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Xingu, terra de fascínios

O Globo, Prosa & Verso, p. 6.
18 de Jan de 2003

Xingu, terra de fascínios

Pedro Karp Vasquez

18/01/2003

O que falta aos nossos índios é um Spielberg, capaz de transformar o lento e implacável genocídio que os dizima há cinco séculos num tema de comoção mundial. Se conseguisse ao menos sensibilizar os próprios brasileiros já seria grande coisa, pois talvez assim os jovens deixassem de queimar ou espancar até a morte índios indefesos "só por brincadeira", como ocorreu de novo neste início de 2003, apesar de o presidente Lula ter mencionado, em seu discurso de posse, índios e negros como os grandes injustiçados de nossa História, deixando pressagiar um tratamento mais digno para ambos.

Orlando Villas-Bôas teve a sorte de não viver para ver essas últimas covardias, pois, desde 12 de dezembro passado, o "cacique branco" do Xingu repousa na imensidão inconsútil do silêncio verde, depois de ter dedicado a vida à causa indígena, com um devotamento irrestrito que o fez ser indicado para o Nobel da Paz em 1976. Tripudiado pelas autoridades - foi exonerado da Funai por fax em 2000, aos 86 anos - Orlando mereceu no entanto uma bela homenagem antes de falecer: a edição de "O Xingu dos Villas-Bôas". Obra fartamente ilustrada que evoca, com a ajuda das fotografias de Henri Ballot, Maureen Bisilliat e Noel Villas-Bôas, entre outros, e textos de Darcy Ribeiro, Antônio Callado, Maura Campanili e Murillo Villela, a criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961. Muito interessantes também são os textos do próprio Orlando, humanista utópico até o fim, porém nunca um ingênuo. Era um iluminado pregando num deserto de homens de fibra e espírito compassivo.

O mais velho, o mais longevo e o mais carismático dos quatro irmãos Villas-Bôas indianistas (os outros são Cláudio, Leonardo e Álvaro), Orlando foi a força propulsora da criação do Parque do Xingu, onde subsistem 15 grupos distintos, que certamente seriam extintos caso não fossem removidos para o parque, hoje cercado por áreas desmatadas e arruinadas pela cupidez de fazendeiros, madereiros e garimpeiros. Além da criação do parque, outro importante episódio evocado no livro, belo e pungente canto de louvor em prol dos primeiros brasileiros, é o da paradigmática Expedição Roncador-Xingu. Um livro precioso para quem deseja se familiarizar com a questão indígena, já que alterna textos antropológicos e ecológicos, com relatos e depoimentos que parecem extraídos de romances. O material visual é díspar em termos de qualidade técnica, pois congrega desde imagens de profissionais aos instantâneos domésticos, mas é unívoco em termos de interesse e fascínio. Com destaque para o "Álbum de Henri Ballot", reunindo as imagens em preto e branco que este fotógrafo francês realizou no Xingu para "O Cruzeiro" entre 1952 e 1956.

Nada do olhar contido e asséptico do antropólogo

Mais do que oportuna também é a reedição de "Xingu - Território tribal" quando vem a lume "O Xingu dos Villas-Bôas", pois esses livros oferecem um admirável panorama do parque, o mais sincero esforço de preservação da integridade física e cultural do índio brasileiro. O saboroso texto de Cláudio e Orlando Villas-Bôas permite ao leigo apanhar as circunstâncias que envolveram a criação do parque. Mas o cerne do livro é o esplêndido ensaio fotográfico de Maureen Bisilliat, nascida inglesa por injunções cármicas e convertida brasileira por convicção, autora de uma produção diversificada e tecnicamente arrojada. Seria restritivo qualificar o livro de sua obra maior, mas não cometeríamos injustiça se o arrolássemos entre os picos de sua produção criativa, já que "Xingu" é uma obra-prima da fotografia impressa. Mestra no uso das baixas luzes, Maureen concilia ousadia e respeito na abordagem do universo indígena, em nível de liberdade só igualado pela fotógrafa Claudia Andujar. Nada do olhar contido, asséptico e, por isso, muitas vezes frustrante, do antropólogo, e sim o profundo e arrebatador diálogo visual entre duas culturas que se examinam com o fascínio e o deleite dos apaixonados.

O Xingu dos Villas-Bôas, org. de Cristina Müller, Luiz Octavio Lima e Moisés Rabinovici. Ed. Metalivros, 205 págs. R$ 60

Xingu - Território Tribal, de Maureen Bisilliat (fotos), Orlando Villas-Bôas e Cláudio Villas-Bôas (texto). Cultura Ed. Associados, 200 págs. R$ 110

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