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Usina de mudanças

FSP, Dinheiro, p. B10-B11
20 de Set de 2009

Usina de mudanças

Agnaldo Brito
Enviado especial ao Pará

O projeto hidrelétrico de Belo Monte, no Pará, terá mais do que a missão de garantir a oferta de nova energia para a expansão da economia brasileira. A construção desse gigante, com impactos sobre 11 municípios e nove terras indígenas no norte do Pará, significará uma mudança completa da geografia econômica do Brasil, e sobretudo da Amazônia.
Está será a maior obra de infraestrutura já realizada no país desde Itaipu e um teste para o que o governo sugere ser um novo modelo de "ocupação e uso sustentável" de uma região com baixíssimos índices de desenvolvimento e, em parte, já corroída pela exploração desordenada.
Se liberado pelo Ibama dentro de algumas semanas -como espera o governo-, Belo Monte será o 3 maior empreendimento hidrelétrico do planeta, com 11,2 mil MW, só aquém do projeto chinês de Três Gargantas (18 mil MW) e de Itaipu (14 mil MW). A obra vai exigir uma das maiores engenharias financeiras já montadas no hemisfério Sul. Demandará, segundo estimativas do governo, R$ 20 bilhões ou mais. O valor final será divulgado nesta semana.
Na Volta Grande, zona de transição entre o médio e o baixo rio Xingu, o projeto inspira reações diversas, da apreensão à euforia. A obra afetará áreas indígenas, desmatará grandes áreas de floresta e secará parte do rio Xingu. Promete, de outra parte, levar empregos e infraestrutura a uma região miserável que parece abandonada pelo Estado brasileiro.
A usina só ficará pronta depois de uma década de obras. Os números são superlativos. A movimentação de terra (150 milhões de metros cúbicos) e de rocha (60 milhões de metros cúbicos) será superior à que foi necessária para a construção dos 82 quilômetros do Canal do Panamá, que rasga a América Central e liga os oceanos Pacífico e Atlântico. O empreendedor terá de movimentar 310 milhões de toneladas, o equivalente a mais de duas safras de grãos do país.
A previsão é que Belo Monte mobilize 100 mil pessoas, incluídos os 18,7 mil trabalhadores empregados nas obras, 23 mil nas atividades que orbitam o empreendimento e um contingente de 55 mil pessoas em busca do "novo Eldorado".

Projeto militar
Para os críticos, essa parece ser uma conta subestimada. Avaliam que a obra mobilizará o dobro, 200 mil pessoas.
Rabiscado pela primeira vez em 1975, quando o governo militar lançou grandes planos de ocupação da Amazônia, o projeto deve finalmente sair do papel em dezembro, após um dos maiores leilões públicos a ser realizado no país, em ato que concretiza um sonho do governo Lula. Grupos nacionais e internacionais de infraestrutura estudam participar do projeto.
Maior obra do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), Belo Monte promete retomar e consolidar -despertando preocupação em ambientalistas- o plano nacional de ocupação amazônica.
Os principais objetivos do projeto, segundo o governo, são nutrir o sistema elétrico brasileiro com farto potencial de hidroeletricidade e possibilitar a industrialização da Amazônia.
Aliado do projeto, o governo do Pará impõe como condição o fornecimento de energia barata para grandes mineradores. No governo, a tendência é que o pedido seja aceito.
"O Brasil pode retomar um caminho que tínhamos abandonado. Um potencial hidrelétrico como o que temos na região Norte precisa ser explorado. Não é razoável que fiquemos comprando energia térmica quando temos uma opção renovável", diz Maurício Tolmasquim, presidente da EPE (Empresa de Pesquisa Energética).
Para os opositores, o problema é o modelo. "O que está em discussão não é só a usina de Belo Monte mas o modelo de desenvolvimento que está por trás do projeto. O impressionante é que de alguma maneira o plano repete o modelo de ocupação visto no período militar", diz Rodrigo Timóteo da Costa e Silva, procurador do Ministério Público Federal em Altamira (PA). A região teme a repetição de desastres ambientais como os ocorridos em Tucuruí (PA) e Balbina (AM).
A esperança do governo federal é a de que da Amazônia -4% do território da Terra- venham os 4.000 MW anuais de que o país precisa para expandir o parque gerador nacional e assim manter distante qualquer ameaça de apagão.
Com 12% da água doce do planeta, o país já concluiu que 70% da disponibilidade de hidrelétricas ainda não foi aproveitada e que 66% dessa riqueza fica no Norte. Por isso, após os projetos do Madeira (6.400 MW) e de Belo Monte, deve vir o próximo: o complexo hidrelétrico Tapajós. E este não com uma, mas com cinco usinas.

Obra desalojará 20 mil pessoas em áreas próximas ao Xingu

Do enviado especial ao Pará

Pelas contas da Eletrobrás, cerca de 20 mil pessoas terão de sair de suas casas para dar lugar a canais e reservatórios que inundarão 516 km2 de área contígua ao rio Xingu.
Benedito Balão, 75, afirma que a história "esquenta a cabeça demais". Ele nasceu perto da ilha do Itaboca, no rio Xingu, em 1933. Ali conheceu e se casou com Aurina, e hoje o clã Balão, com 20 pessoas, ocupa dois lotes nas barrancas do rio, onde planta mandioca, arroz, feijão e cacau.
Apesar de estar a cerca de 50 quilômetros de Altamira, chegar à casa de Balão não é tarefa trivial, seja de barco, descendo o Xingu, seja de carro, cruzando o Travessão 27, uma pinguela mal conservada, única ligação terrestre com o mundo.
Balão e família já foram informados de que terão de deixar o local futuramente.
Ao lado de sua casa fica o igarapé Gaioso, onde as máquinas de empreiteiros rasgarão o solo para a construção de um canal de drenagem do rio Xingu, com 250 metros de largura e 12 km de extensão.
"Essa gente da Eletronorte vem aqui e fica dizendo que tenho de sair. Tudo que tenho está aqui, não tenho saúde para começar de novo", diz. Sem muita informação sobre o futuro, cabe a esse paraense um solitário protesto: uma placa fincada diante de sua casa resume o sentimento familiar na frase "não quero a barragem de Belo Monte" (veja foto ao lado).
Os efeitos da obra serão percebidos também em regiões mais densamente habitadas. Na periferia de Altamira, um bairro de palafitas vai desaparecer. A precariedade ali é total. Não há esgoto. A água potável é escassa, e os equipamentos urbanos são ineficientes. Cerca de 16 mil pessoas serão retiradas. Vão, conforme promessa, para bairros que serão construídos pelos empreendedores.
É o que ocorrerá ainda com o povoado de Santo Antônio, às margens da Transamazônica, onde ficará o coração da usina, a casa de força principal.

Promotoria pedirá anulação de audiências públicas no Pará

Do enviado especial ao Pará

O Ministério Público Federal do Pará vai pedir à Justiça Federal a anulação das quatro audiências convocadas pelo Ibama e realizadas nas cidades de Brasil Novo, Vitória do Xingu, Altamira e Belém. A ação civil pública será protocolada nesta semana. Segundo Daniel César Azeredo Avelino, procurador da República, comunidades indígenas e a sociedade civil não conseguiram participar da discussão do empreendimento.
Em Altamira, 150 índios presentes na audiência se retiraram do ginásio alegando não compreender a discussão do projeto. Em Belém, um acanhado auditório obrigou a Força Nacional de Segurança, chamada para apoio ao evento, a fechar o recinto. O MPF se retirou do encontro.

Funai
A Folha esteve na reunião entre dirigentes da Funai (Fundação Nacional do Índio) e índios no dia da audiência pública, em Altamira. Na ocasião, a Funai antecipou às comunidades locais parte do conteúdo de seu parecer técnico, que será divulgado até o fim do mês.
O parecer da Funai sobre Belo Monte inclui o pedido de novos estudos para avaliar os impactos sobre comunidades indígenas não estudadas -xipaias e kuruaias. A usina não alaga terras indígenas, mas o desvio do rio reduz o fluxo d'água nas terras do Paquiçambas e Araras da Volta Grande.
A instituição vai impor condições, como a regularização das terras indígenas. No entorno do projeto há nove territórios indígenas e uma área não reconhecida, os "jurunas do km 17". Outra exigência será o envolvimento do Congresso, para a chamada "oitiva indígena". Para a Funai, é o que manda o artigo 231 da Constituição.
A ministra do STF (Supremo Tribunal Federal) Ellen Gracie, primeira a interpretar o artigo, não considerou necessária a oitiva indígena pela Congresso, apenas a garantia de participação das comunidades nas audiências públicas.

Produção de energia em usina sofrerá fortes oscilações
Vazão do rio Xingu levará Belo Monte a alternar períodos de grande produção e de baixa geração

Do enviado especial ao Pará

A grande oscilação entre cheias e secas do rio Xingu vai transformar a hidrelétrica de Belo Monte numa imensa usina "vaga-lume". A vazão do rio pode alcançar 20 mil metros cúbicos por segundo no período de cheia, e em outros momentos, como agora, pode baixar a menos de mil metros cúbicos por segundo entre os períodos de setembro a outubro.
A Grande São Paulo, maior núcleo urbano do país, consome cerca de 60 metros cúbicos de água por segundo. O Xingu, mesmo na baixa, pode abastecer 16 cidades como São Paulo. Mas com essa imensa variação do nível d'água, Belo Monte terá, no período seco, pouca água para movimentar as turbinas.
Para extrair a energia dos 11,2 mil MW, são necessários 14 mil metros cúbicos por segundo de água, condição só possível entre os meses de março e abril, auge do período chuvoso. A previsão é que em outubro a situação seja inversa, de baixíssimo volume d'água, com geração ínfima.
"Como é possível uma usina com tantos problemas ambientais ter uma ociosidade dessa magnitude? Se a vazão do rio baixar mais de 700 metros cúbicos por segundo, o que já ocorreu, Belo Monte produzirá quase como uma pequena central hidrelétrica", critica Francisco Hernanes, pesquisador do IEE/USP (Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo) e um dos coordenadores do grupo de 38 especialistas de várias regiões do país que apresentará ao Ibama suas impressões sobre o projeto até o fim deste mês.
Só a partir dessa particularidade é possível relativizar o tamanho de Belo Monte. Embora a capacidade seja imensa, a energia firme extraída da usina será de 4.428,1 MW, 39,4% da capacidade total, algo próximo às usinas do Madeira (Jirau e Santo Antônio). Essa potência com que o país poderá de fato contar é 7,5% menor do que havia desejado a Eletrobrás.
A área ambiental exigiu a liberação de pelo menos 700 m3/s para o trecho de vazão reduzida do Xingu, para a Volta Grande. A barragem vai desviar o rio e vai secar parte dos 100 quilômetros da Volta Grande. No período chuvoso, o volume d'água abaixo da barragem principal será, no máximo, de 4.000 m3/s no primeiro ano e de 8.000 m3/s no ano seguinte. Foi a forma encontrada para se evitar uma catástrofe ambiental, com morte de peixes e da floresta ribeirinha, além de assegurar condições de navegação aos povos da região.
Walter Cardeal, diretor de engenharia da Eletrobrás, não considera esse um problema para a operação da usina. A justificativa: apesar disso, Belo Monte vai revezar com as usinas do Sul e do Sudeste no abastecimento do Sistema Interligado Nacional. "As chuvas na região Norte ocorrem antes das chuvas do Sudeste. Com isso, Belo Monte pode gerar energia enquanto as usinas do Sul e do Sudeste reservam água, e vice-versa", explica.
Maurício Tolmasquim, presidente da EPE, reconhece o problema, mas justifica que isso ocorre em razão da impossibilidade hoje de construir usinas como Itaipu, com grandes "estoques" de água. Foi isso que reduziu de 1.225 para 516 quilômetros quadrados a área alagada pelo projeto. "O país perde potencial energético, é inevitável. Ou fazemos isso, ou não temos mais hidrelétricas."
Para especialistas, reside aí um dilema. Uma resolução do CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) determinou a construção apenas de Belo Monte na bacia do rio Xingu. "Quem pode assegurar que, numa eventual crise energética, o CNPE não mude sua posição e aprove outras barragens no Xingu para aproveitar mais a capacidade que ficará ociosa?", disse Hermes Fonseca de Medeiros, professor-adjunto da Faculdade de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Pará. Para especialistas, a resolução não é uma garantia.

Olarias serão inundadas, mas dono de bar espera lucro maior

Do enviado especial ao Pará

As olarias da região de Belo Monte, que produzem cerca de 30 mil tijolos por dia, vão ser inundadas. Para centenas de trabalhadores que dependem da atividade econômica, o futuro é incerto.
"Ninguém explica onde é que vamos ficar. Onde é que vamos ter outra reserva de argila para os tijolos, onde é que eu vou ganhar a vida?", afirma Claucimar Nogueira Félix, 37, há 16 anos trabalhando como oleiro.
Também oleiro, Miguel dos Santos, 51, morador de uma das áreas mais carentes da periferia de Altamira, no Pará, prevê dias melhores com o início das obras da usina.
A olaria, em que trabalha de dia, vai desaparecer com o início das obras. Mas o megaempreendimento hidrelétrico deve dar novo impulso à atividade noturna de Santos, um pequeno bordel chamado Bar Drink's e Dormitórios.
A estrutura é precária. Duas mesas encardidas, um balcão de alvenaria e uma passagem para os "dormitórios" tampada com uma cortina. "Com Belo Monte meu negócio vai ser esse, e não a olaria", diz Santos, que espera, com o fluxo de 100 mil pessoas atraídas pelas obras, que não faltem clientes.

FSP, 20/09/2009, Dinheiro, p. B10-B11

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