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21 de Set de 2024
Trecho do Solimões vira deserto pela 2ª vez, e sequência de secas extremas míngua pesca de comunidade
Onisson Gonçalves, indígena kokama fotografado pela Folha caminhando em bancos de areia em 2023, vendeu equipamentos de pesca e vê mesmo cenário em 2024: 'A gente está isolado'
Vinicius Sassine e Lalo de Almeida
21/09/2024
Os moradores da Terra Indígena Porto Praia de Baixo, na região de Tefé (AM), dizem que Onisson Gonçalves, 32, é um homem que "tem a sorte".
O indígena kokama, pai de três crianças, é descrito na comunidade como um dos melhores pescadores de peixes lisos no rio Solimões -que banha a frente de Porto Praia- e nos lagos conectados ao rio. É assim que são chamadas espécies sem escamas, como surubim, caparari e dourada.
Pescava muito, o dia inteiro, sozinho. Técnica, a do arrastão, e sorte garantiam fartura no ofício de Onisson.
Essa sorte só foi possível de se manifestar até 2022. Nas secas extremas de 2023 e 2024, o destino das mais de cem famílias do território foi radicalmente alterado. O trecho do Solimões em frente a Porto Praia virou deserto outra vez.
A Folha registrou essa realidade em 13 de outubro de 2023, quando esteve na comunidade. A reportagem voltou a Porto Praia, na última quarta-feira (18), e constatou a mesma paisagem e os mesmos efeitos da seca que paralisa o território.
Indígenas dizem que a crise em 2024 é ainda mais severa, por ter sido antecipada em um mês e por obrigar a ancoragem dos barcos pequenos a uma distância ainda maior do portinho da aldeia -3 km, ante 2 km no ano passado.
O desaparecimento do rio significou o fim da atividade extensiva de pesca dos chamados peixes lisos. Poucos se dispõem ou têm recursos para contornar as ilhas do outro lado dos bancos de areia que se formam, e seguir em jornadas até lagos, poços e trechos de rio com alguma fartura de peixes.
O dinheiro com a venda desses peixes permitia uma subsistência confortável até o fim do ano. Famílias conseguiam ganhar até R$ 6.000 com a atividade, o que garantia o pagamento das despesas até o início da cheia.
Com o desaparecimento do rio, indígenas kokamas, tikunas e mayorunas venderam o material de pesca. Onisson foi um deles.
"Vendi meu material de arrastão no ano passado", diz ele, que insiste na pesca do peixe liso, até o canal por trás das ilhas. Agora, ele usa um material emprestado. "Acho que vai dar para pescar bem."
No dia em que esteve em Porto Praia, em outubro de 2023, a Folha registrou numa imagem o retorno de Onisson à sua casa, após pesca em um lago do outro lado dos bancos de areia.
Feita por meio de um drone, a foto capta as pegadas do pescador na areia, numa imagem que remete a um deserto, embora tenha sido feita num dos principais rios da amazônia, a maior floresta tropical do mundo, um bioma marcadamente úmido e chuvoso. Onisson carregava um cesto nas costas -chamado de paneiro-, com peixes até a metade do recipiente.
A foto, que simbolizou o tamanho da crise climática em curso e os efeitos para comunidades tradicionais que vivem na amazônia, foi vencedora regional (América do Sul) da categoria "foto única" do World Press Photo, a mais prestigiosa premiação de fotojornalismo do mundo.
Em Porto Praia, as consequências da seca extrema são evidentes. A realidade de 2023 em diante não se compara a anos anteriores, diz a comunidade. O modo de vida foi fortemente impactado com o desaparecimento do rio, que desnorteia as famílias e alarga as distâncias a serem percorridas por estradas e pela lama.
Um ciclo de seca extrema se seguiu a outro, sem respiro, e com antecedência. Isso impactou diretamente a reprodução dos peixes e a movimentação de espécies entre lagos e rio, o que tornou tudo mais difícil.
"Antes a gente saía bem [durante o período da seca], não carecia arrastar a canoa. De 2023 para cá complicou, este ano ainda mais, na parte mais acima", afirma Onisson. "Os dois lados do rio estão fechados [com tráfego impedido pelo nível baixo]."
A paisagem de seca, com formação de bancos de areia em trechos do rio Solimões, existe em todos os anos, dentro da alternância entre estiagem e cheia, os ciclos característicos da amazônia. O que mudou foi o caráter extremo, com estiagens mais longas, menos poços e menos água para navegação. Para quem vive no pulso de um rio, as consequências são dramáticas.
"Quando o rio enche, tem mais peixe. Agora, os peixes não estão 'arribando' mais porque seca rápido. Os peixes não conseguem sair do lago para a desova", diz Onisson.
Na quarta-feira, quando a reportagem esteve em Porto Praia, Onisson acordou cedo para ir a Tefé para comprar gelo, que garante a conservação dos peixes que buscaria no dia seguinte.
Uma ida à cidade, na cheia, leva pouco mais de 30 minutos. Com a seca extrema, é preciso arrastar a canoa até um ponto com mais água. Foram horas na ida e na volta para garantir a compra do gelo. "A gente está isolado", diz.
As famílias insistem na pesca, em cursos d'água ainda alcançáveis, e tentam compensar a perda de renda com o artesanato, especialmente com o tipiti. Essa estrutura cilíndrica feita com cipó ou palmeira é usada na secagem da massa de mandioca. Também há roças de banana e mandioca, e boa parte dos moradores recebe o Bolsa Família.
A seca costuma ser aliviada por repiquetes, que são movimentos momentâneos de cheia, até a recuperação definitiva dos rios. No ano passado, segundo moradores de Porto Praia, houve três repiquetes. Neste ano, ainda não houve nenhum, afirmam.
As comunidades no médio rio Solimões ficam de olho no que ocorre em Tabatinga (AM), no alto Solimões. Quando o rio começa a subir naquela região, o movimento se propaga para o médio Solimões cerca de um mês depois, segundo moradores habituados a esses ciclos.
Dados compilados pela Defesa Civil do Amazonas mostram que o rio seguiu em processo de vazante na última semana, numa média de 5 cm por dia. Isso indica que a estiagem prosseguiu nos últimos dias. O Solimões, na região de Tabatinga, atingiu o menor nível já registrado.
Onisson teme pelo futuro da Terra Indígena Porto Praia de Baixo, um território ainda sem demarcação. "Eu digo para os meus filhos para estudarem, senão vão passar por isso que eu passo", diz. "Isso aqui está com a praia muito alta, não dá para contar com o acesso para pescar. E vai ficar tudo mais difícil."
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