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Manaus movida a solar

O Globo, Amanhã, p. 18-24
20 de Nov de 2012

Manaus movida a solar
Maior usina da América Latina vai abastecer pouco mais de 2 mil casas. Fornecimento será adicionado na malha elétrica do Amazonas, a nova fronteira energética do país

Cleide Carvalho
cleide.carvalho@sp.oglobo.com.br

Dono da maior extensão territorial do país e com 98% de sua floresta ainda preservada, o Amazonas sintetiza como nenhum outro estado brasileiro o dilema entre preservação ambiental e desenvolvimento sustentável. Abrigo de incontáveis riquezas naturais, mantém boa parte de sua população ribeirinha à margem de confortos básicos da vida moderna, como matar a sede com um copo de água gelada.
É por isso que, no momento em que a construção de novas usinas hidrelétricas na Amazônia está sendo articulada, o estado chama atenção com um projeto inovador: a instalação em Manaus da maior usina solar da América Latina, com potência de quatro megawatts (MW).
A maior planta em operação no país até agora é a de Tauá, localizada no sertão do Ceará. A usina pertence ao grupo do empresário carioca Eike Batista e seu potencial é de um MW - volume suficiente para iluminar 1.500 residências. A de Manaus vai abastecer 2.370 casas na capital.
Falar em quatro MW quando se estuda produzir 6.133 MW na hidrelétrica de São Luiz do Tapajós ou se espera os 11.233 MW de Belo Monte, parece ironia. Mas não é. A usina de Balbina, erguida há mais de 20 anos e que inundou, na época, uma área de 2.360 km² nos arredores de Manaus, responde por 13,8% do abastecimento de energia na cidade. O linhão de Tucuruí, com seus 1.800 km de cabos sobre florestas e rios, não responderá por mais do que 10,8% em 2015. Em muitos municípios amazonenses, como Itacoatiara, São Sebastião do Uatumã ou Rio Preto da Eva, a população vai ver os cabos passarem por cima de suas casas e continuará a luz de lamparina, já que o consumo não justifica o investimento numa subestação na região.
Para se ter uma ideia, 47,7% da energia elétrica de Manaus provém das termoelétricas movidas a diesel e a óleo bruto. O recém-chegado gás natural do gasoduto Urucu-Manaus responde por 38,5%.
O que a usina manauara promete é servir de exemplo para subverter a lógica do modelo de geração e distribuição de energia elétrica centralizado, em grande quantidade e a grandes distâncias. O projeto é instalar os painéis fotovoltaicos na cobertura do estacionamento da Arena Amazônia, o estádio que abrigará jogos da Copa do Mundo em 2014, e no centro de convenções do complexo. A energia excedente será incluída na malha elétrica da cidade. Trata-se, portanto, de um novo uso para espaços mortos, que só costumam ser lembrados quando surgem goteiras.
- A ideia é que você produza sua própria energia, no telhado. Durante o dia, você usa o que precisa e injeta o excedente na rede elétrica. Quando necessita de energia, utiliza a da rede - explica o professor Ricardo Ruther,pesquisador do Laboratório de Eficiência Energética em Edificações da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenador do projeto de usina solar em Manaus, desenvolvido com recursos a fundo perdido do Banco de Desenvolvimento da Alemanha (KfW, sigla em inglês).
A conta feita por Ruther é desconcertante: a usina de Itaipu, com seu lago que ocupa 1.350 quilômetros quadrados (km²), gera cerca de 20% da energia consumida no país. Se essa área fosse inteiramente coberta por painéis fotovoltaicos, a eficiência aumentaria e o volume de energia produzida poderia alimentar 40% do consumo nacional. Ainda que a comparação seja uma provocação em defesa dessa fonte alternativa, Ruther, ao contrário do que possa parecer, não defende a energia solar como única opção energética. Pelo contrário. A viabilidade, diz ele, está justamente na descentralização:
- Os painéis fotovoltaicos devem estar na cobertura de indústrias, supermercados, edifícios, escolas, ginásios esportivos, prédios públicos e residências.
O projeto de Ruther foi elaborado para dar mais eficiência aos estádios a serem erguidos no Brasil para a Copa de 2014. Se os estudos fossem colocados em prática, as novas arenas seriam, todas, autossuficientes na produção de energia elétrica solar, como já ocorre nos estádios do Pituaçu, em Salvador, e no Mineirão, em Belo Horizonte. Em Manaus, a arena deve ficar fora, pois o projeto do estádio foi aprovado antes dos estudos da universidade.
A implantação nas áreas do entorno, que juntas darão origem à usina, deverá consumir cerca de R$ 26 milhões, um investimento tripartite entre governo do estado, Eletrobras e iniciativa privada.
- A usina de Manaus é um projeto piloto e será levado ao interior do estado. Para a maioria dos municípios, a solução é o modelo híbrido, com a produção de energia solar e reservas de energia de biomassa ou diesel - afirma João Palocchi, coordenador do Centro de Estudos de Mudanças Climáticas da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Amazonas.
No Amazonas, 27 municípios se encaixam hoje no padrão de consumo de até quatro MW. Há ainda pelo menos cinco mil comunidades dispersas, formadas por agrupamentos de 12 a 30 moradias, que hoje dependem de gerador a diesel, praticamente sem assistência técnica e com alto custo.
Palocchi conta que essas comunidades ligam o gerador apenas no fim do dia, por períodos de, no máximo, quatro horas. Para que a geladeira forme o máximo de gelo possível, acabam colocando na graduação máxima, período em que aproveitam para ver novela e, depois, vão dormir. Para ter este conforto, é preciso pagar caro: de R$ 50 a R$ 90 por mês, por moradia.
- Para essas pessoas, a energia solar é a melhor opção - diz Palocchi.
Utilizar a energia solar para abastecer comunidades distantes, fora dos sistemas de transmissão que formam o Sistema Interligado Nacional (SIN), onde predominam as grandes hidrelétricas, não é uma novidade. A Eletrobras Amazonas Energia já adota o sistema em 12 comunidades isoladas desde julho de 2011, no Acre e no Amazonas.
A diferença de Manaus é que a energia solar gerada no entorno da Arena deverá se incorporar à rede elétrica, propiciando à cidade mais uma fonte renovável de energia. Também em Parintins, segunda maior cidade do estado - conhecida como palco dos bois Caprichoso e Garantido -, painéis fotovoltaicos serão usados no modelo híbrido, no qual o consumidor usa a energia solar durante o dia e, à noite, utiliza os da rede de distribuição tradicional. No projeto que começa a ser implantado pela Eletrobras, as placas serão instaladas em prédios públicos, como o do Fórum de Justiça de Parintins.
Recém regulamentada pela Agência Nacionalde Telecomunicações (Anatel), a rede inteligente é capaz de absorver a energia solar gerada por produtores independentes durante o dia, quando geralmente os consumos residenciais são mais baixos. À noite, quando este mesmo cliente necessitar de energia, ele pode acionar a rede elétrica disponível na rede de seu bairro. Se a energia de origem solar colocada na rede for maior do que que ele recebe, o consumidor pode inclusive ter saldo a receber, transformando-se em fornecedor.
O que se pode imaginar, a partir daí, é um sistema de troca de energia, onde milhares de fornecedores podem se autoabastecer e gerar excedente para o sistema nacional.
- Nos Estados Unidos estão instalando 500 MW de energia solar em residências e já há empresas que alugam as placas e as bateriase prestam serviços de manutenção. Vamos entrar num novo momento, de disseminação da energia solar - afirma Palocchi.
No Brasil, a energia solar tem ficado à margem das discussões para ampliação das fontes de energia renovável. O maior crescimento previsto na matriz nacional é o da energia eólica. O principal argumento é o alto preço, por falta de equipamentos de fabricação local.
O que recoloca o potencial solar na mesa de debates é, segundo Ruther, a queda nos preços ditada pela China - o que vem suscitando acusações de dumping pelos americanos e pelos europeus. O preço caiu de US$ 4,5 por watt de 2006 para US$ 1 este ano, sem contar os custos da bateria de armazenagem.
No Brasil, a instalação varia de R$ 8 mil e R$ 10 mil para uma família de quatro pessoas.
Ruther compara o barateamento da geração de energia solar à popularização dos telefones celulares no Brasil. No início, lembra ele, o preço era alto devido à escala de produção. O aparelho custava tão caro, que, nos anos 90, ficou identificado como símbolo de status. Hoje, o celular se popularizou.
- A energia solar é uma solução urbana.
Basta disseminar informação entre a população e fazer programas de incentivo. Se isto acontecer, em cinco anos recuperamos o tempo perdido - diz Ruther, que comemorou, este mês, os 15 anos do primeiro painel fotovoltaico instalado do país, no laboratório da Universidade Federal de Santa Catarina.
O estudo 'O Setor Elétrico Brasileiro e a Sustentabilidade no Século 21 - Oportunidades e Desafios' mostra, por exemplo, que o Brasil tem uma média anual de radiação entre 1.642 e 2.300 KWh/m²/ano em seu território. Se apenas 1% dessa energia fosse aproveitada, toda a demanda brasileira por eletricidade poderia ser atendida. O documento foi patrocinado por organizações não governamentais.
O coordenador da campanha de Energias Renováveis do Greenpeace Brasil - uma das instituições patrocinadoras do estudo -, Ricardo Baitelo, está convencido de que o maior entrave ao aproveitamento e à expansão da energia solar no país é a falta de políticas públicas. Os incentivos dados à energia eólica, diz ele, não vem sendo estendidos à solar.
Cálculos feitos pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, de São Paulo, indicam que as famílias que instalaram coletores de energia solar em casa tiveram um redução de 30% no valor da conta de luz. Cerca de 45 mil unidades habitacionais construídas para a população de baixa renda no estado de São Paulo estão nessa situação.
Parte dos equipamentos veio dos recursos do Programa de Eficiência Energética, que destina 0,5% da receita líquida das distribuidoras a programas de redução de consumo. O restante é investimento da própria empresa.
Todas as unidades têm chuveiro ligado à rede elétrica convencional. Quando a água vem quente do reservatório, não é preciso ligá-lo. Em alguns conjuntos residenciais mais novos está sendo instalado um chuveiro "inteligente", que lê a temperatura e aciona a resistência automaticamente quando a água está a menos de 39 graus.
Jeysla Maria Machado Souza, 39 anos, que se mudou, há menos de um ano, para um dos 1.840 apartamentos do Residencial Rubens Lara, em Cubatão, viu sua conta de luz passar de R$ 120,00 para R$ 80,00 por mês. Esse conjunto habitacional foi construído para abrigar famílias que viviam nas encostas da Serra do Mar, área de preservação de Mata Atlântica.
- É raro a água não esquentar por falta de sol - conta Jeysla.
Já a vizinha Glaucia Fernandes, 27 anos, gasta um pouco mais. Ela faz sacolé em casa para vender e, por isso, tem dois freezers e mais um par de geladeiras. Apesar da inflação de eletrodomésticos, sua conta de luz caiu de R$ 300 para R$ 180 por mês, em média.
- O chuveiro elétrico é um vilão. Fazemos a nossa parte para contribuir com o sistema elétrico nacional - afirma Eduardo Leite Baldacci, gestor do Programa de Eficiência Energética da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU).
A empresa implantou um projeto piloto, em parceria com a AES Eletropaulo, para instalar coletores fotovoltaicos nas unidades e lâmpadas LED, que são mais econômicas.
O Internacional Copper Association (ICA, sigla em inglês) e empresas do setor de energia solar estão desenvolvendo campanhas para aumentar o uso da energia solar na América Latina. Segundo dados da Associação Europeia da Indústria Fotovoltaica (Epia), a energia solar fotovoltaica no mundo passou de 16,6 GW instalados em 2010 para 27,7 GW em 2011 - um aumento de 70%.
Cerca de 70% desta energia é gerada na Europa, onde a insolação é bem menor se comparada à do Brasil. Para se ter uma ideia, a menor irradiação solar no Brasil ocorre em Santa Catarina e é cerca de 30% acima da média de irradiação da Alemanha. Segundo a Associação Brasileira de Refrigeração, Ar Condicionado, Ventilação e Aquecimento (Abrava), cada metro de coletor solar utilizado durante um ano equivale a 56 metros quadrados de áreas inundadas por hidrelétricas.

O Globo, 20/11/2012, Amanhã, p. 18-24

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