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12 de Out de 2024
Garimpo na Guiana Francesa avança com mão de obra do Brasil e dinheiro da China
Facções atuam no pedaço francês da amazônia e desafiam autoridades locais, que querem maior colaboração com Brasília
Mayara Paixão
12/10/2024
Bigobal sabe que aquela é a terra da ilusão, mas não deixa de se iludir. Com 33 anos, quer "enricar" até os 40. Mas já são 14 anos entranhado no garimpo na porção da amazônia da Guiana Francesa sem resultado. "Tudo que ganhei se foi."
Ele é um em milhares de garimpeiros brasileiros que atuam de forma ilegal neste território francês na América do Sul. Há entre 5.000 e 8.000 deles no país, estimam as autoridades, e 90% seriam do Brasil.
Bigobal é uma espécie de síntese dessa realidade. É do seu estado natal, o Maranhão, que sai a maior parte dos garimpeiros que hoje atuam na Guiana Francesa. Foi seu pai quem o levou para ali garimpar. A mãe e os irmãos estão no vizinho Suriname, terra sem lei para essa atividade.
O garimpo também avança quase que sem freio no departamento francês, cuja população de 286 mil habitantes é majoritariamente negra, com muitos indígenas e forte influência de imigrantes do Brasil e do Caribe.
Há hoje 400 garimpos ilegais no território, sendo 150 deles no Parque Amazônico, área de proteção ambiental de 3,4 milhões de hectares, criada em 2007, cuja densa e embaraçada vegetação vista de cima só se separa para dar lugar ao desmatamento fruto dessa atividade.
Autoridades calculam que de 5 a 10 toneladas de ouro são extraídas por ano pelo setor ilegal (nos últimos quatro anos, foram 27 toneladas). E caminhar pelos centros de poder da capital Caiena ou pelas aldeias do país não transmite a expectativa de que essa realidade vá mudar.
Há uma década, a presença de comerciantes chineses cresceu nas porosas e pouco controladas fronteiras da Guiana Francesa, que a oeste se divide do Suriname pelo rio Maroni e a leste do Brasil pelo rio Oiapoque.
Muitos deles chegam ali para estabelecer seus mercados. O comércio vai além das latas de cerveja e dos ultraprocessados nas prateleiras de madeira. Eles vendem o mercúrio -usado no processo de separação do ouro e muitas vezes despejado nos rios- e os motores dos barcos. Outras vezes, fazem empréstimos aos garimpeiros e compram ouro.
Estão integrados à comunidade local, mas nem tanto. "Français?", arranha a reportagem para perguntar o preço em euros de uma garrafa de em uma das lojas à beira do Maroni. "No French", responde o dono em um ralo inglês, sinalizando um "2" com os dedos.
As autoridades já têm mapeada parte da rota que possibilita a extração ilegal do ouro. Daí a combater a prática, há um emaranhado de desafios que vão da dificuldade de ações de cooperação com seus vizinhos à repressão moderada das forças de segurança ao garimpo.
"Suspeitamos que os equipamentos pesados chegam pelo Suriname, vindos da China, de modo que podemos pensar que o Suriname se beneficia dessas atividades na Guiana Francesa", diz Gabriel Serville, autoridade máxima eleita da Guiana Francesa.
Sua relação com o presidente francês, Emmanuel Macron, é amarga. Serville integra o Partido Socialista da Guiana e já foi parlamentar em Paris. No centro do poder francês, tão apartado da realidade amazônica, apresentou extenso relatório sobre o garimpo ilegal.
Brasil e França assinaram em 2008 um acordo de cooperação para combate a essa atividade. Em março deste ano, por ocasião da visita de Macron à região, firmaram uma nova nota de intenção sobre o tema.
No entanto, nada parece ter saído do papel, expressam reservadamente interlocutores dos dois lados. Para um deles, o rescaldo político ainda não alcançou o nível tático. Serville é mais duro.
"Não vejo sinceridade nessa carta. E no fundo não estou convencido de que o presidente Macron queira mudar a realidade da Guiana. Se fosse a mesma situação na metrópole francesa, há muito tempo estaria resolvida", diz esse ex-professor de matemática nascido em Caiena.
Cerca de 350 militares franceses atuam constantemente na floresta por meio da operação Harpie, que mobiliza 70 milhões de euros (cerca de R$ 430 milhões) ao ano.
Mas são raras as prisões de envolvidos. Ainda que brasileiros sejam boa parte dos presos na Guiana Francesa (cerca de 250 entre uma população carcerária de 1.100), o que os leva à prisão não é o garimpo, explica à reportagem o procurador-geral do território, Joël Sollier. A maioria é presa por delitos ligados a violência, roubo e drogas.
Alguns garimpeiros, imigrantes sem documentos, são deportados. Mas facilmente retornam, como o maranhense Bigobal. Ele já foi deportado para o Oiapoque (AP).
No dia seguinte, voltou. No garimpo, já perdeu as contas de quantas vezes foi abordado por oficiais de segurança. Seguiu em liberdade. "'Tu de novo?', um deles já me perguntou", conta ele sorrindo.
As rebarbas dessa atividade são vistas a olho nu. A cinco minutos da francesa Maripasoula, à distância de um rio, a caixa de som toca a regravação de "Escrito nas Estrelas" de Tetê Espíndola, agora na voz da sertaneja Luana Prado. No restaurante, um self-service com comida do Brasil. Não se trata de território brasileiro, porém. É o Suriname.
A presença dos garimpeiros brasileiros se espraiou nessa porção da América do Sul. No Suriname, essa espécie de vila reúne hotéis, prostíbulos, salões de beleza e minimercados. É mais um dos pontos de abastecimento e descanso dos garimpeiros, que no escurecer do dia rumam para a floresta na Guiana Francesa para trabalhar.
Como se não bastassem os problemas frutos do garimpo ilegal, da contaminação dos rios à contaminação dos indígenas locais, há três anos há também a presença de facções do Brasil na amazônia francesa, como o PCC (Primeiro Comando da Capital).
"Há cada vez mais criminalidade, e os garimpos atraem facções armadas que muitas vezes colocam os garimpeiros em situação de escravidão", diz Xavier, chefe de investigação da gendarmaria francesa, que prefere omitir o sobrenome para se preservar das mesmas facções que tem ajudado a combater. "Por ano, temos 15 homicídios nos garimpos -isto é, aqueles de que ficamos sabendo."
A presença dos grupos fortemente armados tem ampliado a circulação de armas e de drogas na Guiana Francesa. No garimpo, o uso de entorpecentes é comum para manter o ritmo de trabalho pesado nos chamados "barrancos", onde juntos atuam em média sete garimpeiros por cerca de dez dias.
Ganha-pão para esses brasileiros, o garimpo ilegal também virou de cabeça para baixo a realidade dos indígenas. Mathias Barcarel, 26, parece ser um dos únicos que não moderam as palavras para expressar o incômodo causado pelos brasileiros. Ele é o cacique dos tekos, um dos povos indígenas da Guiana Francesa, que vivem nos arredores da cidade de Camopi, na fronteira com o Brasil.
"Acho que isso nunca vai parar. São tantos brasileiros que vêm para destruir a nossa natureza, os nossos rios", diz o jovem líder que está há menos de um ano nessa posição. Há mágoa em sua fala.
Barcarel foi eleito após a morte de Guy, seu pai, chefe indígena que também atuava nas forças de segurança no combate ao garimpo.
Em maio de 2023, durante uma operação contra garimpeiros no rio Oiapoque numa madrugada, ele morreu após bater em um tronco enquanto o barco estava em alta velocidade para alcançar garimpeiros. Seu corpo só foi encontrado três dias depois.
"Eles estão em toda parte. Trazem também drogas, roubam nossos barcos e motores. Todas as noites de 10 a 15 barcos passam aqui no rio rumo à floresta. Nos impedem de dormir. Nossas crianças vão para a escola com sono. Nós, indígenas, não podemos parar os brasileiros."
Como outros povos indígenas locais, os tekos tentam preservar suas tradições a duras penas. À presença do garimpo se somam o distanciamento dos jovens da aldeia, que cada vez menos querem cultivar a terra, a praga que ataca a mandioca e a seca, que nos últimos meses levou à perda da plantação.
Para comer, os indígenas têm aumentado a compra de alimentos no lado brasileiro da fronteira, em Vila Brasil e Ilha Bela, vilarejos que respiram a logística do garimpo e servem de retaguarda para os garimpeiros.
O primeiro, povoado há décadas, recebeu aval do governo do Brasil em 2011. Já o segundo segue como uma ocupação irregular no território do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, unidade de conservação brasileira vizinha ao francês Parque Amazônico.
"Na fronteira com o Brasil, o maior problema é Ilha Bela, que não existia quando o Parque Amazônico foi criado", afirma o diretor da unidade de conservação, Pascal Vardon. "Ilha Bela é uma espécie de atacadão dos brasileiros, ponto logístico do garimpo. Precisa ser eliminada."
Não há sinais de que o anseio de Vardon se tornará realidade, no entanto.
Autoridades locais ligadas ao combate ao garimpo afirmam que estão reorganizando uma estratégia para combater a prática ilegal com a promoção de garimpos legais, lógica que já se mostrou ineficaz.
"Essa estratégia já foi testada há dez anos e interrompida por falta de resultados", diz Laurent Kelle, chefe da ONG WWF no país. "Realizamos uma análise de mapeamento e os resultados são claros: entre 2013 e 2022, 50% das minas oficiais seguiam, em média, a menos de 4 km de um local ilegal. A única queda significativa na mineração ilegal ocorreu em 2016, ano de cooperação eficaz entre Brasil, Suriname e França."
Sob o manto da impunidade, o garimpo segue entranhado na floresta. A realidade das comunidades locais se altera, mas a dos garimpeiros do Brasil muda pouco. Na "terra de ilusão", como a descreve, Bigobal calcula por quanto tempo ainda terá fôlego.
O pai, que o levou para garimpar ali, morreu em fevereiro, após 40 anos no ofício, ao contrair raiva na mordida de um morcego. E as seis filhas de Bigobal, fruto de diferentes relacionamentos passageiros que teve com brasileiras que trabalhavam como prostitutas no garimpo, estão espalhadas entre o Suriname, a Guiana Francesa e o Brasil.
O que deseja para elas? "Falo para estudarem, buscarem um outro futuro. Essa realidade aqui não é nada fácil", diz ele, que se prepara para deixar a capital Caiena e partir para a floresta.
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