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Quem financia mal paga duas vezes

FSP, Tendências e Debates, p. A3
Autor: LIMA, André; RAMOS, Adriana
17 de Abr de 2006

Quem financia mal paga duas vezes

André Lima e Adriana Ramos

A crise por que vem passando parte dos agricultores brasileiros nos últimos dois anos, deflagrada por circunstâncias como a queda nos preços das commodities agrícolas, câmbio desfavorável, aumento no preço de insumos, gripe aviária e ferrugem asiática, põe em foco um debate caro entre ambientalistas e ruralistas quanto à correlação entre o agronegócio e o comprometimento dos ecossistemas naturais brasileiros.

O Brasil, país do agrobusiness, da pujança agrícola, da soja, da carne, do café, da laranja, do etanol, mas também e muito antes disso o país das águas, da diversidade cultural e da megabiodiversidade, vem perdendo, principalmente na última década, milhões de hectares de florestas tropicais e cerrados.

Entre 2000 e 2005, somente em Mato Grosso, o desmatamento de florestas amazônicas foi superior a 6 milhões de hectares. A Companhia Nacional de Abastecimento informa que, no mesmo período, a área plantada em Mato Grosso passou de 4,4 milhões de hectares para 8,5 milhões.

O crescimento da área de cultivo agrícola sobre áreas de florestas está obviamente relacionado com o aumento da emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o Brasil emitiu, em média, no mesmo período, aproximadamente 300 milhões de toneladas/ano de carbono na atmosfera. Estamos entre os sete maiores poluidores do planeta, ao lado de EUA, China, Rússia, Japão, Índia e Alemanha. Mais de dois terços das emissões brasileiras são oriundas de desmatamento e queimadas florestais.

É sabido e reconhecido por muitos que a expansão do agronegócio brasileiro não se deu somente pelo empreendedorismo do setor rural, tampouco pela capenga e malplanejada infra-estrutura instalada no país. O fenômeno ocorreu, em boa medida, pela correlação entre conjuntura de mercado internacional ineditamente favorável nos últimos cinco anos (até 2004) e pelos atributos naturais do Brasil. Água em abundância em regiões com clima, em regra, favorável, terras aráveis, férteis, agricultáveis e, supostamente, infindáveis. Depois de 505 anos, estamos ainda consolidando a ocupação de parte do sertão, batizado de arco do desmatamento.

Mas se a floresta amazônica é considerada pela Constituição Federal patrimônio nacional, ou seja, bem indisponível do povo brasileiro e bem de uso comum de todos os habitantes deste país (nos exatos termos do artigo 1o da lei 4.771/ 65, o Código Florestal); se sua preservação, ao lado do uso "racional" dos recursos naturais "disponíveis", é elemento fundamental da chamada função social da propriedade rural (artigo 186 da Constituição), nós, brasileiros e brasileiras, inclusive futuras gerações, já pagamos uma contribuição social substancial ao agrobusiness, ainda que muito a contragosto.

Parte considerável das nossas florestas tropicais e cerrados já virou mesa, cadeira, fumaça, capim, iogurte ou genes em cápsulas cosméticas ou fármacos mundo afora. 93% da Mata Atlântica desapareceu, quase 20% da floresta amazônica, idem, e mais de 50% do nosso cerrado foi coberto pelo sacrossanto manto da soja ou congênere.

Para além da farta "contribuição" socioambiental compulsoriamente doada pelos brasileiros ao agrobusiness ultra-nacional, somos chamados a pagar, mais uma vez, uma salgada conta (R$ 16,9 bi, de acordo com esta Folha, dia 7 de abril). Pagamento em forma de rolagem de dívidas, isenções, anistias, descontos e quejandos. Consolida-se no Brasil o "capitalismo pero-no-mucho". Reduzam-se os tributos, reduza-se o Estado, mas, na (pré)anunciada crise, salve-me o Estado!

Não seria responsável por parte dos nossos governantes exigir dos candidatos às benesses do novo pacote de salvação provisória dos agricultores um compromisso explícito e efetivo com nossos ecossistemas naturais, nossa biodiversidade, nossa água, nosso clima? Não contribuímos o suficiente para um modelo que tem se demonstrado predatório de recursos naturais e serviços ambientais?

Talvez não baste, e, certamente, não resolverá todas as mazelas do meio rural brasileiro, mas ajudaria muito se o pacote da anestesia geral das dívidas rurais lastreado no sofrido tributo cobrado de cada cidadão sério desse país viesse acompanhado de medidas efetivas para promover o agronegócio sustentável. Crédito, seguro, preços mínimos, apoio logístico, técnico e tecnológico (e por que não isenções fiscais "substancialmente" diferenciados em escala compatível com a importância do setor?) deveriam ser garantidos ao produtor rural regular com suas responsabilidades socioambientais.

A continuar assim, será melhor rasgar os capítulos de ambiente e da ordem econômica da Constituição Federal e esquecer essa conversa de função social da propriedade da terra.

André Lima, 34, advogado, é coordenador de Florestas e Biodiversidade do ISA (Instituto Socioambiental) e representante nacional das ONGs no Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente).

Adriana Ramos, 38, jornalista, é coordenadora de Política e Direito Socioambiental do ISA e representante nacional das ONGs no Conama.

FSP, 17/04/2006, Tendências e Debates, p. A3

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