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Trópicos não tão tristes

FSP, Mais, p. 7
Autor: GALVÃO, Walnice Nogueira
23 de Nov de 2008

Trópicos não tão tristes
Apesar de sua importância decisiva para o futuro da disciplina, antropólogo teve contribuição ínfima para os debates que ocorriam no Brasil, nos três anos em que permaneceu no país

Walnice Nogueira Galvão
Especial para a Folha

Não foi "Tristes Trópicos" o livro que caiu como uma bomba no meio estudantil, que até então jurava por Sartre. Foi "O Pensamento Selvagem": tornou-se ponto de honra sabê-lo de cor. A essa altura, Bento Prado Jr. parafraseou um ditado malandro, que ficou assim: "Boy que é boy não lê Sartre, lê Lévi-Strauss".
Eureca: esse foi o livro de base, ao equiparar o conhecimento indígena às mais altas reflexões da civilização ocidental. Não é pequena a proeza, e reconhecemos em quem o escreveu um herói civilizador.
Depois, adviria o monumento que é a seqüência das quatro "Mitológicas". Que nos remeteria para trás, para "As Estruturas Elementares do Parentesco", em que o antropólogo ajusta as contas com a tradição das ciências sociais francesas, e para a antropologia estrutural.
Mas o livro inaugural, por aqui, foi mesmo aquele.
Por tudo isso, os paradoxos de nossa conjuntura mostram-se -como diria Lévi-Strauss, louvando-se nos mitos- "bons à penser". Pensar, por exemplo, que ele foi um dos fundadores de nossa Faculdade de Filosofia, criada para ser a cabeça teórica da Universidade de São Paulo.
E isso aos 27 anos, antes que escrevesse qualquer livro. Traz à lembrança o jovem Foucault, que também foi por muitos anos professor nessa escola, dando-nos o privilégio de ministrar o curso de "As Palavras e as Coisas", ainda não escrito.

Contribuição ínfima
Ante o deslumbramento de uma das obras mais influentes do século passado, fica difícil lembrar quão pouco Lévi-Strauss se demorou por aqui (apenas os três anos do contrato) e como foi ínfima a contribuição que deu naquele momento. Não que fosse esse o destino fatal dos europeus fundadores.
Seu sucessor na cadeira de sociologia, Roger Bastide [1898-1974], permaneceria na faculdade por 16 anos, participando intensamente da vida cultural, escrevendo semanalmente para jornais e revistas, discutindo nossa literatura, nossas artes e nosso pensamento. Além de se tornar o iniciador da sociologia da religião no país, com "As Religiões Africanas no Brasil" [ed. Pioneira], mais tarde deflagraria também os estudos sobre o negro na atualidade, com "O Negro na Sociedade de Classes", por iniciativa da Unesco e com assessoria de Florestan Fernandes, seu aluno e assistente. E se dedicaria à formação de levas de estudantes.

Férias na França
Lévi-Strauss seria bem menos participativo.
Durante o ano letivo dava suas aulas e, nas férias, regressava à pátria ou se embrenhava no sertão, para investigar os índios. Jamais precisou quantas expedições fez e quanto tempo ficou nas aldeias, no total.
Mesmo porque foi à França em algumas das férias, contando em "Tristes Trópicos" que já era reconhecido pelos empregados dos navios que faziam a travessia.
Nas entrevistas, passa por alto esse ponto delicado; e, mesmo em sua biografia oficial da Academia Francesa de Letras, só se fala em "várias expedições", entre os anos de 1935 e 1938. Talvez tenha sido sensível ao fato de que construiu uma obra notável, e enorme, em cima de uma experiência de terreno tão reduzida.
"Tristes Trópicos" muito deve à teoria da "tristeza tropical", vigente por aqui à época de sua estada, exposta no influente e então reeditado "Retrato do Brasil" [Companhia das Letras], de Paulo Prado -mas que para nós já era mais do que superada. De toda a obra de Lévi-Strauss, seu destino foi (hélas!) tornar-se o livro mais lido, porque o mais fácil.
Algo de semelhante se passa com "Raízes do Brasil" [Companhia das Letras], o menos complexo dos livros de Sérgio Buarque de Holanda [1902-82].
No livro francês, a má vontade para com o Brasil e os brasileiros é incontornável, e ele zomba de tudo que lhe passa pela frente, inclusive do nível de colegas e estudantes, de nosso subdesenvolvimento geral.
É dele o diagnóstico de que nosso país saltou da barbárie à era da tecnologia sem passar pela civilização. O pior é que no Brasil há muito intelectual que aceita a avaliação negativa, vestindo a carapuça do colonizado que dá autoridade ao colonizador para denegri-lo.
Destaca-se pela originalidade ao afirmar que a baía de Guanabara é feia, opinião bizarra, comparando-a a uma "boca banguela".
Quando a má vontade veio a se dissipar, Lévi-Strauss nem a reconheceu nem quis mais falar disso. E pôde, finalmente, ao redor dos 90 anos, publicar belos livros de fotos com prefácios e títulos afetuosos, como "Saudades do Brasil" (1994) e "Saudades de São Paulo" (1996).

Cordialidade
É verdade que sempre recebeu com calor em seu escritório qualquer brasileiro que o procurasse, mesmo o mais insignificante dos estudantes sem nenhum título. A enorme influência que acabaria por ter em nosso país só se daria décadas mais tarde e, assim mesmo, mediada pela moda do estruturalismo.
Autor inédito, foi aqui que hauriu a matéria-prima de sua obra, no contato, apesar de limitado e esporádico, com os índios. Depois, pesquisaria longamente nossa tradição de estudos de etnologia e antropologia, que estão constantemente citados em seus livros.
O ponto central, a meu ver, é que o contato com o Brasil forneceu a "epifania epistemológica" que iria deflagrar-lhe a imaginação antropológica, definindo o rumo que sua carreira científica tomaria.
Os equívocos dessa conflituosa relação ainda têm reflexos contemporâneos. No intuito de contribuir para o Ano do Brasil na França, "Les Temps Modernes", a revista que Sartre fundou, publicaria (no n 628) quatro cartas de Lévi-Strauss a Mário de Andrade.
Uma apresentação de dez linhas comete vários erros. O destinatário, dizem lá, "esteve em relação" com o remetente "enquanto diretor cultural da municipalidade de São Paulo". Ora, novos trabalhos têm mostrado que o Departamento Cultural, Mário à frente, co-financiou as expedições do antropólogo.
E o tom das cartas mostra claramente que se trata de um relatório de progresso, de uma satisfação dada ao financiador.
Além disso, Dina Lévi-Strauss, a cônjuge, era assistente de Mário nesse mesmo departamento. Mário criaria uma subdivisão de etnologia, que chegou a desenvolver alguns cursos dados pela assistente.
Como se não bastasse, algumas palavras são traduzidas como se se tratasse da língua do planeta Marte, esquecendo que a França é, do mundo todo, o país que mais dispõe de departamentos de estudos luso-brasileiros, 33 ao todo. Embora a caligrafia do antropólogo seja nítida e os manuscritos se encontrem em bom estado, o endereço, à rua Cincinato Braga, é transcrito como "Luicinato Boraga".
O nome de um intelectual brasileiro bem conhecido como Sérgio Milliet torna-se Serge Miller. E a Rádio Patrulha vem a ser Radio Pakulka.
Como se vê, a malícia dos deuses continua a conspirar para envenenar esses laços.

Walnice Nogueira Galvão é professora de teoria literária na USP, autora de "Guimarães Rosa" (Publifolha).

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2311200810.htm

FSP, 23/11/2008, Mais, p. 7

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