luiz Eduardo Greenhalgh?
Dirceu - Perfeitamente. É só ler meu texto. E não acabou ainda.
Estado - O que mais o sr. vai fazer?
Dirceu - Sobre isso, não falo mais. Mas tem desdobramentos. A sociedade tem forças vivas. Eu acredito na sociedade, nos formadores de opinião pública, na cidadania, na imprensa.
Estado - Acredita?
Dirceu - Acredito. Não tem problema que a imprensa me critique, me ataque.
Não fico preocupado. Nem fico abalado porque abro o jornal e tem uma página inteirinha me criticando. Depois vêm as pessoas que defendem, artigos contra e a favor. Somos produto da opinião pública. Não tenho medo da liberdade de imprensa. Ela é sempre mais benéfica que maléfica. Agora, tenho direito de criticar a imprensa e o Ministério Público. Sou cidadão. Não vou me calar.
Só se o presidente pedir. Aí, eu fico quieto.

Poderoso, fiel, ele é o braço armado de Lula
Dirceu é um ministro que joga duro mas fala claro e diz que serve ao presidente 'onde ele estiver'

Em janeiro de 1993, José Dirceu disputava com Vladimir Palmeira a liderança do PT na Câmara. No corpo-a-corpo, um amigo conseguiu convencer o deputado Adão Pretto, um colono do interior do Rio Grande do Sul, a votar em Dirceu. Dias depois, Pretto telefona para dizer que mudou de idéia:
- Não voto nesse Dirceu nem morto. A gente se cruza no salão da Câmara e ele ou não me cumprimenta ou me dá a mão sem apertar. O Vladimir me abraça, aperta, brinca comigo.
Dirceu perdeu a eleição por um voto: 18 a 17.
Ao longo de sua vida, Dirceu tem pagado um preço por sua personalidade.
Afetuoso, brincalhão e atento com aqueles que conhece e aprecia, não é afeito aos truques tão ao gosto da política: a simulação da amizade e a dissimulação do conflito.
"A sinceridade dele beira a aspereza", testemunha um de seus melhores amigos. "Talvez ele seja transparente até demais", reconhece o seu sucessor na presidência do PT, José Genoino, contemporâneo do movimento estudantil de 68.
É lógico que isso não tem só custos. No meio político, Dirceu é admirado por sua franqueza e lealdade, e por cumprir a palavra empenhada. Nem mesmo as esgarçantes negociações da reforma ministerial, quando as hesitações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva obrigaram Dirceu a um vai-e-vem interminável com os aliados, parecem ter manchado a reputação do chefe da Casa Civil.
Quando os líderes do PTB foram lhe pedir mais um ministério, Dirceu foi direto ao ponto, como sempre: "Estou com um problema interno. Tenho de acomodar o PMDB. Sei que sou devedor de vocês. Mas agora não posso pagar." O presidente do partido, Roberto Jefferson, respondeu: "Sem problema, amigo."
Em dez minutos, o assunto estava liquidado. "Com ele é pode, pode; não pode, não pode."
Até nas "guerras", que declara com certa freqüência, ele tenta ser transparente. "Quando quero algo, aviso: 'Prepare-se. Estou entrando na disputa.' Os adversários falam: 'Prepare-se, vem chumbo grosso.'" "Ele era uma afirmação de político, mas hoje é uma grande afirmação de coordenador administrativo e de homem de Estado", constata o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), um constante interlocutor e recente amigo. A admiração é recíproca.
"É um grande organizador de partido, articulado e inteligente, embora excessivamente centralizador", ressalva Arthur Virgílio, líder do PSDB no Senado, que tem tido duros embates com Dirceu. "É um operador eficiente.
Escuta muito, é muito maduro", diz o líder do PFL na Câmara, José Carlos Aleluia.
A capacidade de ouvir de Dirceu é elogiada ainda pelo novo ministro de Coordenação Política, Aldo Rebelo (PC do B-SP), que, como líder do governo na Câmara, fez a ponte entre Dirceu e os deputados em 2003: "Os líderes, pressionados, buscam atender à expectativa de suas bancadas e, quando ele sente essa pressão, compreende que precisa ter paciência."
O líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros, que se tem dedicado a quebrar o gelo com o governo, depois de haver apoiado a candidatura de José Serra, considera Dirceu o quadro "mais esclarecido, de maior sensibilidade política e mais competente" do PT.
No Planalto, Dirceu tem combinado uma concentração de poder - real e percebido - incomum para um ministro e uma fidelidade canina ao presidente.
"Esse é que põe a cara para te defender", tem ouvido Lula de sua mulher, Marisa Letícia.
"Vou servir ao Brasil e, no caso, ao presidente onde ele quiser", disse Dirceu na quinta-feira ao Estado. "Sirvo ao presidente de porteiro deste prédio com a mesma fidelidade, com a mesma competência - sem falsa modéstia - com que o sirvo aqui. Vou ser o melhor porteiro do Palácio do Planalto."
Ao final de longas discussões que precedem decisões importantes do governo, é comum Dirceu fazer a pergunta: "Presidente, o que eu devo fazer, então?" E brinca: "Estou amando... a mando de Lula."
Essa obviamente não é a imagem externa dele. O acúmulo, em 2002, das funções de coordenação do governo e articulação política com o Congresso e governadores, o jeito implacável, o ímpeto disciplinador, a ascendência sobre o PT, que ele presidiu entre 1995 e 2002, assim como o estilo de Lula, um pouco mais recuado do que Fernando Henrique Cardoso na lide com os líderes do Congresso - além da constante ausência no País -, cristalizaram uma visão de que quem manda é o chefe da Casa Civil, em vez do presidente.
Não é assim. "Dirceu e Palocci se pelam de medo do Lula", dizem assessores dos ministros mais importantes do governo. Dirceu foi desautorizado pelo menos três vezes, quando Lula sentiu necessidade de reafirmar a sua autoridade perante o público.
Há muito que Dirceu tem exercido a tarefa de aplainar o caminho de Lula. No PT, como secretário-geral, depois como presidente, neutralizou as tendências de esquerda, várias atuando como partidos dentro do partido, com poder desproporcional à representatividade.
Embora se situasse à "direita" relativa do espectro ideológico no PT, Dirceu recorreu aos métodos da velha esquerda, no melhor estilo do "centralismo democrático" de Lenin e Stalin, promovendo expurgos dos que não se ajustavam à disciplina partidária. O PSTU nasceu de um desses expurgos, quando Dirceu procurou os trotskistas da Convergência Socialista e comunicou, no início de 1992: "Ou vocês param com a campanha 'Fora Collor' ou saem." Inicialmente, a cúpula considerou que a campanha feria seus interesses eleitorais para 1994.
Alianças - A política de alianças com a centro-direita, que deu a Lula a vitória e a governabilidade, foi articulada externamente e imposta internamente por Dirceu. Foi ele que apresentou Lula ao vice José Alencar, que se moveu do PMDB para o PL para fechar a equação política; e aproximou Lula ao PMDB de Sarney, que por seu apoio ao governo no Congresso acaba de ser recompensado com os Ministérios das Comunicações e da Previdência, selando uma aliança estratégica de longo alcance.
Sobretudo dentro do próprio PT, a política de alianças, assim como a condução de uma política econômica "neoliberal" e a aprovação da reforma da Previdência, que feriu interesses dos servidores públicos - a corporação mais coesa da base do partido -, desperta convulsões que Genoino contém com o respaldo sólido de Dirceu.
Nos ministérios, no Congresso e diante de governadores e prefeitos, coube a ele dizer os "nãos". É comum ministros e auxiliares, quando recebem um pedido que não podem atender, alegar maliciosamente que precisam consultar a Casa Civil, para transferir o ônus da recusa. Até Lula já brincou com isso.
A ambivalência na relação entre Lula e Dirceu lembra O Estranho Caso de Dr.
Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Stevenson. Enquanto o médico mantinha a imagem - e a leveza de consciência - de homem urbano, cordato e piedoso, seu alter ego, Mr. Hyde, aterrorizava os londrinos, dando vazão aos impulsos malignos, inconscientes e inconfessáveis de Dr. Jekyll.
A senadora Heloísa Helena, que sentiu na pele a fúria disciplinante do partido que ajudou a fundar, sendo expulsa depois de votar contra a reforma, não se ilude com essa dualidade: "A visão preconceituosa de que Lula é fraco e quem manda é Dirceu, ou de que Lula é bom e Dirceu é mau, é cômoda para Lula, mas não caio nessa. De quem você acha que Dirceu recebeu a chave do trator?"
Dirceu é o braço armado de Lula. (Lourival Sant'Anna)

Dirceu admite divergência com área econômica
Ministro diz que governo tem espaço democrático para debater, mas quem toma decisão é Lula

O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, admite que haja, no governo, divergências sobre a condução da política econômica. "A nuança que tem no debate são os diferentes interesses e divisões que tem na sociedade e se refletem dentro do governo", disse Dirceu ao Estado. "Política econômica não é uma ciência. Tem regras, verdades, mas tem decisões políticas, interesses, a conjuntura, as oportunidades e tem evidentemente crenças."
"Há diferenças e essas coisas são debatidas", prosseguiu o ministro. "O governo tem espaço democrático para debater. Temos a Câmara de Política Econômica e agora a Câmara de Política de Desenvolvimento, temos espaços interministeriais e tem a coordenação política do governo, que é o espaço onde se expressam as diferenças."
Ao fim do debate, assinala Dirceu, "quem toma a decisão é o presidente".
Palocci goza da confiança de Lula, renovada pelos bons resultados colhidos em 2003: a enorme turbulência do início do ano deu lugar a bons indicadores no risco país, na venda de títulos da dívida pública, no câmbio e na inflação.
Em conseqüência, no que se refere aos temas polêmicos da política econômica - juros e superávit primário -, Palocci tem tido o respaldo de Lula; embora a pressão dos ministros em favor da redução do superávit primário, de modo a dar-lhes mais folga orçamentária, seja "consentida" pelo presidente, na expressão de um ministro.
Igualmente, a cruzada do vice-presidente José Alencar pela redução drástica dos juros não tem recebido qualquer freio. "Ele entende muito de economia internacional, estuda e acompanha esses assuntos há muito tempo", elogia o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci. O presidente o chama a opinar e o próprio Palocci já o procurou, para ouvir seus argumentos.
"Todos estão do meu lado, inclusive o Palocci", diz Alencar. "O problema é que não chegaram ao estágio que cheguei. Minha experiência, nesse particular, é superior à de todos eles", analisa o vice-presidente, de 72 anos, dono da Coteminas, o segundo maior grupo têxtil do Brasil, com faturamento anual de R$ 1,5 bilhão.
Apesar do debate interno, tanto Dirceu quanto Dulci defendem publicamente a política econômica. Nos debates promovidos com a sociedade civil no ano passado, Dulci ouviu constantemente que era preciso baixar os juros. "Eu explicava que, se fizéssemos isso, estaríamos confundindo desejo e realidade. Temos de criar as bases para isso primeiro."
"Não podemos aceitar a posição de quem quer que seja de se isentar da responsabilidade pelo superávit", afirma Dirceu. "O superávit é decisão de governo. Cada um opinou se o superávit deveria ser de 3% ou de 4,25%, se a meta de inflação deveria ser de 5% ou de 6,5%, mas, depois de estabelecida a meta de inflação, todo mundo sabe que tem uma política monetária e uma política fiscal. Se você quer afrouxar na política fiscal, tem de arrochar na política monetária. E vice-versa."
Palocci tem vencido o debate da política econômica, mas tem perdido no arranjo institucional da economia. Depois de horas de discussões, qualificadas por um assessor de "eletrizantes", o ministro da Fazenda não conseguiu evitar que Lula trocasse o presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), para compensar seu amigo Miro Teixeira pela perda do cargo de ministro das Comunicações.
Dirceu garante que a nova legislação vai garantir "a autonomia financeira e administrativa de que as agências precisam para poder trabalhar", incluindo um "mandato regular" para seus integrantes - que, na interpretação da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil, não estava assegurada em lei. Mas, então, não teria sido um bom sinal para o mercado preservar já o atual mandato? "Ora, um governo que não muda o que pode mudar é um governo que tem medo da própria sombra", responde.
Pressa - Igualmente, Dirceu demonstra menos pressa que Palocci de regulamentar a autonomia do Banco Central. "Não vamos transformar isso numa guerra, em que o que está a favor da autonomia é um traidor e ser contra é irracional, fundamentalista, jurássico", defende o ministro, que diz estar lendo o segundo livro técnico a respeito do tema, apesar da falta de tempo. "Aqui no governo, estamos estudando."
Apesar das eventuais divergências, tanto Palocci quanto Dirceu se mostram ciosos da importância de não melindrar um ao outro. E se mortificam com as notícias que surgem na imprensa de disputas de poder entre eles.
O prestígio de Palocci é crescente. Além do êxito da política econômica, suas maneiras suaves, seu humor e calma inabaláveis conquistam o presidente, que o tornou seu companheiro de caminhada, às 6h30 da manhã, e freqüente convidado para os churrascos no Alvorada. Dirceu é amigo há mais tempo de Lula e antigo parceiro na direção do partido, mas mantém uma relação um pouco mais formal e distante com o presidente.
Ninguém tem dúvidas de que Dirceu é o homem mais poderoso do governo, depois de Lula. "Para falar com o presidente, ele só tem de descer um andar.
Palocci tem de pegar o carro", ilustra um assessor. Mas a crescente influência do ministro da Fazenda também é notável. Nos últimos dias, a presença constante de Palocci - que em tese não pertence à coordenação política - no gabinete do presidente chegou a incomodar ministros demitidos, que não tiveram chance de falar com Lula a sós. (Lourival Sant'Anna)

OESP, 25/01/2004, Nacional, p. A4-A6

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