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Funai espionou missionários na ditadura

FSP, Brasil, p. A6
24 de Fev de 2009

Funai espionou missionários na ditadura
Liberados em janeiro para pesquisa, documentos de braço do SNI no órgão indigenista relatam 30 anos de vigilância
Militares acreditavam que o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) pretendia "subverter" o controle da fundação sobre os índios

Do enviado a Brasília

Guardadas por mais de 30 anos numa sala da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Brasília, 92 caixas com documentos confidenciais produzidos por um braço do SNI (Serviço Nacional de Informações) no órgão foram finalmente liberadas a pesquisadores em meados de janeiro.
Os papéis demonstram a espionagem feita pelos órgãos de segurança sobre o grupo de padres e bispos que, em abril de 1972, sob o governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), fundou o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ligado à Igreja Católica.
As centenas de telegramas, ofícios, relatórios de missão, análises e bilhetes manuscritos foram produzidas ou recebidas pela ASI (Assessoria de Segurança e Informações), que por duas décadas funcionou na Funai. A coordenação regional do Arquivo Nacional em Brasília, ligado à Casa Civil, recolheu os papéis em 2008.
O SNI montou uma extensa rede de espionagem na máquina estatal. Cada ministério contava com uma divisão de segurança e informações, enquanto fundações, autarquias, universidades e estatais tinham uma ASI. As unidades se relacionavam com a chefia central do SNI. O Arquivo Nacional já contou pelo menos 248 órgãos diferentes vinculados ao SNI. A Funai era um deles.

"Dossiê"
A partir de 1974, com o general Ernesto Geisel (1974-1979) na Presidência, a entrada e a atividade de missionários nas áreas indígenas foram monitoradas por uma rede de informações que começava no alto escalão da Funai, passava por delegados regionais dos órgãos e por capitães de postos indígenas e chegava aos índios, coagidos e interrogados sobre a presença dos padres, como indicam vários dos telegramas. Todos os documentos eram enviados à chefia da ASI em Brasília.
O "dossiê Cimi" compreende cerca de 2.000 páginas, incluindo cadernos de formação e textos produzidos pelo Cimi e que eram apreendidos pelos espiões tão logo distribuídos entre os índios.
Os militares acreditavam que o Cimi pregava o comunismo nas aldeias e queria "subverter" o controle do órgão sobre os índios. Os informes -alguns intitulados "atuação da esquerda clerical" ou "infiltração comunista e atuação de grupos religiosos"- serviram de base a inúmeras medidas da presidência da Funai contrárias aos missionários.
Na Funai, a figura relevante do período foi o controvertido general de Exército Ismarth de Araújo Oliveira, que presidiu a Funai entre 1974 e 1979 -o mais longevo da história do órgão. Hoje descrito por parte de antropólogos e indigenistas como defensor das causas indígenas, Ismarth aparece em telegramas e bilhetes ordenando vigilância, proibindo o acesso a terras indígenas e determinando medidas contra os padres.
Em 1978, Ismarth enviou carta confidencial ao general-de-brigada Francisco Batista Torres de Melo, comandante da Brigada Mista de Corumbá (MS), então responsável por uma extensa faixa territorial que ia de Goiás ao sul de Mato Grosso e na qual viviam populosas etnias indígenas acossadas por posseiros e colonos.
"A Funai está seriamente preocupada com o recrudescimento da atuação da ala esquerdista da igreja nas áreas indígenas de Mato Grosso, em particular nas que estão sob o controle das missões salesianas", escreveu Ismarth.
Citando os bispos Pedro Casaldáliga e Tomás Balduíno, cofundadores do Cimi, Ismarth escreveu que a intenção "dessa ala esquerdista da igreja [é] usar o índio como instrumento, criando agitação em áreas que estão tranquilas".
Ismarth sugeriu que fosse feita a "infiltração de um elemento da Brigada na área da Missão Salesiana de São Marcos [MT]. Para não despertar suspeitas, o mesmo portaria uma carteira funcional de servidor da Funai".
Dias depois, o general respondeu que concordava com a infiltração e encomendou a missão secreta a uma seção do Exército em Aragarças (GO).
Localizado pela Folha em Fortaleza (CE), o general-de-divisão reformado Torres de Melo, 84, disse não se lembrar desses papéis. "Eu me dava bem com a igreja. Não me lembro de nenhum problema na época." Entre 1974 e 1977, Melo comandou a Polícia Militar de São Paulo, na gestão do secretário de Segurança Pública Erasmo Dias.
Às vezes o general Ismarth usava seu poder de veto em simples retaliação às críticas públicas feitas pelos missionários contra o governo. Num bilhete de 1976, por exemplo, o general despachou no canto de um pedido de entrada de um padre a uma aldeia do Amazonas: "As críticas que o Cimi, por intermédio do padre Egydio [Schwade], vem fazendo ao governo e à Funai não permitem que o pedido seja atendido".
Em outro bilhete, respondeu a um funcionário que queria saber se a Funai fora chamada para uma reunião com o Cimi: "A Funai não foi comunicada e mesmo que tivesse [sido], não participaria de reunião do Cimi, face as características de que as mesmas se revestem de ataques ao governo".

Vigilância
Ismarth era sempre informado pela ASI sobre as ações do Cimi. Em resposta, disparava telegramas. Em março de 1978, orientou: "Esta presidência tomou conhecimento de que o padre [do Cimi] Dionísio Egon Heck dirigiu-se a esse Estado a fim de manter contatos com índios dessa região, seja para agitá-los, seja para participação [informá-los] sobre problemas no sul do país. Determinar a todos os PIs [postos indígenas] estreita vigilância, impedindo ingresso do mesmo a qualquer área. Em caso de recalcitrância, acionar autoridades".
As perseguições da Funai se estendiam aos índios que aceitavam conversar com os missionários. Em 1976, ao ser informado de que a cúpula do Cimi estava reunida em Rio Branco (AC), Ismarth datilografou carta confidencial ao chefe da ASI. "A reunião está tendo caráter sigiloso e, apesar da vigilância da Funai, o Cimi conseguiu arrebanhar dois índios do rio Purus (...). Os órgãos de segurança: Polícia Federal, SNI e do próprio Estado estão atentos. (....) Ao término da reunião, será tentado deter os índios e conseguir que os mesmos informem os assuntos tratados e a orientação dada pelo Cimi."
(Rubens Valente)

Coronel diz que Funai foi "folha negra na vida"

Do enviado a Brasília

Presidente da Funai entre 1981 e 1983, o coronel-aviador reformado Paulo Moreira Leal, 94, disse que sua passagem pelo órgão foi "uma folha negra na vida" e não quis fazer mais comentários. Ele foi procurado para falar sobre as funções da ASI, o braço do SNI (Serviço Nacional de Informações) no órgão indigenista. "Não queria voltar a esse assunto [Funai] porque o sr. sabe, magoou muito a gente. É a vida", disse o coronel.
Documentos da ASI mostram que a gestão de Leal reatou as relações com indigenistas críticos à ditadura e fez uma distensão com o Cimi, ligado à Igreja Católica. Em 1981, Leal voltou a autorizar a entrada de missionários em áreas indígenas.
Chefe do escritório do SNI em Manaus (AM) no final da década de 70, o coronel reformado do Exército Delcy Gorgot Doubrawa, 79, mandou ofícios à Funai, em 1979, para pedir informações à ASI da Funai sobre assembleia indígena no Amazonas. "Eu trabalhava em Manaus, que era o ponto central. E os comandantes dessas unidades de fronteira nos abasteciam com informações. Mas, no meu período, ali, não houve atritos." Doubrawa não se recordou do ofício. "Não me lembro, mas se o sr. está lendo, realmente o documento foi expedido. É que a Funai tinha mais contato, mais informações, e nós nos valíamos também dos dados da Funai, pois eram dados confiáveis."
O general-de-divisão reformado Francisco Batista Torres de Melo, 84, disse não se recordar do pedido feito pelo então presidente da Funai, general Ismarth de Araújo Oliveira, para que infiltrasse um militar entre os salesianos. Melo disse que a própria Igreja Católica "tomou providências" contra a parte do "clero à esquerda". "Você viu que a santa igreja foi em cima deles, "não pode ser assim". A santa doutrina da igreja está acima dos homens."

Alvos
O padre Antônio Iasi, 89, cofundador do Cimi, foi dos mais vigiados pela Funai nos anos 70. "De início, o Ismarth autorizou o trabalho do Cimi nas aldeias, mas quando percebeu que fazíamos relatórios para a imprensa, ele cortou completamente a autorização. Nós continuamos a fazer o trabalho clandestinamente, e a situação ficou tensa", relembrou Iasi. Os relatórios descreviam as más condições de saúde e alimentação nas aldeias.
O bispo dom Tomás Balduíno, 73, outro cofundador do Cimi, descrito em relatórios da Funai como "subversivo", ironizou a palavra. "De certa forma era verdade mesmo, nós fazíamos a subversão nas aldeias porque o índio começava a despertar para seus problemas. Quando o Cimi chegou, foi uma transformação radical. Eles [índios] começaram a buscar a recuperação de suas terras e de sua cultura", disse o bispo. (RV)

Sertanista pediu demissões em telegramas confidenciais

Do enviado a Brasília

Filho do sertanista Francisco Meirelles (1908-1973), referência no indigenismo, Apoena Meirelles (1949-2004) tornou-se também um inspirador das novas gerações de sertanistas. Nascido numa aldeia xavante, passou toda a vida adulta no trabalho indigenista. Em 2004, teve um fim trágico, ao ser baleado e morto numa suposta tentativa de assalto a um banco em Porto Velho (RO).
Antes de integrar o SPI (Serviço de Proteção ao Índio), o pai de Apoena foi filiado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro) e acabou preso em 1935 por envolvimento no levante comunista em Recife (PE). Apoena carregou do pai a imagem de "esquerdista" e teve atritos com os militares. Contava ter sido preso na passeata dos Cem Mil, no Rio, em 1968. Segundo seus ex-colegas na Funai, Apoena, que viria depois a presidir o órgão, foi demitido na gestão do coronel Paulo Moreira Leal (1981-1983).
O passado político de Apoena não impediu que ele ocupasse um cargo de confiança na Funai entre final dos anos 70 e início dos 80, o de delegado da 8ª Regional (RO e AC).
Os documentos da ASI (Assessoria de Segurança e Informações) da Funai, agora revelados, contudo, indicam que Apoena concordou diversas vezes com a ditadura em pelo menos dois pontos: detestavam o trabalho dos missionários religiosos em aldeias indígenas e os funcionários supostamente "insubordinados".
Num telegrama confidencial de junho de 1980, Apoena pediu à direção da Funai que demitisse sumariamente, por suposta "insubordinação", o antropólogo Terri Valle de Aquino, o sertanista José Carlos dos Reis Meirelles Júnior e o auxiliar artífice Antonio Luiz Batista de Macedo. Eles foram de fato demitidos dias depois.
Quase 30 anos depois, Aquino, que foi reconduzido à Funai na década de 90, só soube por um telefonema da Folha, há duas semanas, que seu superior havia pedido aos militares sua demissão. "Nunca discuti com Apoena. É uma completa surpresa para mim."
Aquino contou que na época da demissão estava ajudando os índios caxinauás a se organizarem e pedirem ao governo a demarcação de terras. "Eu não tinha problemas com Apoena, os índio que tinham."
Por telegramas, Apoena também pediu da Funai, em Brasília, que tomasse medidas enérgicas contra o Cimi e outras missões religiosas. Em 1980, despachou mensagem confidencial: "Encontrei índios revoltados com a ausência da Funai na região, completamente sob domínio do Cimi e de outras organizações religiosas".
Talvez o mais duro ataque de Apoena ao Cimi tenha sido o telegrama de 21 de março de 1982. Diz que os "elementos" do Cimi estimulavam "o ressurgimento de focos de tensão, causado pelo sectarismo e pela visão unilateral do problema do índio". Termina pedindo sinal verde para "vetar o ingresso do Cimi nas áreas indígenas".
O papel desempenhado por Apoena na Funai era de conhecimento dos indigenistas críticos do governo, conforme indica outro documento do acervo da ASI. O texto da peça de teatro "A Grilagem do Cabeça", que seria exibida no Amazonas e acabou censurada pela ditadura, trazia um personagem chamado Apoena, que, ao conversar com índios apurinãs, procura sempre defender a Funai. "Estou aqui enviado pelo presidente da Funai para resolver de uma vez por todas a situação", dizia o personagem. A ASI não gostou: "A peça é uma crítica sarcástica, falando sobre terra. (...) Fala do Apoena Meirelles. Percebe-se o veneno nas entrelinhas". (RV)

FSP, 24/02/2009, Brasil, p. A6

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