OESP, Metrópole, p. C3
31 de Out de 2009
9 sobrevivem a acidente com avião
Piloto conseguiu pousar em rio; FAB diz que há 2 desaparecidos
Os índios matises localizaram, na noite de anteontem, o avião C-98 Caravan da FAB, que havia caído por volta das 9h30 de quinta-feira no Igarapé Jacuratá, a nove horas de lancha voadeira de Atalaia do Norte (AM). Um grupo deles caçava na área, a duas horas da aldeia, quando ouviu ruídos. Curiosos, foram até o local onde estavam os passageiros, feridos levemente. Pela manhã, os matises informaram por rádio a indigenistas que haviam localizado o avião, com nove sobreviventes. Duas pessoas são consideradas desaparecidas.
A FAB prossegue nas buscas pelo funcionário da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) João de Abreu Filho, de 33 anos, e pelo suboficial Marcelo dos Santos Dias, de 35, mecânico do C-98. Sobreviventes, porém, chegaram a relatar ao Estado a morte dos colegas. Fontes da Aeronáutica admitiram que os corpos devem ser achados próximos da aeronave.
O major-brigadeiro Jorge Cruz de Souza e Mello, comandante do 7 Comando Aéreo da Amazônia, informou que o Cessna se encontra submerso no igarapé, na margem direita do Rio Ituí, entre as Aldeias Aurélio (dos matis) e Rio Novo (dos murugos). Ele confirmou que o avião realizou pouso forçado e foi encontrado dez milhas fora da rota. "O piloto com certeza tomou a melhor decisão ao pousar no rio." Ele estima que a tripulação teve cerca de 16 minutos para fazer a manobra de pouso, depois que notou problemas no avião e emitiu um sinal de emergência. O comandante afirmou que a aeronave tinha cerca de cinco anos de uso, mas não soube precisar quantas horas de voo nem quando foi revisada.
A hipótese mais provável é a de que uma pane no motor provocou a desaceleração do Caravan, que havia partido de Cruzeiro do Sul (AC) às 8h30 de anteontem, com destino a Tabatinga (AM), onde deveria ter chegado às 10h15, após a missão de vacinação de índios no Amazonas.
HERÓI
Ainda transtornados por ficar quase 24 horas na selva, os funcionários da Funasa, que foram levados para o Hospital Geral do Juruá, em Cruzeiro do Sul (AC), disseram que o mecânico do C-98 foi responsável por salvar a vida de várias pessoas que estavam no voo. Por fim, acabou perdendo as forças e submergindo com o avião. "Em caso de queda, quando a tripulação é militar, o piloto e o copiloto buscam um pouso seguro e o mecânico fica nos fundos da aeronave, ajudando os passageiros a saírem em segurança", observou Souza e Mello.
"Ele acabou preso no avião porque a correnteza fechou a porta e impediu que saísse", lamentou o diretor técnico do hospital, Marcos Melo. O suboficial ainda teria tentado sair pela frente da aeronave, sem sucesso. O outro passageiro que não foi encontrado é João Abreu Filho, que teria ficado preso na aeronave e se afogado (leia mais na C3). Os sobreviventes estavam "com muitas escoriações e contusões", mas a expectativa é de que todos recebam alta hoje pela manhã.
Liège Albuquerque, Leonencio Nossa, Tânia Monteiro e Genival de Moura, especial para o Estado
''Era o desespero da certeza da morte''
Diana Soares conta o drama que se seguiu à pane do avião; ela diz que homem preso nas ferragens não tinha como sair
Tânia Monteiro, Brasília e Genival de Moura, especial para o Estado, Cruzeiro do Sul
O primeiro contato dos matises com a Fundação Nacional do Índio (Funai) aconteceu às 9h45 de ontem (horário local), via rádio. Até aquele momento, apenas na tentativa de encontrar o avião, as oito aeronaves militares e uma da empresa Orbis (de satélites) haviam percorrido 3.570 km². "A aeronave, mesmo que não estivesse submersa, seria muito difícil de ser avistada na mata fechada, pois a pintura é camuflada", disse o major-brigadeiro Jorge Cruz de Souza e Mello, comandante do 7 Comando Aéreo da Amazônia.
Graças aos indígenas, cerca de 15 minutos depois uma aeronave C-105 Amazonas, do Esquadrão Pelicano, localizou a área onde o C-98 Caravan havia desaparecido, com 11 pessoas a bordo. Logo após, um helicóptero H-60 Blackhawk e um helicóptero HM-3 Cougar, ambos do Exército, resgataram nove sobreviventes, incluindo uma grávida, com 14 semanas de gestação. Após o resgate e os primeiros socorros, a Aeronáutica tentou evitar a exposição dos sobreviventes - e optou por não divulgar oficialmente quem são os desaparecidos -, mas o Estado conseguiu falar com os passageiros do turboélice, que destacaram "o desespero de ver a morte". Um deles chegou a relatar a morte de um dos colegas.
O piloto, o primeiro-tenente Carlos Wagner Ottone Veiga, e o copiloto, o segundo tenente José Ananias da Silva Pereira, conseguiram fazer o pouso forçado no Rio Ituí. Com eles estavam agentes da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e outros dois militares, que atuavam numa missão de vacinação em comunidades indígenas. Sobreviveram ao pouso o primeiro-sargento Edmar Simões Lourenço e os funcionários da Funasa Josiléia Vanessa de Almeida, Maria das Graças Rodrigues Nobre, Maria das Dores Silva Carvalho, Marina de Almeida Lima, Marcelo Nápoles de Melo e Diana Rodrigues Soares.
Diana, de 28 anos, técnica de enfermagem que trabalha em Atalaia do Norte, afirma ter visto "a morte". Ela tem dois filhos pequenos e, para preocupação maior, viajava ao lado do marido, Marcelo Nápoles de Melo, também técnico de enfermagem da Funasa. "O avião deu pane no alto. Parou o motor e começou a cair. Foi um horror", relatou ela, que não queria "recordar aqueles momentos dramáticos". "Eu vi a morte. Era o desespero da certeza da morte", repetiu.
Segundo Diana, "quando o avião caiu no rio, foi tudo para debaixo d"água e foi horrível". A sobrevivente estava muito emocionada e só lembrava do colega de trabalho João de Abreu Filho, que ficou preso nas ferragens do avião e não conseguiu sair. "Não quero lembrar. Não quero falar sobre o que aconteceu. Ainda estou muito assustada", disse, acrescentando que só queria encontrar a mulher dele para conversar com ela e confortá-la. "Ele não tinha como sair", declarou.
A VÍTIMA
Na noite de ontem, a família de João de Abreu Filho, de 33 anos, técnico de enfermagem da Funasa, ainda alimentava esperanças de que ele pudesse estar vivo, embora as notícias repassadas pela fundação eram as de que ele não teria sobrevivido ao acidente com o avião da FAB.
Uma notícia chegada à cidade de Benjamin Constant, no Acre, onde João de Abreu morava com a mulher e os dois filhos, de que ele estaria vivo e havia sido levado para Cruzeiro do Sul (AC), animou todos. A mulher dele e o irmão, Juliano, embarcaram para o Acre, a fim de tentar reencontrá-lo. "Meu irmão me ligou dizendo que tiveram notícias de que o João está vivo, mas ainda estamos esperando mais notícias", disse Vanessa, outra irmã de João, que estava em Benjamim Constant. "Aqui estamos todos ansiosos porque a primeira notícia foi ruim. Mas, agora, estamos esperando o Juliano chegar ao Hospital Juruá onde dizem que ele está", comentou Vanessa, sem saber que João de Abreu não conseguiu escapar e, conforme relato de Diana Soares, teria ficado preso nas ferragens do avião.
João de Abreu, aliás, não queria ir na missão. Já havia pedido para se afastar desse tipo de serviço de vacinação em aldeias porque passou na faculdade de Biologia em Benjamim Constant e estava estudando. "Ele não queria ir porque tinha prova nesses dias, ainda mais que eram 15 dias de viagem. Como não teve jeito, pediu aos professores para dispensá-lo das provas", disse a irmã. "Ele já estava de volta ao Acre", emendou ela, ao contar que o irmão trabalhava havia quase dois anos na Funasa, como técnico de enfermagem. "Como ele conhecia esse serviço e estava acostumado com vacinação de índio, teve de ir." Colaborou Liège Albuquerque
A tribo isolada que ajudou os ''uaçás''
Curiosidade leva matises ao 'pássaro gigante que cuspia fogo'
Leonencio Nossa
Brasília
Exímios conhecedores da densa floresta do Alto Solimões, os matises sempre são requisitados por agentes do governo para guiá-los em expedições. Além de entender o labirinto de rios e igarapés, a tribo fala a língua pano, a mesma das comunidades isoladas.
Quem passa algumas horas na tribo logo percebe o jeito brincalhão, divertido e generoso das pessoas. A aparência, porém, pode causar temor num primeiro momento. Para se proteger de animais e de índios inimigos, os homens se enfeitam de onça para as caminhadas. Espetam no rosto farpas de osso e espinhos de jarina - uma palmeira selvagem. Depois, colocam no nariz um semicírculo de madeira e tatuam as bochechas. As mulheres só perfuram as orelhas.
A aparência de felino, característica única entre os povos tradicionais da América do Sul, não foi suficiente para evitar que a tribo quase fosse extinta. Em 1960, chegou à beira do Rio Ituí o sertanista Pedro Coelho. Logo depois, apareceram madeireiros. E com eles veio a "febre" - como ficaram conhecidas as doenças que vitimaram a tribo. Dos mil índios que viviam na área, restavam apenas 83 no começo da década de 1980. Todos os sobreviventes eram crianças e adolescentes.
A partir de 1996, quando o governo criou a Reserva Indígena Vale do Javari e fechou o acesso aos Rios Ituí e Itaquaí, a comunidade voltou a crescer. Com o contato com os "uaçás" - homens "brancos" -, os matises passaram a ter vergonha de usar os enfeites de onça. Num lento trabalho de resgate da tradição, o sertanista Sydney Possuelo precisou mostrar fotos de jovens "uaçás" e roqueiros com piercing na língua e no nariz. Os matises recuperaram o orgulho.
Ao contrário das visões difundidas sobre os índios, os matises são pessoas que vivem em atividade durante quase todo o dia. Quando um menino entra na fase da puberdade, por exemplo, homens mascarados correm atrás dele para dar chicotadas e afastar a preguiça, que é associada pela tribo aos espíritos malignos.
Antigamente, os matises sonhavam em ter um animal igual ao dos madeireiros e caçadores "uaçás" - um cachorro. Daí um dos motivos desse povo simpático aceitar passivamente a entrada de estranhos em suas terras.
Dos tempos anteriores ao contato com os "uaçás", outro dos desejos desses índios era acertar os aviões que sobrevoavam a aldeia. Eles lançavam flechas e zarabatanas para o alto, na tentativa de acertar os "pássaros gigantes que cuspiam fogo". Na noite de quinta-feira, um grupo de matises encontrou um daqueles "gigantes" tombado na beira do Igarapé Jacuratá e correu para socorrer os "uaçás", - uma gente que nunca lhes despertou ódio ou rancor.
(Em 2002, o jornalista Leonencio Nossa ficou 105 dias entre os matises e lançou, em 2006, o livro "Homens Invisíveis", da Editora Record.)
''O avião parou assim, de repente', diz passageiro''
Roberto Godoy
O espaço aéreo entre Cruzeiro do Sul, no Acre, e Tabatinga, no Amazonas, cobre uma área hostil e inóspita, de mata densa desprovida de recursos de apoio.
"Não é o pior lugar da Amazônia para se voar - mas também não é o melhor: a floresta é mais aberta, porém há árvores com mais de 40 metros de altura e nenhuma infraestrutura", explica o piloto Domingos Silva, que opera na região desde 1999.
Segundo um dos sobreviventes, ouvido ontem em Cruzeiro do Sul, "o avião parou assim, de repente". O comandante aparentemente foi hábil ao levar o C-98 Caravan para a posição de pouso no Igarapé Jacuratá.
O clima no local é adverso e muda com rapidez. Na quinta-feira, a planilha meteorológica indicava nuvens e chuvas esparsas na rota do turboélice.
EQUIPAMENTO
A aeronave C-98 Caravan é a ferramenta utilizada pela Aeronáutica nas missões de transporte de carga leve e pessoal. A frota operacional, composta por 14 unidades, é empregada pelo Correio Aéreo Nacional e em ações como a que seria cumprida pela equipe da Funasa: levar vacinas até comunidades indígenas e ribeirinhas isoladas.
O turboélice é um avião robusto e fácil de pilotar. As asas altas são fator facilitador em emergências. Fabricado pela americana Cessna Air, custa de US$ 1,5 milhão a US$ 2,2 milhões, e a versão padrão tem capacidade para 14 passageiros, embora haja configurações executivas de seis a oito lugares. Foram produzidas cerca de 1,5 mil deles. O primeiro, de série, voou em 1982. O Caravan é usado por 62 empresas e forças militares de 23 países.
OESP, 31/10/2009, Metrópole, p. C1, C3
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