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Sivam e caro demais para vigilância aérea

Folha de São Paulo, p. 1-8 (São Paulo SP)
30 de Nov de 1995

Sivam é caro demais para vigilância aérea
Defesa do meio ambiente encarece o sistema; radares de controle do tráfego aéreo custariam quatro vezes menos
Clóvis Rossi
Da Reportagem Local
Complexo e sofisticado como é, o Projeto Sivam pode no entanto ser definido de maneira muito simples: como sistema de controle do tráfego aéreo, seu preço é exagerado, como admitem até seus defensores, e, como sistema de vigilância do meio ambiente, é no máximo um caríssimo complemento ao que já existe. Mas, ao mesmo tempo, a necessidade de um mecanismo mais eficaz de proteção da Amazônia, .uma região que abriga cerca de 30 % do estoque genético do planeta, é uma prioridade tão reconhecida, até universalmente, que o Sivam só poderia mesmo gerar a formidável polêmica que o cerca desde o nascimento.
Polêmica explicável também pelo fato de se tratar do primeiro programa, no mundo, a combinar puma única operação o controle do tráfego aéreo (lícito e ilícito) e a vigilância ambiental. Para entender se é ou não prioritário, é indispensável, portanto, ratar de cada uma dessas faces.
Na primeira, o controle do tráfego aéreo convencional, a rigor não há polêmica.
O almirante Mário Cesar Flôres, ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência (governo Itamar Franco), que se transformou m uma espécie de porta-voz oficioso do Sivam, admite que, para esse objetivo específico, o Sivam é caro demais.
Em artigo para a Folha publicado no dia 11 de julho, Flôres admitiu que uma rede de radares com essa finalidade teria custo inferior a US$ 300 milhões (o Sivam custará, por baixo, algo em torno de US$ 1,285 bilhão, ou quatro vezes mais).
Mas Flôres alega que o Sivam rastreará também os vôos ilegais e, por isso, exige "sensores mais complexos-, obviamente mais caros. Ainda assim, não se atingiria o US$ 1, 285 bihlião do Sivam se ele não viesse, enfeitado pela mais politicamente correta das expressões: a defesa do meio ambiente.
Os defensores do Sivam garantem que ele será um superxerife ecológico, vigiando desde as queimadas até o excesso de mercúrio nos rios, passando pela ocupação do solo e o desmatamento.
Mas essa suposta prioridade do futuro xerife ambiental é abatida antes mesmo de alçar vôo por João Paulo Capobianco, que dificilmente poderia ser chamado de "corvo".
Capobianco pertence ao Instituto Sócio-Ambiental de São Paulo, uma ONG (organização não-governamental) criada por um amigo do presidente, Márcio Santilli, hoje presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio).
"Do ponto de vista de controle ambiental, o projeto é no mínimo discutível. Do ponto de vista de informação ambiental, não justifica um investimento desse porte. Em resumo. não vai mudar a história da, Amazônia", diz.

Até militares divergem sobre o projeto
Indagar se o Sivam é ou não um projeto prioritário equivale a mergulhar em um Fla-Flu de opiniões, em que as paixões ditam as respostas.
A do almirante Mario Cesar Flores, ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, por exemplo, é definitiva: "A não ser que a Amazônia seja considerada irrelevante para o futuro do país e do povo brasileiro, o Sivam é prioritário e sua não-realização será cobrada como dívida imperdoável pelas gerações futuras".
De fato, o objetivo último do pacote Sivam/Sipam (em que o primeiro fornece informações e, o segundo, age) é inquestionável:
"Sua finalidade é dar suporte e zelar pela consolidação das ações de governo dirigidas para o desenvolvimento sustentável da região amazônica, (...) de modo a permitir a atuação coordenada e convergente das instituições públicas na Amazônia".
O porta-voz da Raytheon, Pat Coulter, dá um exemplo sedutor, em entrevista à revista "Earth Observation" ("Observação da Terra"):
"As imagens de satélites podem detectar um conteúdo de mercúrio mais alto do que o normal em um rio. Uma aeronave de vigilância será então lançada para ver se o mercúrio vem de mineração ilegal. Eventualmente, tropas podem ser enviadas para paralisar a mineração".
A hipótese não convence nem a área militar como um todo nem os ambientalistas. Para esses últimos, o Sivam não significa uma melhoria significativa na coleta de informações já hoje disponível.
E, mesmo que significasse, as ações repressivas e corretivas "vão esbarrar na capacidade operacional do governo para agir", diz João Paulo Capobianco, do Instituto Sócio-Ambiental.
Idêntica restrição parte até de um alto oficial da Aeronáutica: "Talvez seja preferível a ignorância do que gastar US$ 1,4 bilhão para ver o que acontece sem ter estrutura para combater os problemas", disse à Folha o brigadeiro Márcio Callafange, chefe do 7o Comando Aéreo da Amazônia.
Mesmo quando se desloca o foco para o combate ao narcotráfico, outra das presumíveis funções do Sivam/Sipam, há idêntico tipo de dúvida.
O general Thaumaturgo Sotero Vaz, que foi chefe do Comando Militar da Amazônia e hoje está na reserva, dizia que a Polícia Federal não tem estrutura para combater o narcotráfico, mesmo que todos os aviões clandestinos pudessem, de fato, ser localizados pelos equipamentos do Sivam.
Em depoimento a uma das comissões parlamentares que trabalhou este ano no caso Sivam, o general jogava outra pergunta provocadora:
"Como o governo quer assumir o comando de uma operação de US$ 1,4 bilhão na Amazônia, se não tem R$ 300 mil para fazer um postinho de 20 metros quadrados que abrigue as barreiras de fiscalização responsáveis por receber as informações do ar e executá-las em terra?".
Pergunta que vale para o Ibama, o instituto responsável pela vigilância do meio-ambiente. Seu pessoal calcula que seria necessária uma Polícia Florestal de 3 mil componentes para atuar a partir das informações do Sivam. O Ibama tem hoje 35 fiscais.

Jogo envolve filão de US$ 20 bi
O projeto Sivam em si vale cerca de US$ 1,4 bilhão, mas o jogo em torno dele envolve 14 vezes mais dinheiro _ou algo em torno de US$ 20 bilhões.
É que se deduz de declarações do presidente da Raytheon, Dennis J. Picard, à revista "Earth Observation".
Depois de afirmar que o sensoreamento remoto do meio ambiente vai se tornar essencial ao mundo em desenvolvimento, Picard informa: "Pretendemos ser líderes nessa nova área de mercado, que tem um potencial de US$ 20 bilhões pelos próximos 10 ou 15 anos".
É esse filão que ajuda a entender a verdadeira novela de espionagem e contra-espionagem em que se transformou o projeto Sivam.
Novela que envolveu uma coleção de autoridades norte-americanas, a começar do próprio presidente Bill Clinton, e pelo menos o ministro da Indústria e Comércio da França, Gerard Longuet.
Clinton, como é óbvio, pressionava pela Raytheon e, Longuet, pela Thomsom, a firma francesa. Foram as duas que ficaram para a seleção final.
A CIA (Agência Central de Inteligência) não poderia estar à margem do jogo. O jornal "The New York Times" informou, em fevereiro, que a CIA infiltrara-se do lado francês e obtivera informações de que a Thomsom teria oferecido "grandes propinas a funcionários brasileiros com poder de decisão".
O governo brasileiro, pela boca do almirante Mário Cesar Flôres, reconhece que "as atuações dos governos francês e americano puderam ser sentidas na fase final da concorrência".
Mas, para o almirante, foram "atuações" favoráveis aos interesses brasileiros porque a Raytheon melhorou as condições oferecidas, ampliando de cinco para oito anos o prazo de carência do financiamento e reduzindo os juros de 11% para 9% ao ano.
A retaliação do governo francês veio na forma de expulsão de cinco cidadãos norte-americanos, apontados como os que se infiltraram na sua própria CIA (a DST - Direção de Vigilância Territorial).
A vitória da CIA sobre a DST teve consequências no gabinete francês: Longuet, o ministro que viera fazer lobby pela Thomsom, foi forçado a pedir demissão e ainda responde a processo por corrupção.
Pós-Guerra Fria
A lista de nomes ilustres que tiveram envolvimento direto e indireto com o caso Sivam é eloquente, por mostrar as características que vem assumindo a diplomacia no pós-Guerra Fria.
"Ganhar a 'guerra econômica' passou a ser questão crucial de segurança (dos Estados e das grandes corporações empresariais) e para tal fim todos os mecanismos, subsídios, custeios e agitada articulação de meios informatizados e outras sutilezas humanas serão postos em ação", descreve Clóvis Brigagão, do Conjunto Universitário Cândido Mendes (RJ).
O nó do Sivam está resumido nessa frase. Ganhar essa batalha da "guerra econômica" está sendo considerado crucial pelo governo norte-americano.
Mas fica a suspeita de que o que Brigagão chama de "sutilezas humanas" (forma discreta de apontar as supostas irregularidades no projeto) é que acabou decidindo os rumos da batalha.

Empresa superfaturou nos EUA
Após ser escolhida pelo governo brasileiro, a Raytheon foi acusada de superfaturamento nos EUA.
Extrema coincidência: o suposto superfaturamento teria ocorrido (nos anos 80) em contrato com a Força Aérea dos Estados Unidos para a construção de radares, exatamente um dos equipamentos a ser utilizado no Sivam.
O caso é relatado em detalhes no minucioso "Dossiê Sivam", preparado pelo professor Clóvis Brigagão, do Conjunto Universitário Cândido Mendes.
O almirante Mário Cesar Flôres, em artigo para a Folha, comenta o episódio em termos cândidos: "A empresa líder do consórcio vencedor (a Raytheon) teria tido problemas no passado com o governo dos EUA. A notícia foi oportunamente verificada e autoridades norte-americanas (Executivo e Legislativo) informaram terem sido eles resolvidos".
Flôres não contou como foram resolvidos. Assim: a Raytheon fez um acordo com o governo norte-americano, antes do caso chegar aos tribunais, e pagou um reembolso de US$ 4 milhões.
A questão que fica é óbvia: se houve superfaturamento nos EUA, país em que a legislação e as punições são muito mais rigorosas, por que não poderia haver também no Brasil?

Projeto mantém pessoal da Esca
Funcionários da Esca, inicialmente escolhida para coordenar a parte nacional do Sivam, foram reaglutinados pela Aeronáutica e continuam trabalhando no projeto, aparentemente à espera de que se preencha o buraco negro aberto pelo afastamento da empresa.
O tamanho do buraco é definido em carta que a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência encaminhou ao Sindicato Nacional das Empresas de Engenharia Consultiva em junho de 1993.
Nela, a SAE pedia a indicação de empresas para participar do Sivam e definia: "Razões estratégicas e de segurança nacional impõem que as atividades dos diversos sistemas que o comporão sejam executadas por empresas integralmente brasileiras".
A falência da Esca, como é óbvio, não muda a definição. Mas, enquanto não se preenche esse buraco, surgem mais sombras na relação Esca-Sivam.
O senador Eduardo Suplicy (PT-SP) diz que até os coordenadores do projeto Sivam estranharam um súbito aumento da fatia destinada à Esca no contrato final.
"Os artigos 3 e 4 do contrato dizem que a Esca iria receber R$ 250 milhões, quando a coordenadoria do Sivam achava que a cota da empresa não iria além de R$ 170 milhões", diz Suplicy.

Programa já nasceu polêmico
O Sivam já nasceu polêmico, dado que todas as informações disponíveis levam à conclusão de que a escolha das empresas foi um jogo de cartas marcadas.
Uma das pessoas que participaram das primeiras reuniões em torno do projeto disse à Folha que o Sivam foi concebido e montado pela Esca.
A Esca era, na prática, um apêndice da Aeronáutica, criada e desenvolvida por oficiais dessa força que passavam para a reserva. "Aqui, nós somos o governo", diziam representantes da Esca nas reuniões com o setor privado para a montagem final do Sivam, antes mesmo de a empresa ser escolhida como controladora nacional do projeto.
O senador Jáder Barbalho (PA), líder do PMDB no Senado, chegou a dizer que "a Esca participou até da análise das propostas financeiras apresentadas pelas empresas que disputavam o fornecimento de radares".
Era natural que acabasse participando inclusive da seleção da empresa estrangeira (a multinacional norte-americana Raytheon).
O próprio presidente da Esca, Steve Ortiz, equatoriano que se naturalizou norte-americano, admitiu: "Fomos escolhidos pelo governo brasileiro antes mesmo da escolha da empresa que fornecerá os equipamentos, participando da seleção dessa empresa".
Mas também no caso da Raytheon, o jogo parecia de cartas marcadas.
Viagem
A deputada Irma Passoni (PT-SP) viajou em 1993, como presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, para Lexington, no Estado norte-americano de Massasuchets, sede da Raytheon, uma multinacional que se orgulha de movimentar anualmente US$ 12 bilhões.
Lá lhe foram apresentados todos os planos do Sivam, que, em tese, deveriam ser sigilosos.
Esse vazamento invalida o argumento utilizado pelo governo para não fazer uma concorrência pública convencional.
Motivo alegado: o conhecimento público dos equipamentos e do preparo dos programas de processamento e integração sistêmica "comprometeria o sistema".
Por isso, o governo decidiu-se por uma concorrência dirigida. Foram enviadas cartas a 16 embaixadas, que dariam conhecimento às empresas, mantendo confidenciais certos dados sensíveis.
O relato de Irma Passoni demonstra que a confidencialidade não foi respeitada.

FSP, 30/11/1995, p. 1-8

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