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O caso dos pneus

FSP, Tendências / Debates, p. A3
Autor: KWEITEL, Juana
07 de Ago de 2006

O caso dos pneus

Juana Kweitel

O Brasil pode ser obrigado por uma decisão da OMC (Organização Mundial do Comercio) a recuar em algumas de suas políticas de proteção à saúde e ao meio ambiente. Entre os dias dia 5 e 7 de julho, ocorreram na sede da OMC, em Genebra, as audiências no chamado "caso dos pneus". A União Européia impugnou perante a OMC, entre outras medidas, a proibição de importação de pneus recauchutados imposta pelo Brasil.
Um painel já havia sido estabelecido, em 20 de janeiro de 2006, para examinar o caso.
O Brasil justifica a proibição da importação com base na proteção do meio ambiente e na proteção da saúde de sua população. Argumenta, ainda, que não existe forma realmente segura de eliminar os pneus usados (que não são biodegradáveis e, quando queimados, liberam substâncias altamente tóxicas). Ademais, os pneus usados acumulam água no seu interior, podendo causar a propagação do mosquito da dengue. Por fim, o pneu recauchutado não pode ser recauchutado novamente e se transforma, depois de um uso, em lixo.
Nesse contexto, é evidente a importância da decisão que será proferida pela OMC no caso; afinal, se o Brasil sofrer uma derrota, será obrigado a tolerar a importação de pneus recauchutados da União Européia e de outros países.
Em outras palavras, o que está em jogo nesse caso é quem deve se responsabilizar por seu próprio passivo ambiental. Exportando pneus recauchutados para o Sul, a União Européia se livra da responsabilidade de dar uma destinação final a um de seus produtos poluentes.
De acordo com o direito internacional dos direitos humanos, o Brasil tem a obrigação de tomar medidas concretas a fim de realizar o direito à saúde física e mental de sua população. Um fracasso na implementação dessas obrigações implicaria a responsabilização internacional do Estado brasileiro.
É importante, assim, que o painel da OMC não interprete as regras de comércio internacional de tal forma que coloque o país numa situação de violação do direito internacional dos direitos humanos. De fato, o artigo 20 do Acordo Geral de Comércio e Tarifas (Gatt) permite uma leitura positiva tanto do ponto de vista do direito internacional dos direitos humanos como do direito do comércio.
O que torna esse litígio ainda mais relevante é que, pela primeira vez na história da OMC, organizações brasileiras fizeram uma apresentação como amicus curiae ("amigo da corte") perante o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Amicus curiae é uma apresentação na qual uma instituição, que não é parte num caso, oferece informação sobre algum aspeto do direito para ajudar a decidir a questão.
Nesse caso, a coalizão de organizações, integrada por Associação de Combate aos Poluentes (ACPO/Brasil), Associação de Proteção ao Meio Ambiente de Cianorte (Apromac/ Brasil), Center for International Environmental Law (Ciel/Suíça), Centro de Derechos Humanos y Ambiente (CEDHA/Argentina), Conectas Direitos Humanos (Brasil), Justiça Global (Brasil) e o instituto O Direito por Um Planeta Verde (Brasil), apresentou ao painel argumentos de direitos humanos e do direito do meio ambiente favoráveis às medidas adotadas pelo Brasil.
Além disso, o caso tem algumas particularidades processuais. Excepcionalmente (ao contrário do que faz na maioria das vezes), a União Européia não divulgou publicamente o conteúdo de sua apresentação na OMC. Ainda, o Brasil, que, em geral, não divulga suas apresentações nos litígios na OMC, tornou público o seu documento.
A sociedade civil organizada fez ouvir fortemente sua voz em Genebra e no Brasil. Uma coalizão de mais de 80 organizações, entre elas Conectas Direitos Humanos, Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Fboms), Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (Rebrip), Greenpeace Brasil e WWF Brasil, divulgou uma declaração instando a União Européia a rever sua posição e retirar a demanda da OMC.
Esse caso será fundamental para que a OMC tome uma posição mais clara sobre a compatibilidade das obrigações comerciais dos Estados-membros e suas obrigações de proteção do meio ambiente e dos direitos humanos. Afinal, o sistema internacional do comércio não pode tentar subsistir isolado do resto do ordenamento jurídico internacional.

Juana Kweitel , 33, advogada com especialização em direito internacional dos diretos humanos (Universidade de Essex, Reino Unido), é coordenadora da Iniciativa Sul Global da Conectas Direitos Humanos.

FSP, 07/08/2006, Tendências / Debates, p. A3

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