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Os sobreviventes

FSP, Mais, p.9
Autor: LOPES, Reinaldo José
09 de Out de 2005

Os sobreviventes
Crânios de índios extintos do Brasil Central indicam elo com primeiros povoadores da América

Reprodução

Imagem de um botocudo desenhada por membros da expedição do príncipe Maximilian von Wied-Neuwied (1815-1817) pelo Brasil

Reinaldo José Lopes
Há tempos os defensores de uma das principais teorias sobre a chegada do homem à América tinham de conviver com uma lacuna incômoda. A idéia de que uma população biologicamente diferente dos índios atuais foi a primeira a colonizar o continente é apoiada pelo formato de crânios com milhares de anos, mas parecia haver poucos traços desse povo antigo nos nativos modernos. Para todos os efeitos, era como se fossem uma gente-fantasma.
Contudo, uma nova análise dos crânios de diversas tribos brasileiras sugere que os paleoíndios, como são chamados, estiveram por aqui até o século 19- e talvez ainda tenham representantes vivos no interior do país. Segundo pesquisadores da USP, tudo indica que os representantes mais típicos da raça dos primeiros americanos eram os chamados botocudos, índios que deram um trabalho danado a tupis e portugueses durante séculos.
A tese faz parte do trabalho de mestrado do biólogo João Paulo Atui, do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP. Atui acaba de defender sua dissertação, orientada pelo bioantropólogo Walter Neves, um dos criadores da idéia de que dois grandes "povos" biologicamente distintos chegaram ao continente americano antes dos europeus. Quando os dados obtidos por Atui são casados com os de outros nativos que desapareceram no século 16, na região mexicana da Baixa Califórnia, começa a parecer que os índios modernos (que supostamente pertencem só à segunda "raça", chamada de mongolóide) não eram tão homogêneos assim.
Outra cabeça
"O quadro hoje indica claramente a existência de duas morfologias distintas também entre os índios brasileiros recentes", resume Atui. Antes de mais nada, porém, é bom definir que morfologias são essas.
Em linhas gerais, quando são comparados paleoíndios e indígenas americanos modernos, parece haver uma dicotomia entre crânio alongado com face projetada (ou prognata, como os antropólogos gostam de dizer) e crânio achatado com face curta (ou ortognata), respectivamente.
É por isso que, de forma um tanto simplificada, as feições dos índios modernos são comparadas às dos nativos do nordeste da Ásia de hoje (como siberianos e mongóis) e ganham o apelido de mongolóide. Já as dos paleoíndios lembram mais as de africanos e nativos australianos e melanésios. Isso explica porque "Luzia", a mulher mineira de quase 12 mil anos de idade que se tornou o símbolo desse povo, costuma ser representada como negra, embora ninguém possa ter certeza sobre a cor de sua pele em vida.
Em seu trabalho, Atui se pôs a verificar justamente se a separação era mesmo tão rígida. "A idéia era testar a homogeneidade dos índios brasileiros recentes e a continuidade biológica entre eles e os paleoíndios", afirmou o biólogo, na defesa de sua dissertação na USP.
Para isso, era preciso uma amostra de crânios que correspondesse à diversidade de povos indígenas que o Brasil abriga ou abrigou, e o pesquisador foi buscá-la em coleções de museus do Rio de Janeiro, Paraná e da própria USP. No total, são 97 crânios, pertencentes a 12 etnias, vindas do Brasil Central (como os botocudos), da Amazônia (tupis e aruaques, entre outros) e da região Sul (como os caingangues).
As tribos recentes foram comparadas com mais de 80 crânios de paleoíndios brasileiros e com representante de povos do leste da Ásia (japoneses e chineses), índios do Peru e da América do Norte e nativos da Austrália e da Melanésia. Esses grupos representam, grosso modo, as duas morfologias diferentes. A comparação craniana exige uma precisão estatística de entortar os olhos. É preciso comparar dezenas de medidas padronizadas de pontos do crânio, que caracterizam matematicamente as feições estudadas.
A cara do ancestral
Vários tipos diferentes de medida apontaram para o mesmo resultado: os botocudos se agrupam claramente com os paleoíndios quando se trata de feições cranianas, enquanto os tupis do norte do Brasil se aproximam bem mais dos mongolóides "típicos". Em relação às outras etnias, a coisa fica menos clara, em parte porque, como adverte Atui, a amostra às vezes é pequena demais, com um ou dois crânios por sexo. No entanto, parece que outras tribos do grupo lingüístico macro-jê (ao qual os botocudos pertenciam) seguem o padrão morfológico deles.
Seja como for, "os botocudos são, para todos os efeitos, paleoíndios", disse categoricamente Walter Neves após a apresentação de Atui. Na verdade, o trabalho corrige uma injustiça antiga, já que antropólogos do século 19 já apontavam (com técnicas bem menos confiáveis) a semelhança entre paleoíndios e botocudos, mas foram desacreditados depois.
Para Sandro Bonatto, geneticista da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) que participou da banca responsável por avaliar o trabalho de Atui, "o trabalho começa a preencher uma lacuna importante. Precisamos de mais dados sobre essas populações recentes", diz ele. Bonatto é um dos principais pesquisadores a usar o DNA dos índios atuais para tentar reconstruir o povoamento da América.
Por enquanto, essa busca não revelou genes significativamente distintos entre os povos atuais que pudessem ser atribuídos aos paleoíndios. Bonatto expressou dúvidas sobre uma possível miscigenação entre os índios brasileiros recentes e europeus -o que poderia bagunçar as medidas cranianas- e questionou também o fato de que as amostras paleoíndias só incluem gente da região de Lagoa Santa (MG). "O quanto ela representa a diversidade dos paleoíndios?", perguntou. Nesse caso, infelizmente, parece não haver muito o que fazer, porque a imensa maioria dos crânios de paleoíndios vêm mesmo de Minas.
Para Rui Murrieta, antropólogo da USP, o trabalho de Atui levanta outras questões interessantes sobre os índios brasileiros. Segundo ele, os botocudos (hoje extintos), que viviam no interior de Minas, Bahia e Espírito Santo, disputavam ricas zonas de transição entre a mata atlântica e o cerrado com as tribos tupis e os portugueses. "Os botocudos estavam no meio do tiroteio. E é por isso que eles são um grupinho desgraçado de estudar: ficavam para cima e para baixo o tempo todo", diz ele.
Será que a velha dicotomia entre tupi e tapuia ("bárbaro", termo usado por tupis e portugueses para se referir aos jês e outras tribos que não falavam tupi) refletia, na verdade, uma inimizade de mais de 10 mil anos? É cedo para dizer, mas a possibilidade é, no mínimo, intrigante. Além do mais, os nambiquaras -tribo não-jê de Mato Grosso- parecem ter fortes traços paleoíndios. O povo de Luzia, afinal, talvez não esteja extinto.

FSP, 09/10/2005, Mais, p. 9

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