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Brasil: por um futuro mais seguro

FSP, Tendencias:Debates, p.A3
Autor: LEE, Susan
27 de Fev de 2005

Brasil: por um futuro mais seguro
Susan LeePoucos crimes foram mais vergonhosos do que o assassinato da irmã Dorothy Stang, de 73 anos. A morte a tiros dessa corajosa defensora dos direitos humanos e ardente ativista ambiental, ocorrida em 12 de fevereiro de 2005, vai assombrar o Estado do Pará e o Brasil inteiro por muitos anos.A vergonha não é exclusivamente dos responsáveis por apertar o gatilho, nem mesmo daqueles que já sabiam de antemão das ameaças que a irmã Dorothy enfrentava, mas não puderam ou não se dispuseram a combatê-las. Esse crime representa apenas a ponta de um iceberg grande e sangrento.Existe no Pará um longo histórico de assassinatos de defensores dos direitos humanos, ativistas que lutam pela terra e ambientalistas, numa lista que inclui João Canuto, morto em 1985, Expedito Ribeiro de Souza, em 1991, os 19 sem-terra de Eldorado do Carajás, em 1997, João Dutra da Costa, em 2000, e Daniel Soares da Costa Filho, encontrado morto apenas três dias depois de irmã Dorothy. Na verdade, a Comissão Pastoral da Terra cita 158 mortes desde 1994 relacionadas à disputa pela terra no Estado.Essas vidas perdidas são um testemunho da impunidade judicial e da discriminação social e econômica que há tanto tempo perpetuam a violência e o derramamento de sangue.Anos de grilagem de terras, exploração ilegal da madeira e garimpagem, além do uso persistente de mão-de-obra escrava ou de trabalhadores que não têm liberdade vêm dizimando a terra e o povo do Pará, mas não conseguiram dominar sua resistência.A violência que predomina no Estado do Pará e em tantos outros Estados brasileiros é fruto de décadas de exclusão social e de abandono pelo Estado. A segurança real e duradoura só poderá ser construída com base no princípio da indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos. A negação dos direitos econômicos e sociais, que conduz à pobreza extrema, está inextricavelmente ligada a violações dos direitos civis e políticos, tais como assassinatos, ameaças de morte e acesso desigual à Justiça. Para que possam surtir efeito, as políticas que visam tratar dessas questões devem adotar uma abordagem holística dos direitos humanos, que reconheça que o fim da carência extrema e do medo constituem aspectos inseparáveis da segurança humana.
A vergonha pela morte de irmã Dorothy deve ser compartilhada por muitos. Por aqueles que, quer sejam autoridades estaduais ou federais, vêm assistindo passivamente a anos de mortes e violência, sem fazer nada para mudar a cultura de impunidade que prevalece há tempo demais. Por aqueles que vêm sendo incapazes ou não se dispõem a pôr fim ao uso persistente de trabalhadores em regime de escravidão ou privação de liberdade. Por aqueles que não têm garantido os direitos sociais e econômicos de tantas pessoas socialmente excluídas, por meio da reforma agrária. Por aqueles que não têm assegurado a proteção ao meio ambiente, à moradia e aos meios de subsistência de milhares de indígenas e comunidades tradicionais, e por aqueles que se beneficiam economicamente de sua destruição.O assassinato de irmã Dorothy mais uma vez chamou a atenção do mundo para a situação do Pará. Tragicamente, foi preciso a morte de uma figura tão importante e simbólica, além das ondas de choque que ela espalhou pelo mundo, para fazer com que o governo federal tomasse uma atitude.Entre as medidas tomadas, a implementação do Programa Nacional de Proteção aos Direitos Humanos no Estado do Pará ficará como exemplo da determinação do governo em proteger aqueles que lutam pelos direitos humanos de todos; o envio de policiais federais, membros das Forças Armadas e integrantes do Ministério Público Federal para acompanhar as investigações vai assinalar o interesse em pôr fim à impunidade que alimentou a violência, e a promessa de criar duas grandes áreas de preservação ambiental no Pará vai funcionar como teste da disposição do governo em proteger o meio ambiente e a segurança das pessoas que nele vivem.Essas medidas são essenciais, mas não serão suficientes se as raízes das violações não forem atacadas efetivamente.A população brasileira já aprendeu a desconfiar de reações fortes, mas de curto prazo, às atrocidades periódicas. Portanto, é crucial que essas reações não caiam no esquecimento a partir do momento em que a atenção internacional diminuir. Essas promessas não podem permanecer no papel, como já aconteceu tantas vezes no passado.O governo deveria tomar medidas adicionais para garantir uma solução de longo prazo para o sofrimento da população paranaense, assegurando que o apoio federal para pôr fim à impunidade no Estado seja eficaz e sustentado, financiando e apoiando com eficácia as forças federais que combatem o trabalho escravo, a grilagem ilegal de terras e a invasão de reservas indígenas, garantindo a implementação das obrigações constitucionais e legislativas, desarmando as milícias armadas ilegais na região, assegurando a segurança social e econômica por meio de uma reforma agrária e de investimentos sociais eficazes e investigando a possível participação de madeireiras ou empresas agroindustriais na contribuição direta ou indireta para a escalada da violência e das violações dos direitos humanos, além de garantir a punição dos responsáveis.A morte de irmã Dorothy precisa servir de divisor de águas, para que o governo brasileiro ou garanta um futuro seguro e sustentável para toda a população do Pará ou então condene irmã Dorothy a fazer parte da longa lista de mártires que ainda esperam por justiça.

Susan Lee é a diretora do Programa Regional das Américas da Anistia Internacional.Tradução de Clara Allain

FSP, 27/02/2005, p.A3

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