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'Triste chegar a esse ponto': secretária de Povos Indígenas do PA reage à prisão de líderes Tembé por suspeita de milícia

O Globo - https://oglobo.globo.com
Autor: Arthur Leal
01 de Fev de 2024

Paratê Tembé e Marquês Tembé são investigados pela Polícia Federal por crimes como tentativa de homicídio, associação criminosa e posse ilegal de arma de fogo

Por Arthur Leal - Rio de Janeiro
01/02/2024 04h30 Atualizado há uma semana

As prisões, na última segunda-feira, de dois líderes indígenas do povo Tembé, da cidade de Tomé-Açu, no Pará, investigados pela Polícia Federal por suspeita de organizarem uma milícia, trazem à tona o acirramento na tensão entre povos originários na "guerra do Dendê". O conflito envolve também uma antiga e violenta disputa travada contra uma empresa produtora de óleo de palma - matéria-prima para fabricação de biocombustíveis que abastecem aviões, por exemplo. A multinacional explora milhares de hectares daquela região amazônica, o que inclui áreas reivindicadas por indígenas e quilombolas.

Os dois alvos da chamada Operação Guaicuru, da PF, são Paratê Tembé, de 29 anos, e Marquês Tembé Lira, de 26. Eles são amigos, vozes ativas na Associação Indígena Tembé do município e, nos últimos anos, tentaram entrar na vida política.

A secretária estadual de Povos Indígenas do Pará, Puyr Tembé, reagiu à operação da Polícia Federal contra os líderes indígenas de seu povo. Ao GLOBO, ela comentou sobre os conflitos, que vêm se acirrando na região.

- É um caso sob investigação da Polícia Federal e nós, como secretaria, estamos acompanhando e tentando ajudar no diálogo da melhor forma possível. Não temos acesso ao inquérito. Mas é fato que há ali uma disputa territorial. Um conflito por terra que, infelizmente, acaba caminhando para tudo isso - disse Puyr. - A gente fica triste de ver uma situação como essa chegar ao ponto em que chegou. São indígenas, são do meu povo, mas a gente também precisa entender que o que é errado é errado e precisa ser combatido.

"A gente fica triste de ver uma situação como essa chegar ao ponto que chegou. São indígenas, são do meu povo, mas a gente também precisa entender que o que é errado é errado e precisa ser combatido", Puyr Tembé, secretária de Povos Indígenas do Pará
A secretária acrescentou que a pasta luta pelas demarcações de terras indígenas e continua ajudando a resolver os conflitos de diferentes tipos que existem pelo estado.

- O estado tem vários problemas territoriais, de garimpo, de desmatamento. E o que buscamos é trabalhar e tentar sanar o máximo possível, para que a gente consiga resolver os conflitos territoriais que existem e, claro, lutar pela demarcação das terras, que é o passo mais importante.

Paratê é filho do cacique Lúcio Tembé, figura ativa politicamente na cidade. No ano passado, Lúcio sofreu um atentado a tiro, mas sobreviveu. A polícia apurou que o crime teria sido motivado por uma desavença dele com o tráfico de drogas, que queria se instalar na área da aldeia.

Em 2018, Paratê tentou se candidatar a deputado estadual pelo Podemos, mas acabou eleito apenas como suplente. Também detido no início da semana, Marquês Tembé Lira tentou se candidatar a vereador em 2020 pelo PSD, mas também não recebeu votos suficientes.

Atualmente, o conflito acontece, segundo a PF, entre os próprios povos originários, por disputa de terras produtivas de óleo de dendê - ou óleo de palma - matéria-prima eficiente para produção de biocombustíveis e em alta no mercado internacional. De acordo com as investigações, o que eles conseguem extrair da terra é revendido no mercado paralelo.

Procurado nesta terça-feira (30), após a notícia da prisão das lideranças indígenas Tembé, o Grupo BFF afirmou que "não teve qualquer participação no caso" e que "a companhia reforça promover diálogo aberto e construtivo com as comunidades onde atua, buscando o bem viver e o desenvolvimento socioeconômico do entorno de suas operações na região Amazônica".

'Omissão do Estado', reage liderança indígena do Pará
O líder indígena Ronaldo Amanayé, da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), acompanha de perto a situação. Para Amanayé, os conflitos acontecem porque há omissão das autoridades.

- Se esse processo está acontecendo, é por conta da omissão do Estado, de órgãos como Ibama, a própria PF, Funai etc. Não resolveram o problema agrário entre os indígenas, a empresa BBF e os demais povos tradicionais. Isso só foi se agravando com o tempo. Todo mundo sabe disso, e nada foi feito. É claro que o galho quebra para o lado mais fraco - afirma. - Não posso dizer hoje que nossos parentes Tembé são criminosos, até porque não está em trânsito e julgado. O que posso dizer é que existe um conflito muito grande, com interesse de uma empresa multinacional, e que não é resolvido.

Ronaldo relembra o histórico de tensão envolvendo a BBF.

- Várias lideranças do povo Tembé sempre reivindicaram o processo de demarcação de suas terras indígenas que vêm sendo ocupadas pela BBF, que cultiva dendê, e diversas vezes fizeram denúncias sobre a questão do conflito agrário se instalando na região. E vimos conflitos envolvendo pessoas da BBF. A empresa contratou pessoas fortemente armadas para impedir os Tembé inclusive de saírem dos seus territórios. Fizeram grandes valas cortando as estradas para que eles não conseguissem passar. É fácil agora dizer que as lideranças indígenas cometeram crimes A, B, C ou D. Mas nós indígenas somos as vítimas. Nossas terras ocupadas, os igarapés contaminados, vários conflitos com indígenas baleados... alguém da empresa foi preso? os que disparam contra os indígenas são presos?

Investigados por vários crimes
Segundo o inquérito da PF, que culminou na Operação Guaicuru, Paratê e Marquês Tembé teriam promovido a prática de crimes como tentativa de homicídio, associação criminosa, formação de uma milícia privada e posse ilegal de arma de fogo, nos últimos anos.

As investigações apontam que os dois líderes Tembé criaram uma milícia e vinham liderando uma série de conflitos armados na disputa por terras produtivas de dendê, de onde se extrai o azeite de dendê, também conhecido na indústria como óleo de palma. Além da utilidade no ramo alimentício e de cosméticos, trata-se de uma das matérias-primas mais eficientes para produção de biocombustíveis e está em alta no mercado internacional.

O delegado federal Vinícius Lima, à frente do inquérito, esclarece que não se trata de uma tribo inteira comandada por uma milícia, mas sim de um grupo criminoso privado e supostamente chefiado pelas duas lideranças. A organização contaria também com não-indígenas.

- As tribos não se transformaram em milícias. Algumas lideranças constituíram milícias privadas com não indígenas - frisa. - Algumas ações violentas e criminosas são mobilizadas por indígenas e com participação e fomento dessas lideranças. Então, não é uma questão da comunidade indígena, são essas duas lideranças específicas que têm esse comportamento violento. Boa parte da comunidade age pacificamente sem ter problema.

Lima afirma que a polícia ainda investiga de onde viriam as armas e o dinheiro que financia a suposta organização criminosa. Segundo ele, o inquérito foi instaurado por conta do "aumento da violência da comunidade indígena". A ação teve como objetivo "restabelecer a ordem pública na região de Tomé-Açu, sobretudo em relação aos conflitos que envolvem as comunidades tradicionais".

Os investigadores pontuaram que "existem disputas entre os próprios Tembés e também deles com quilombolas, por terras produtivas de dendê". A apuração detectou ainda que os presos se valiam das condições de lideranças para o cometer diversos crimes, inclusive contra a própria comunidade indígena.

Um dos indígenas teve mandado de prisão cumprido no Aeroporto Internacional de Belém. Também investigado por uma suposta ameaça a servidores do Ibama, ele estava a caminho de São Paulo quando foi abordado por uma equipe da Polícia Federal.

O outro líder foi preso pela Polícia Rodoviária Federal, com base em informações apuradas pela PF e pela Polícia Civil. A abordagem foi na rodovia BR-010, a caminho do município de Tomé Açu.

Briga com empresa de extração de dendê
Nas regiões de Tomé-Açu e Vale do Acará, há uma antiga e complexa disputa territorial travada entre os povos originários e a empresa Brasil BioFuels (Grupo BFF) - antiga Biopalma -, que extrai e produz mais de 200 mil toneladas do óleo de palma anualmente em cerca de 75 mil hectares na Floresta Amazônica. De um lado, indígenas afirmam que a BFF avança sobre territórios demarcados e que age com violência; do outro, a empresa diz que atua em áreas autorizadas e que sofre com "invasões ilegais" e igualmente violentas.

Em junho do ano passado, após uma tentativa de assassinato contra o cacique Lúcio Tembé, a promotoria paraense chegou a citar que, desde a instalação da empresa, em 2008, "vários episódios de violência contra indígena ocorreram". O posicionamento fez com que o grupo reagisse, afirmando que "Tomé Açu e Acará estão dominadas pelo crime" e que "invasores indígenas e o crime organizado tomam conta do local". A nota dizia ainda que "as áreas invadidas se tornaram pontos de tráfico de drogas, motivação da tentativa de assassinato do cacique", e acrescentava que "trabalhadores e moradores são vítimas desta teia do crime, que age no roubo de frutos de dendê para vendê-los a empresas receptadoras que atuam de forma ilegal na região".

No ano passado, em nota assinada pelo líder da Associação Indígena Tembé de Tomé-Açu, Paratê Tembé, de 29 anos, os indígenas afirmaram que a BBF tentou, através de seu posicionamento, "criminalizar suas lideranças e a luta que travada pela retomada de seus territórios ancestrais, ocupados atualmente pela empresa".

"A BBF, aproveitando-se dos eventos que cercam a tentativa de homicídio de uma de nossas principais lideranças, o cacique Lúcio Tembé, passou a fazer acusações graves e mentirosas contra o nosso povo, com o intuito leviano de desvirtuar as narrativas e ofuscar a verdadeira origem dos problemas que fazem parte do cotidiano de nossas aldeias", dizia a nota.

"Em nota enviada à imprensa pela empresa, insinuam e tentam vincular os indígenas à práticas criminosas que não fazem parte das nossas tradições e as quais abominamos, como tráfico de drogas. Nosso povo não tem nenhuma associação com grupos criminosos que atuam na região, como quer fazer parecer a empresa. Ao contrário disso, como já mostrou a investigação comandada pelos órgãos de segurança, o cacique Lúcio Tembé foi alvo de um atentado justamente por combater possíveis usuários e traficantes de drogas em nossa Terra Indígena", prossegue.

"As ilações da BBF contra o nosso povo nos deixa em uma situação ainda maior de vulnerabilidade porque desperta a revolta popular contra nós indígenas, porque faz com que seus funcionários alimentem um ódio injustificável contra nossas lideranças, as mulheres, crianças e todos os integrantes das nossas aldeias", conclui o texto.

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