VOLTAR

Abaixo da linha da tristeza

O Globo, País, p. 11
04 de Mai de 2016

Abaixo da linha da tristeza
O drama de moradores que vivem em meio à devastação, seis meses após desastre ambiental em Minas

Ana Lucia Azevedo

Quando a noite chega, cobre as ruínas de escuridão. Só não esconde a feiura da desolação. Ali, em Paracatu de Baixo, um dos distritos rurais de Mariana devastados pelo maior desastre ambiental da História do Brasil, a noite é feia, diz Antônio Geraldo de Oliveira, o Seu Nié. Ele é um dos três moradores de Paracatu que decidiu voltar após a lama secar. Vive só em meio aos escombros, sejam os das casas de amigos e parentes, sejam os da saudade da terra que não existe mais.
- A noite dá medo. Mas não é de assombração. Quem vai querer assombrar isso aqui? Essa terra está morta. Ninguém assombra os mortos. A noite é feia porque nem ruído de bicho tem. Não tem luz, não tem som. Não tem mais nada - lamenta Seu Nié, de 63 anos, que nasceu e morou em Paracatu de Baixo por toda a vida.
A lama endureceu e petrificou o tempo. Nas áreas mais atingidas, como Paracatu, ele parou na tragédia de 5 de novembro de 2015, que completa seis meses na quinta-feira. Naquele dia, a Barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana, rompeu e despejou mais de 34 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração. Varreu vales de Minas Gerais, atravessou o Espírito Santo, poluiu o Rio Doce e, por fim, o Atlântico, a 650 quilômetros de distância. A tsunami de dejetos matou 19 pessoas.
Onipresente, aprisionou a paisagem devastada do distrito. A zona destruída de Paracatu de Baixo espera que estudos previstos no Termo de Transação e Ajuste de Conduta assinado pela Samarco e os governos mineiro e capixaba determinem o seu destino. O nome indígena tupi "rio bom" (de "para", rio e "katu", bom) soa como ironia. O amontoado de destroços está como deixado pela onda de restos de minério, no curso do Gualaxo do Norte.
Seu Nié era o homem da alegria. Com o pai, Zezinho, organizava a Folia de Reis. No início da noite do 5 de novembro, vieram os rejeitos, que levaram não só os instrumentos da folia, mas Paracatu embora. Deixou casas destroçadas. Fez de árvores, fiapos.
- O barulhão e o mau cheiro chegaram antes. Não esqueço não. Parecia um torro urrando - diz o lavrador.

Vítimas temem ser esquecidas
Avisados a tempo sobre a tragédia que já engolira o vizinho Bento Rodrigues, os moradores fugiram. Para nunca mais voltar. A maioria foi realocada pela Samarco provisoriamente em Mariana. Como todas as cerca de 90 famílias de Paracatu de Baixo, o destino de Seu Nié é incerto, à mercê de negociações sem prazo para findar. Na terça-feira, o Ministério Público Federal informou que uma ação contra a Samarco e suas proprietárias, Vale e BHP, pede R$ 155 bilhões em reparações.
- Não sei de quase mais nada. Só sei que nunca mais vai ter folia. Mas daqui não saio. Estou velho demais para aprender a morar em outro lugar. Minha mulher e meus filhos ficaram na casa alugada pela Samarco em Mariana. Mas lá não é o meu lugar. Ficamos aqui, eu e meus cachorros. Essa é a vida que sei viver - conta Seu Nié.
Ele sobrevive de serviços no campo, como tantos outros moradores da área rural que se estende de Mariana a Barra Longa, a chamada zona quente do desastre, mais duramente atingida. Plantava para comer e arrumava trabalho em propriedades maiores. Após o desastre, não há onde plantar e o trabalho escasseou.
- Logo depois da lama, veio aqui uma moça oferecer ajuda. Fez orações. Deixou R$ 50 embrulhados num papel. Ainda tem gente de bom coração nesse mundo - sorri.
Menos convencido da bondade humana está Marino D'Ângelo Júnior, de 47 anos. Natural de Ouro Preto, em 1989 ele casou e se mudou para Paracatu. Vivia da pequena criação de gado leiteiro. Sua casa, na Paracatu de Cima, foi poupada. A do sogro, na de Baixo, arrasada. O pasto está sepultado. E Marino teme que Paracatu de Baixo e todos os outros distritos sejam esquecidos.
- Havia pouco dinheiro e muita fartura. Tinha solidariedade, amigos, família, laços fortes. Agora está todo mundo espalhado. Demorou menos de uma noite para nossa vida virar lama. Se passaram seis meses e o processo não avança. Alguns de nós receberam indenizações provisórias. Mas de certo, só incerteza sobre um futuro que sabemos não ser aqui. Porque aqui é um lugar que não existe - afirma Marino.
Ele não consegue ver bondade em alguns dos moradores de Mariana - a cidade em si, a 40 quilômetros de distância, não sofreu diretamente com a lama, sua zona rural é que foi devastada.
- Algumas pessoas olham para os desabrigados com preconceito. Somos menosprezados, tidos como intrusos. Nos acusam de criar problemas, de afugentar turistas com nossas reclamações, de sujar o nome da cidade. Quem sujou tudo foi a Samarco - desabafa Marino, presidente da Associação de Produtores de Leite de Águas Claras e Região.

Árvores pintadas de destruição
De Paracatu de Baixo, o Gualaxo do Norte segue o curso e o destino de condenado a carregar o fardo dos rejeitos de Fundão. Serpenteia pelos vales estreitos, cobertos por Mata Atlântica, que trocou de cor há seis meses. Após a tragédia, o marrom dos troncos foi coberto por uma marca ocre-lama, monumento vivo ao desastre. A linha simétrica se estende a se perder de vista nas curvas do rio, como a obra de um pintor obcecado pela cor da sujeira.
Perto de um vilarejo conhecido como Mandioca, o Gualaxo se despeja em corredeiras. A água pesada de lama espuma no mesmo tom ocre. O rio alcança Gesteira, distrito de Barra Longa fundado no início do século XVIII. Equipes contratadas pela Samarco removem a lama de alguns pontos, replantam outros. Mas lama não respeita história, e uma margem inteira ainda é só ruína.
- Quando chove, vira brejo. Quando seca, poeira. É um suplício noite e dia. Da janela, vejo só desolação - afirma o aposentado Moacir Carneiro, de 72 anos. - Perdi minha fonte de alimento e a minha alegria.
Aos 8 anos, ele começou a plantar um pomar e uma horta perto do rio. Restou um pé de jabuticaba. O resto se foi com a onda. No meio da terra arrasada, fotografias empoeiradas das crianças da família. No que era o portão, estão os móveis levados da casa de uma parente.
- Só de parente meu tinha uns 50 em Gesteira. Agora, estão espalhados por aí, por Mariana, Barra Longa, Acaiaca. Quase todo mundo partiu. Medo que Germano, a outra barragem, rompa. Medo das sirenes. Medo de tudo. Isso aqui virou um canteiro de obras e um amontoado de ruínas - diz a líder comunitária de Gesteira e agente de saúde Rosilene Luise Bento, de 37 anos.
Rosilene e Moacir sofrem ainda com outro medo. O mesmo de Marino e Seu Nié. Temem que caiam no esquecimento e que nada se resolva.
- Tenho mesmo medo é da injustiça. A vida aqui parou há seis meses e ninguém parece ligar. Somos pobres. E as autoridades estão preocupadas é com a arrecadação de impostos da Samarco, com o turismo de Mariana, com a produção de minério. Quem liga de verdade para nós? Que diferença fará se tudo aqui deixou de existir? Querem mais é que seja esquecida. Mas a tragédia está viva. Nós que ficamos não vamos esquecer - frisa Rosilene.
Primo de Rosilene, Reginaldo Carlino da Silva morava com a mãe, Maria Geralda Bento, numa casa da qual mal se vê o telhado soterrado. No mesmo terreno, ele construía uma casa mais segura para fugir das enchentes do Gualaxo. Estava quase pronta. Agora, é entulho.
- E pensar que a gente via perigo na água da chuva. A lama de minério comeu até um pedaço do morro. Chegou de madrugada. Nos avisaram, e subimos o morro, para ver de cima. Mas ninguém tinha ideia do que era. Primeiro, veio um vento forte. Aí ouvimos um rugido. Vimos árvore deitando. Passou caminhão, passou máquina pesada. E ela arrancava e arrastava tudo. O barulho ficou na minha cabeça. Não me deixa - conta Reginaldo.
Rosilene diz que a lama não matou pessoas em Gesteira, mas roubou suas histórias:
- Ela mudou a natureza. Mudou o nosso mundo. Teve uma moça que enlouqueceu de desespero. A casa dela sumiu. E Maria do Socorro se jogou no rio. Como ela, muita gente mergulhou na depressão. Não sei como essa história vai terminar.

Reconstrução em outro lugar
O diretor de Projetos e Ecoeficiência da Samarco, Maury de Souza Júnior, diz que as obras feitas até agora, inclusive o replantio de 784 hectares de margens de rios e a construção de três diques provisórios, um deles ao lado de Bento Rodrigues, têm como objetivo impedir que resíduos sólidos continuem a chegar aos rios. Souza Júnior explica que os projetos para as comunidades de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira dependem de estudos encomendados. As três comunidades serão reconstruídas em outros lugares. O diretor da Samarco garante que os moradores terão poder de voto na escolha do lugar onde as casas serão refeitas. Enquanto isso, continuarão a morar em casas alugadas pela empresa:
- Haverá uma votação com comunidade para a escolha de onde será o novo Bento no sábado, dia 7.
O velho Bento será transformado em memorial, de acordo com termo assinado pela empresa. Como o memorial será, porém, não foi decidido. Para as outras comunidades ainda não há datas. E o destino final da maior parte dos rejeitos, concentrados de Fundão à hidrelétrica de Candonga, depende de um estudo que deve ser ser finalizado até julho, segundo Souza Júnior.

A dor por uma vítima sem nome
Priscila Monteiro Izabel, de 28 anos, sonhava que no próximo domingo celebraria o primeiro Dia das Mães com o filho recém-nascido nos braços. O médico dissera que no dia 5 de novembro, quando ela completaria quatro meses de gestação, poderia ver o sexo do bebê. Mas o que veio não foi alegria do ultrassom. Priscila foi arrastada pela tsunami de dejetos de minério de ferro da Samarco que varreu Bento Rodrigues e teve sepultado seu sonho - conta ter abortado ali mesmo, no meio da lama.
Priscila teve o filho Caíque, que carregava no colo, arrancado pela força da correnteza. Ela lembra que, já quase sem forças, agarrou-se a uma árvore, de onde foi resgatada por vizinhos.
- Eu era só sangue. Perdi meu bebê. Meu rosto ficou desfigurado por semanas. Passei por cirurgia. Sinto ainda dores. Mas o que me corrói é a perda do meu filho. E a Samarco diz que ele não pode ser contado como vítima porque não tinha nascido. Se eu tivesse feito um aborto, estaria presa. Aborto no Brasil é crime. Mas matar um bebê no ventre da mãe, pelo visto, pode. A lama da Samarco matou meu filho. E ninguém liga para isso. Que país é este? Não desisto até que o bebê que eu esperava seja reconhecido como um dos mortos. Só quero Justiça - afirma.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Samarco informou que, por orientação do Ministério Público, contratou um especialista da clínica Odete Valadares, em Belo Horizonte, para examinar Priscila. E que, segundo ele, ela não estava grávida. Priscila diz que tem os documentos do pré-natal, feito poucos dias antes da tragédia.
Os outros filhos de Priscila, Caíque e Artur, foram salvos por vizinhos. O irmão de Priscila, Wesley Izabel, de 23 anos, também fugiu com os filhos Nicolas, de 3 anos, e Emanuelly, de 5. A menina não resistiu à força da correnteza e largou a mão do pai. Seu corpo foi achado dias depois.
- Minha cunhada, mulher do Wesley, estava grávida na mesma época que eu. O bebê dela nasceu. O meu, não. Fico muito feliz por ela. Mas hoje em dia não posso ver um bebê com a idade que meu filho teria que choro, choro muito. A lama arrancou meu filho de mim - diz.
De Bento não resta praticamente nada, além de poucas ruínas, como ilhas num oceano marrom de lama seca e poeira, que, de tão fina ,cai em gotas e marca o chão como chuva.
- Bento só não acabou dentro da gente.
No dia 15, Priscila espera voltar:
- Não há muito para ver. Da minha casa, só um restinho de varanda. Mas quero visitar. Não vou deixar esquecer.

O Globo, 04/05/2016, País, p. 11

http://oglobo.globo.com/brasil/seis-meses-apos-desastre-em-mariana-mora…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.