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O canto do japiim

FSP, Mais, p. 9
Autor: LEITE, Marcelo
11 de Abr de 2010

O canto do japiim

Marcelo Leite

Quando a produção científica parece fazer sentido, em geral é pelas razões erradas

O fascínio com o japiim (Cacicus cela) surgiu à primeira vista. Não a visão do pássaro propriamente dito, de plumagem negra e amarela e canto potente, e sim de seu ninho em forma de saco, obra-prima de arquitetura e tecelagem.

Foi na Amazônia, durante um passeio de canoa num lago de igapó (floresta inundada) pegado ao rio Negro, não muito longe de Manaus. As casas pendiam da árvore carregada, como frutos de fibra pura e prenhe. Da boca superior de um deles emergiu a ave, que se pôs a gritar.

O bicho também ocorre nalgumas áreas de mata atlântica, onde costuma ser chamado de xexéu. Um parente mais negro e menos amarelo, mas igualmente construtor e gritador, pode ser admirado em terras paulistas: o japu (Psarocolius decumanus).

É impossível não notar japiins quando estão por perto. São os reis da algazarra. Num povoado do rio Tapajós, dependuraram os ninhos ao lado do poste com os alto-falantes da "rádio" comunitária. São famosos pela capacidade de imitar outros pássaros e até latidos de cães ou choro de criança.

Um belo ensaio de 1997 da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, incluído no livro "Cultura com Aspas" e intitulado "Xamanismo e Tradução", informa que o "tsirotsi" (para os achanincas) ou "txana" (para os caxinauás) é também um poderoso xamã.

Sua habilidade linguística torna esses pássaros aptos a transitar entre os planos incomunicáveis do mundo indígena. Mais ou menos como fazem os curadores para conjurar malefícios que alcançam a "gente verdadeira", seres humanos.

Japiins e xamãs, para Carneiro da Cunha, se equiparam a tradutores. Apesar da impossibilidade de equivalência entre os códigos, enfrentam as armadilhas da travessia e apostam na possibilidade de alguma harmonia: "a tentativa, sempre voltada ao fracasso, em qualquer escala que se a considere -e no entanto sempre recomeçada-, de construir sentido".

Não por acaso tais poderes se tornam mais requisitados quando modos tradicionais de organização se enfraquecem e desmoronam após o contato forçado com forças externas. Carneiro da Cunha fala do "extraordinário florescimento do xamanismo em situações de dominação colonial" -no México, entre os tupinambás, no rio Uaupés e na Amazônia Ocidental.

Algo assim estaria por trás do fascínio urbano com o místico, da Nova Era ao Santo Daime e do espiritismo ao pentecostalismo. Num mundo capaz de globalizar o mercado, mas não uma cultura (Carneiro da Cunha cita livremente Marshall Sahlins, autor de "História e Cultura -Apologias a Tucídides"), cresce e permanece fadada a frustrar-se a demanda por sentido.

Não menos desnorteante se mostra o enfraquecimento das humanidades (as "ciências humanas") diante da marcha imperialista das ciências naturais, biologia na vanguarda.

Estas produzem um dilúvio de artigos, estatísticas e descrições moleculares que faz pouco ou nenhum sentido para a maioria das pessoas. São fragmentos impotentes para engendrar uma cultura.

Quando a produção científica parece fazer algum sentido, em geral isso ocorre pelas razões erradas. Os divulgadores mais eficientes costumam fazer tábua rasa da complexidade, arroz com feijão da pesquisa contemporânea. Em vez de tradutores, comportam-se como traidores, fiéis ao dito italiano sobre o ofício temerário.

Os japiins não se encontram, felizmente, sob ameaça mais séria. Sob risco de extinção está apenas a capacidade de ser atraído por seu canto.

Marcelo Leite é autor de "Darwin" (série Folha Explica, Publifolha, 2009) e "Ciência - Use com Cuidado" (Editora da Unicamp, 2008). Blog: Ciência em Dia ( cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br )
E-mail: cienciaemdia.folha@uol.com.br

FSP, 11/04/2010, Mais, p. 9

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