VOLTAR

O projeto da Lei de Biossegurança tira a autonomia da CTNBio?

FSP, Opiniao, p. A3
Autor: REINACH, Fernando; SARNEY FILHO, José
13 de Dez de 2003

O projeto da Lei de Biossegurança tira a autonomia da CTNBio?

Sim
Sobre segurança e responsabilidade

Fernando Reinach

Pela legislação atual, a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) é composta em sua maioria por cientistas. A missão da CTNBio é produzir pareceres conclusivos sobre a segurança de produtos e atividades relacionados à biotecnologia.
O projeto de lei em tramitação no Congresso prevê a inclusão na CTNBio de um número maior de representantes da sociedade civil, organizações sociais e ONGs. Os cientistas e técnicos deixarão de ocupar a maioria dos assentos. Além disso, o projeto de lei altera a natureza jurídica dos pareceres, que deixarão de ser conclusivos. Assim, a CTNBio passará a ser um órgão consultivo, cabendo a decisão final sobre a segurança das atividades relacionadas à biotecnologia aos diversos ministérios.
Essas alterações podem levar a uma politização do processo de análise de risco e, consequentemente, a uma diminuição dos níveis de segurança dos produtos derivados da biotecnologia.
Atualmente é praticamente impossível que toda a população compreenda e avalie os riscos e os benefícios de cada novo produto ou tecnologia. Todos nós utilizamos produtos cujo funcionamento desconhecemos. Poucos sabem os detalhes do funcionamento e os riscos de um forno de microondas, por exemplo. Microondas podem ser letais para o ser humano e nem por isso deixamos de nos beneficiar de sua tecnologia.
Todo produto tem associado a si um risco. Pior, o risco pode ser estimado, mas nunca é totalmente conhecido. É necessário avaliar os riscos de cada tecnologia constantemente. Para garantir que os riscos de cada produto sejam identificados e quantificados de maneira confiável, foram criadas as comissões técnicas de segurança. Elas operam em diversos órgãos e analisam os produtos criados com o uso de diferentes tecnologias. Em geral, são compostas por especialistas que são responsabilizados legalmente por seus pareceres. É um trabalho de grande responsabilidade. Foram comissões dessa natureza que determinaram que fornos de microondas são seguros desde que incluam um mecanismo que interrompa a emissão das microondas com a porta aberta. Foram comissões desse tipo que consideraram seguro comprar aspirina sem receita.
A experiência mundial mostra que as comissões técnicas de segurança são o melhor mecanismo para avaliar o balanço apropriado entre os risco e as vantagens de cada novo produto. Elas não são infalíveis e muitos erros já foram cometidos. Talvez o mais famoso seja a liberação da talidomida, que diminui o enjôo durante a gravidez, mas resulta no nascimento de crianças deformadas.
Na maioria dos países, os pareceres dessas comissões são conclusivos somente no que se refere à segurança. Quando uma comissão de segurança atesta que um produto ou procedimento é seguro, isso não implica que ele deva ser liberado ou utilizado. Existem produtos considerados seguros que não são liberados por razões éticas, morais, políticas, estratégicas ou até econômicas. Esses aspectos, por não serem exclusivamente técnicos, normalmente ficam fora do escopo de atuação das comissões técnicas de segurança e são decididos nas esferas políticas.
No processo decisório é extremamente importante separar a avaliação de risco de um dado produto da decisão política e estratégica da adoção desse produto. Quando essas duas instâncias são separadas, a avaliação do risco é de melhor qualidade, pois é regida estritamente por critérios técnicos. Vejamos o caso da soja geneticamente modificada. A CTNBio considerou-a segura. Cabe ao Ministério da Agricultura e ao governo federal decidir se é estrategicamente interessante liberar o plantio dela em território nacional ou não.
Outra característica importante na operação das comissões técnicas é a exigência de que elas se envolvam na regulamentação das atividades tecnológicas e científicas desde o início do desenvolvimento dos produtos. Isso permite que suas decisões sejam mais confiáveis.
Ao retirar dos cientistas a maioria dos assentos na CTNBio, o novo projeto de lei desfigura totalmente a comissão, tirando seu caráter técnico, transformando-a em um órgão político. Acredito que a presença de representantes dos diversos setores da sociedade é bem-vinda e necessária para o bom funcionamento de uma comissão técnica como é a CTNBio. Os representantes de ministérios e da sociedade civil trazem para o âmbito da comissão as preocupações dos diversos órgãos do Poder Executivo e da sociedade. Entretanto acredito ser discutível se deveriam ter direito a voto, pois, se o tiverem, passarão a ser legalmente responsáveis pelos pareceres técnicos da comissão.
Finalmente, o projeto de lei destrói totalmente a confiabilidade do sistema de segurança ao retirar o caráter conclusivo dos pareceres da CTNBio. Se implantado, esse novo mecanismo vai diluir entre vários órgãos e ministérios a responsabilidade pelas certificações de segurança. Nunca saberemos quem tomou ou como foi tomada uma decisão de liberação ou não de um produto. Isso torna impossível garantir a qualidade das decisões ou determinar a responsabilidade por eventuais erros. Esse é um risco grande demais para a sociedade.

Fernando Reinach, 47, doutor em biologia molecular, é professor titular do Instituto de Química da USP e diretor-executivo da Votorantim Ventures. Foi presidente da CTNBio em 1999.

O projeto da Lei de Biossegurança tira a autonomia da CTNBio?

Não
Não ao feudalismo na biossegurança

José Sarney Filho

Não. O projeto do governo dá à CTNBio o maior de todos os poderes: vetar, de forma irrecorrível, a pesquisa e comercialização de OGMs (organismos geneticamente modificados) no Brasil. Sem sua aprovação, nenhum órgão poderá autorizar a liberação de nenhum transgênico, mesmo que entenda incorreta a decisão denegatória.
A grande inovação da nova proposta do governo é harmonizar e definir melhor competências, imprimindo ao controle legal da biossegurança a tríplice marca do nosso sistema constitucional: dever de estrita proteção da saúde e meio ambiente, impossibilidade de delegação do licenciamento ambiental a órgãos alheios ao Sisnama e obediência ao princípio da precaução.
No Brasil a salvaguarda da biossegurança não se faz por favor, mas por exigência constitucional. O artigo 225, inciso V, da Constituição impõe ao poder público, de modo claro, o dever de "controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente". Logo, a questão da (in)competência da CTNBio deve passar, antes de tudo, pelo crivo constitucional. Vislumbrar um órgão com poderes absolutos, incompatíveis com a Constituição e com nossa prática administrativa de atribuições controladas e controláveis, é semear a insegurança jurídica e impedir o progresso do conhecimento científico. É um irresistível e prejudicial convite a intermináveis disputas judiciais.
Como se vê, a biossegurança é tratada no capítulo da Constituição que cuida especificamente do meio ambiente, fato que por si só já revela a preocupação ambiental do constituinte com os impactos dos OGMs e a necessária intervenção -independente e soberana- dos órgãos ambientais no licenciamento de atividades e produtos que, direta ou indiretamente, possam afetar a saúde das pessoas ou o equilíbrio ecológico.
Contudo competência para licenciar ambientalmente não significa exclusividade na apreciação de questões técnicas, prévias ao licenciamento. Assim, o projeto de lei, na linha da norma vigente, confere atribuições igualmente relevantes aos ministério da Agricultura e da Saúde e ao próprio governo.
A questão da biossegurança, além de técnica e constitucional, é política. Ninguém pode negar que há uma série de conveniências nacionais e globais a serem examinadas. É assim em todo o mundo, seja em países que (politicamente) optaram por afrouxar os mecanismos de proteção da saúde dos consumidores e do meio ambiente, seja na União Européia, que recentemente rejeitou a autorização para comercialização de uma modalidade de milho transgênico. Acertada, pois, a inovação do projeto de criação do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), vinculado à Presidência da República.
Questão técnica e política, mas também econômica. Não é por outra razão que os EUA, pressionados por suas empresas multinacionais, batem às portas da OMC, confundindo proteção da saúde e segurança dos consumidores e o cuidado com a natureza com barreiras não-tarifárias. Quem tem medo de um Brasil altamente competitivo e produtor mundial isolado de soja não-transgênica, com certificação internacional?
O projeto de lei, portanto, não altera em substância a sistemática vigente, respeitando a Constituição, ignorada por aqueles que pregam o enfraquecimento do licenciamento ambiental. Não retira da CTNBio nenhum poder, pois nunca foi desejo do legislador conferir-lhe exclusividade na apreciação dos riscos ambientais e sanitários à biossegurança. Muito menos poderes de licenciamento ambiental.
A CTNBio, sob pena de rasgarmos a Constituição, não pode ser transformada num superórgão, superior a tudo e a todos. Não queremos ressuscitar entre nós o feudalismo, agora sob a roupagem da regulação dos OGMs. O projeto, não obstante todos os seus avanços, pode e deve ser aperfeiçoado. Não vamos confundir, por exemplo, para fins de licenciamento, pesquisa com comercialização de OGMS.
O Partido Verde é a favor do avanço científico e tecnológico. Acreditamos que os esforços públicos, como aqueles levados a cabo pela Embrapa e universidades, fortalecerão a indústria e a competitividade nacionais. A ciência, numa palavra, não pode parar. Por isso festejamos a clareza do projeto do governo, que, ao estabelecer um sistema moderno e harmônico de tutela da biossegurança, certamente viabilizará e agilizará os procedimentos de análise dos OGMs.

José Sarney Filho, 46, advogado, é deputado federal pelo PV-MA. Foi ministro do Meio Ambiente (governo Fernando Henrique).

FSP, 13/12/2003, Tendências/Debates, p. A3

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.