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2007:o lançamento da campanha Povo Guarani, Grande Povo

Campanha Guarani - http://campanhaguarani.org
Autor: Marcelo Netto Rodrigues
24 de Set de 2007

"ÀQUELES QUE não entendem nossa língua, vou traduzir. O povo Guarani era como um rio que corria lentamente em seu curso quando uma pedra gigante foi lançada dentro do córrego. A água espirrou para vários cantos. E os sobreviventes estão aqui hoje reunidos", diz o Guarani- Kaiowá Anastácio Peralta, sob olhares de concordância de seus "parentes" da Argentina, Bolívia e Paraguai.

Elucidar a reconstituição alegórica da diáspora Guarani - forçada pela chegada do invasor no continente sulamericano - é vital para entender o lançamento da Campanha "Povo Guarani, Grande Povo", que aconteceu entre os dias 21 e 23 de setembro, na aldeia Tey Kue, no município de Caarapó (MS). O evento, que contou com cerca de 400 representantes do Brasil e dos países citados, deu continuidade ao esforço do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) - organizador do encontro ao lado dos professores e lideranças Guarani-Kaiowá - em concretizar ações unificadas dos Guarani dispersos pelo continente sul-americano.

Estima-se que hoje vivam 50 mil Guarani no Brasil, 350 mil na Bolívia, 53 mil no Paraguai e 5 mil na Argentina - além de, no Uruguai, os Guarani continuarem a freqüentar o seu "tekoha" (sua terra tradicional) mesmo sem o reconhecimento do Estado. A saber, à época do início da invasão, em 1492, os Guarani chegavam a 2 milhões - o dobro da população de Portugal de então.

Parentes

A campanha pode ser vista como o ápice da tentativa de rearticulação desse povo, que teve início em fevereiro de 2006, com a realização do "Primeiro Encontro Continental Guarani", em São Gabriel (RS). Seguido em abril deste ano por um "Segundo Encontro", em Porto Alegre.

Divididos por fronteiras estranhas à sua compreensão de território, os Guarani ainda encontram-se distantes de conseguirem lutar em conjunto - apesar de constituírem um dos mais populosos grupos nativos do continente e de terem conseguido manter sua unidade lingüística através dos tempos.

Prova disso foi o encontro ter acontecido em Guarani e não em "portunhol". "É preciso mostrar que existimos como um grande povo. Temos o mesmo sangue, somos parentes que passamos pelo mesmo sofrimento. Não existe absurdo maior do que dizer 'índio argentino', 'índio paraguaio', ainda mais 'índio brasileiro'. Para nós, as fronteiras não existem", esclarece o cacique da aldeia Tey Kue, Zenildo.

O discurso faz eco. "O povo Guarani está acordando", conclui Hamilton Lopes, da aldeia Marangatu, no município de Antônio João. "Tentaram nos domesticar para essa civilização como papagaios, mas da mesma forma que um papagaio preso consegue escutar um papagaio livre e se comunicar com ele, o povo Guarani, apesar de tudo, continua vivo e volta a se comunicar."

Bicicleta

As metáforas, características do universo Guarani, são uma constante no encontro. Otoniel Ricardo, da comissão de professores Guarani do Mato Grosso do Sul, compara o seu povo a peças de uma bicicleta, e anuncia que vai demonstrar o porquê. Pega uma bicicleta nova e pede para que todos façam um círculo do lado de fora do salão onde acontece o encontro.

Todos andam na bicicleta. Do menino à liderança - que conduz a bicicleta com uma só mão; de uma jovem aos apoiadores; até os "parentes" da Bolívia, da Argentina e do Paraguai.

"O que vocês viram?", pergunta o professor - uma função que recentemente assumiu status de respeito nas aldeias, ao lado dos Agentes Indígenas de Saúde. "Harmonia, agilidade, alegria, atenção, medo, controle, equilíbrio", respondem todos, um a um. "Pois é, a bicicleta não parou de andar. Andou mais rápido, mais devagar, e isso porque ninguém decidiu trocar de marcha", conclui Otoniel.

A bicicleta é desmontada e o professor pede agora que os próprios Guarani a remontem sem saber que alguns já foram orientados pelo professor para atuarem como aqueles que atrapalham a montagem da bicicleta. Os conflitos se iniciam entre os indígenas. Aparecem "apoiadores" e até mesmo indígenas que se dizem confiáveis, mas roubam as peças da bicicleta. Mas, ao final, em mutirão (palavra de origem tupi-guarani), conseguem fazer com que a bicicleta ande novamente, apesar de ser impossível deixála como estava.

"Nosso povo é como a bicicleta remontada", finaliza a dinâmica o professor. "Não vai ser mais como antes, destruíram nossas matas e acabaram com nossos animais, mas é possível fazer com que a bicicleta volte a andar", conclui. "Temos de juntar as peças daqui com as dos outros países", sugere a também professora Guarani, Teodora de Souza, da aldeia de Dourados.

Mercosul

A tarefa torna-se cada vez mais urgente. Para o antropólogo Antônio Brand, estudioso da questão Guarani desde a década de 1970, os governos dos países do Mercosul deveriam instituir políticas públicas comuns para atendê-los - já que eles constituem a base cultural do bloco, por estarem presentes em todos os países-membros.

"Para evitar fluxos migratórios de Guarani entre os países, serão necessárias respostas articuladas em relação ao direito à terra, aposentadoria, segurança alimentar e aos recursos naturais", alerta Brand, que recorda que recentemente 1.300 Guarani- Mbyá que viviam na Argentina cruzaram a fronteira com o Rio Grande do Sul.

Segundo ele, como efeito dominó das práticas imperialistas do agronegócio, a situação dos Guarani-Kaiowá daqui é a situação de amanhã dos Guarani-Awá que vivem no Paraguai, onde a soja também já tomou conta. "Até 1978, não havia problema de terra entre os Guarani no Mato Grosso do Sul. Foi chegar a soja, e depois os canaviais, para que os espaços de refúgio fossem desaparecendo e as aldeias (local onde os Guarani não viviam) começassem a inchar. Um processo histórico ao qual eu classifico de confinamento causado pelo agronegócio."

No Brasil

Segundo levantamentos feitos pela Fundação Nacional de Saúde e pelo Cimi, existem 40 mil Guarani (80% do total que vive no Brasil) vivendo no Mato Grosso do Sul - divididos em 38 aldeias, em 17 municípios - e os outros 10 mil em terras tradicionais localizadas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e uma terra reservada no Estado do Pará.

Brand explica que os Guarani foram divididos em três grandes grupos pelo invasor, já que antes de sua chegada as categorias não faziam sentido: os Kaiowá (predominantemente presentes no Mato Grosso do Sul e Paraguai); os Mbyá (que ocupavam todo o Sudeste do Brasil e, hoje, encontram-se em São Paulo, Espírito Santo, Argentina e Paraguai); e os Awá (distribuídos pelo Paraná e Santa Catarina). De acordo com números da Funai, existem, ainda hoje no Brasil, cerca de 225 etnias diferentes que falam 180 línguas distintas.

Ao final do encontro de Caarapó, os presentes divulgaram documento no qual exigem o respeito aos rezadores (que foram esquecidos em virtude da entrada de denominações religiosas nas aldeias e que hoje só são procurados, segundo eles próprios, quando falta cesta básica, o professor não recebe ou agente de saúde não consegue curar um doente com remédios tradicionais).

Além desse ponto, o texto exige que o Estado crie mecanismos para garantir a participação ampla da comunidade indígena na elaboração de seus projetos e decisões; que os órgãos fiscalizadores verifiquem as irregularidades do trabalho indígena nas usinas; e que se faça justiça nos casos de assassinato das lideranças indígenas. Também foi encaminhado que a recente Declaração Sobre Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 13 de setembro, seja traduzida para a língua Guarani.

http://campanhaguarani.org/?p=435

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