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Sementes da concórdia

FSP, Mais, p. 4-6
Autor: LEITE, Marcelo
29 de Nov de 2009

Sementes da concórdia
Xingu vivo: em projeto pioneiro, índios, assentados e fazendeiros se envolvem no reflorestamento da área para garantir a sobrevivência do rio Xingu
Técnica usada no plantio de soja e na semeadura das pastagens se tornou decisiva para o sucesso do projeto de reflorestamento da vegetação ciliar do Médio Xingu

Marcelo Leite
Enviado especial ao Xingu (MT)

Aracá, um icpengue de idade avançada e indefinida, chega com expressão grave no rosto pintado de urucum à casa de Rosana Gasparin na aldeia Moigu, a uma centena de metros do rio Xingu. "Devagar, devagar", diz em português, após trocar poucas palavras em sua língua com a geógrafa. "Amanhã levar câmera onde trabalho, mato. Agora, dançando."
A sintaxe pode soar hesitante, mas não falta autoridade ao guerreiro, um dos poucos por ali nascidos antes de 1964, data da expedição de contato com os "txicões", como eram chamados. É uma ordem para que os repórteres da Folha se abstenham de fazer entrevistas e fotografar naquele dia de festas, 12 de outubro, uma segunda-feira.
Gasparin, desde 1996 trabalhando para o Instituto Socioambiental (ISA), oito anos como educadora no Parque Indígena do Xingu (PIX), recomenda obedecer.
Não custa esperar, depois de quatro dias de negociação para entrar no PIX. Um bom banho de rio contribui para diluir a frustração.
Só no dia seguinte, portanto, seria possível acompanhar o trabalho das mulheres icpengues na coleta de sementes para a campanha Y Ikatu Xingu.
O nome quer dizer "água boa e limpa do Xingu" em língua camaiurá, uma das 19 etnias presentes nos cerca de 500 mil km2 da bacia hidrográfica.
As sementes recolhidas pelas mulheres serão vendidas para agricultores recuperarem matas ciliares -vegetação que protege os rios como cílios protegem os olhos- destruídas a centenas de quilômetros dali.
Quando as florestas plantadas crescerem, talvez em duas décadas, ajudarão a proteger nascentes. Estas, por sua vez, manterão o Xingu fluindo, como sempre, a poucos metros das casas de troncos e palha de inajá da aldeia Moigu.
"Ikpeng", na grafia favorecida pelos antropólogos, significa "marimbondo" em língua icpengue. Uma gente que tem fama de brava e costumes enigmáticos para não índios.
Aracá é o nome atual de Melobô, que também já foi Maion -nomes que foi cedendo para os netos que iam nascendo, como manda a norma.
Antes de serem trazidos ao PIX pelos irmãos Villas Bôas, nos anos 1960, os icpengues tomavam de outras tribos uma criança para cada pessoa que morria na sua.
A prática quase provocou a extinção desse povo, porque a reação dos uaurás -etnia que tinha contato com brancos e armas de fogo- ao último sequestro se transformara numa guerra de extermínio.
No parque, a tradição foi abandonada em favor de uma política de boa vizinhança e matrimônios interétnicos. Em Moigu ainda vive a última vítima, Kamiru, uaurá casada com o icpengue Managü.

Uma semente, um centavo
Sentada no chão de uma das 12 casas da aldeia, já na manhã de terça, Kamiru corta o invólucro sedoso que forma as asas das sementes de carvoeiro -ou "alapá", na língua icpengue.
Do tamanho de uma lentilha, as sementes possuem asas para se alastrarem com o vento, mas precisam ser cortadas para que a germinação ocorra no tempo dos homens. Kamiru reclama que os dedos doem e as tesouras quebram.
Cálculo não confirmado sugere que são necessárias 17 mil sementes para inteirar um quilo. Pelo menos dez dias de trabalho, indica Kamiru, apontando para os dedos dos pés, como quem conta. Cada quilo é vendido à Y Ikatu Xingu por R$ 200, pouco mais de um centavo por semente limpa.
Com esse dinheiro, dá para comprar muitas tesouras, lanternas (o trabalho ocorre à noite), bacias, panelas, vestidos e chinelos de dedo.
Kamiru, no entanto, tem planos mais ambiciosos para a atividade que hoje envolve todas as mulheres da aldeia pegada ao posto Pavuru. Na tradução do agente de manejo indígena Furigá: "É importante receber dinheiro, mas com o que recebe quer comprar carro, caminhonete, trator".
Sua ideia parece bem popular entre as dezenas de mulheres que acompanhamos, à tarde, durante a coleta, literalmente no caminho da roça (o veículo ajudaria a trazer a carga na volta, em geral mandioca).
A cada pé de carvoeiro ou leiteiro, bastam poucos minutos para catar todas as sementes do chão. As mais jovens trepam nas árvores e derrubam mais sementes. Os icpengues são o grupo mais produtivo da rede de coleta montada pela campanha Y Ikatu Xingu.
O trato para o semestre era que colhessem 10 kg de alapá (carvoeiro) até o fim deste mês, o que devem cumprir com folga, informa Furigá -um dos três jovens que falam bem português e se encarregam de organizar os contatos com a rede.
O trabalho de coleta e limpeza das sementes é reservado às mulheres, embora outro jovem, Waygué, tenha recebido da Y Ikatu Xingu treinamento de rapel para alcançar as sementes de carvoeiro nos galhos mais altos. A demonstração de escalada, na véspera da partida dos repórteres, se transforma em um acontecimento.
Enquanto Waygué prepara as cordas e mosquetões, mulheres, homens e crianças se aproximam do pé de alapá escolhido, na entrada da aldeia. São 18h30, mas o calor ainda é forte. Muitos já trazem no ombro a toalha e a saboneteira na mão, para o segundo ou terceiro banho do dia no Xingu.

Água Boa, Água Limpa
A mais de 300 km dali, em linha reta, fica o município de Água Boa. É um dos quatro centros de atuação da campanha Y Ikatu Xingu no leste de Mato Grosso, com um orçamento anual de R$ 600 mil.
Os outros são Canarana, Querência e São José do Xingu, todos em região de expansão acelerada da soja e da pecuária. Cerca de 60 mil km2 da mata de transição entre cerrado e floresta amazônica já foram destruídos, ou 33% da cobertura da bacia.
Desses 60 mil km2, 2.300 km2 atingiram as matas ciliares que abrigam boa parte das 22.525 nascentes mapeadas, como as dos rios Sete de Setembro e Tanguro, na vizinhança de Água Boa, afluentes do Culuene, grande tributário do Xingu.
A 67 km da sede do município fica o Projeto de Assentamento Jaraguá, junto ao córrego Água Limpa. Só metade dos 400 lotes de 45 a 60 hectares delimitados pelo Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] estão de fato ocupados, o suficiente porém para dizimar a mata ao longo do riacho.
"Se a gente não tomar cuidado, em cinco anos vai faltar água no PA Jaraguá", preocupa-se Laércio Mariano da Cruz, um goiano que já presidiu o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Água Boa, há dez anos no assentamento.
"Sem água, nós vamos morrer queimados", afirma, enquanto caminha entre pés de pequi-do-xingu e de castanha baru, alguns com pelo menos três metros de altura, a poucos passos do córrego.
É uma das agroflorestas mais antigas plantadas com ajuda da campanha Y Ikatu Xingu (embora Cruz já tivesse plantado várias árvores anos antes), em 2006. As 350 sementes de pequi fornecidas pela então incipiente rede criada pelo Instituto Socioambiental foram plantadas de metro em metro, tentativamente, em consórcio com culturas tradicionais como milho e mandioca.
O assentado conta que capivaras e tatupebas acabaram com o milho e a mandioca, mas que os pequis plantados com sementes deram frutos um ano antes dos plantados com mudas. Antes, porém, foi preciso cercar a área na beira do rio com o arame também doado pelo ISA, de modo a impedir a entrada do gado. O trabalho envolveu 40 famílias, que hoje coletam sementes para a campanha Y Ikatu Xingu.
Depois do almoço para três dezenas de integrantes da comitiva da Y Ikatu Xingu, assentados começam a trazer sementes para pesar e vender. Laércio Cruz comparece com 8 kg de carvoeiro, 2,7 kg de jatobá, 1,6 kg de aroeira-goiana... Só de carvoeiro, R$ 1.600 de renda extra.
Não param de chegar sacas e saquinhos, até que o biólogo Eduardo Malta, coordenador da campanha, se vê obrigado a interromper o alarido anunciando que o combinado era comprar só as sementes de Cruz e na quantidade previamente acertada.

Sementes x mudas
Fica evidente para qualquer pessoa em visita à região que a coleta de sementes de espécies arbóreas nativas constitui excelente alternativa de vida, dado seu alto valor. A rede tenta organizar e disciplinar esse comércio, mas a alta demanda pode facilmente inflacionar os preços. Só no município de Canarana há 30 mil hectares (300 km2) de áreas de preservação permanente, como as matas ciliares, para recompor -embora só 86 hectares estejam de fato em recuperação em 2009.
A procura em alta decorre do sucesso que a técnica de recomposição em desenvolvimento pelo ISA e seus parceiros vem alcançando. Cerca de mil hectares já foram replantados pela campanha em projetos-piloto, que, no entanto, abrangem menos de uma centena das 15 mil propriedades rurais da bacia do Xingu.
Se a tecnologia vingar, é de se supor que a demanda por sementes explodirá. Em 560 hectares monitorados de perto pela campanha, já se verificou a presença vigorosa de 51 espécies arbóreas da região. Na base da técnica está o abandono do método tradicional de plantio com mudas. Dada a onipresença de capins tropicais agressivos de origem africana, como braquiária, as mudas acabam sufocadas.
Agrônomos e biólogos da campanha optaram então por fazer o plantio direto com sementes de várias espécies misturadas, a chamada "muvuca", combinando árvores nativas do cerrado e da mata de transição com plantas exóticas de crescimento rápido, como feijão-guandu e feijão-de-porco. A ideia é imitar o processo de sucessão florestal. As plantas que crescem primeiro, como os dois tipos de feijão, têm a função de dar a sombra que vai inibir o crescimento do capim e evitar a exposição excessiva das plântulas que brotarem das sementes de árvores.
Em alguns meses, o feijão morre e fornece adubo natural para o solo. Depois virão espécies arbustivas, ou árvores de pequeno porte, que fornecerão abrigo para aquelas de crescimento mais lento e porte maior, e assim por diante. Um dos segredos da experiência em curso no Xingu é utilizar as máquinas e técnicas normalmente empregadas pelos agricultores e pecuaristas para trabalhar a terra, como semeadoras e lançadoras de sementes. Plantam-se florestas como se planta soja e semeiam-se pastagens.
O outro segredo é lançar mão também de um "muvuca de gente", de índios a latifundiários, de assentados a ambientalistas, como diz a secretária de Agricultura e Meio Ambiente de Canarana, a agrônoma Eliane de Oliveira Felten: "Um, pondo o dedo na cara do outro, nunca ia conseguir nada".

Os repórteres Ayrton Vignola e Marcelo Leite viajaram pela bacia do Xingu com apoio logístico parcial (transporte e hospedagem) do Instituto Socioambiental e da Fazenda Bang Bang.

Parque é símbolo da política indigenista

O Parque Indígena do Xingu (PIX) tornou-se um símbolo de alcance internacional, ainda que ambíguo, da política indigenista brasileira.
Criada em 1961 com 2,6 milhões de hectares (26 mil km2, quase o tamanho de Alagoas), a gigantesca terra indígena abriga hoje pelo menos 15 etnias em convívio pacífico.
No passado, porém, alguns desses povos eram inimigos, como os icpengues, trazidos de fora do território do PIX, e os uaurás.
A internação na vizinhança de adversários tradicionais foi o preço pago pela oportunidade de sobrevivência. Quando chegaram ao parque, sobravam só 46 txicões, como eram chamados os icpengues, e couberam todos numa balsa. O rio Xingu, com seus 2.700 km entre Mato Grosso e o Pará, é o recurso comum, do qual todos dependem.
Começaram a acusar alterações sutis no rio, que afetavam peixes e o regime de cheias e secas, há coisa de uma década. Vários povos circulam pelas cidades da região, como Canarana e São José do Xingu, e passaram a notar a destruição de nascentes.
A preocupação foi levada a ONGs como o Instituto Socioambiental (ISA), que criaram em 2004 a campanha Y Ikatu Xingu.
Na outra ponta do Xingu, já fora do PIX e de Mato Grosso, o rio enfrenta outra ameaça, sob a óptica dos índios: a construção de Belo Monte, segunda maior hidrelétrica do país em capacidade nominal de geração.
Ela alagará 440 km2 da Grande Volta do Xingu e deve produzir até 11 mil megawatts, quase uma Itaipu (14 mil MW). (ML)

Os bons companheiros
Vindos de várias partes do país, todos lutam por uma meta comum no Médio Xingu

Luiz Carlos Nunes Castelo, grande pecuarista (São José do Xingu)
Luiz Castelo nasceu no Espírito Santo, é empresário da construção civil em São Paulo e mora em Santa Catarina. Uma ou duas vezes por mês, voa para São José do Xingu, para tomar pé dos 13.400 hectares e 10 mil bois da fazenda Bang Bang, "um lugar de paz". Castelo é também o maior plantador de florestas da Amazônia.
Em 2004, assinou um termo de ajuste de conduta (TAC) para recuperar 342 hectares de matas ciliares em dez anos.
Já começou em 206 hectares, mas demorou para acertar o modelo.
Antes, chegou a plantar 92 mil mudas de dez espécies, que não deram certo. Hoje planta sementes com lançadeira puxada por trator. Até março passado, seu investimento em recuperação já havia ultrapassado R$o371 mil.
Não vai desistir, mas se queixa da falta de apoio: "Precisamos de tempo, tecnologia e financiamento".

Armando Menin, catarinense, assentado (Querência)
De 1975 a 1987, Armando Menin plantava soja com a família em Xanxerê (SC). Em 1988, mudou-se para Querência em busca de terra própria, na qual plantou soja e depois arroz. Perdeu tudo em 1993: "Quebrei para salvar um filho", conta, sem dar mais detalhes.
Recomeçou a vida no Projeto de Assentamento Brasil Novo, a 130 km da cidade. O lote número 130, com 75 hectares, participa do reflorestamento de matas ciliares da Y Ikatu Xingu.
Dois hectares e meio de mata ciliar em recuperação foram até "alugados" para compensar (neutralizar) emissões de carbono do Rock in Rio Lisboa.
Com outros assentados, Menin produz por ano 8.500 litros de cachaça e 1.560 kg de açúcar mascavo, além de 800 kg mensais de farinha de mandioca e 5.000 kg de polpa de abacaxi, que vendem para a merenda escolar da Prefeitura de Querência.

Ayré Ikpeng, coletora de sementes (Parque Indígena do Xingu)
Uma palavra usada com frequência para qualificar a icpengue Ayré é "guerreira". Sua liderança entre as mulheres da aldeia Moigu é visível na reunião de apresentação dos repórteres da Folha na "casa dos homens ", modesto telheiro diante da casa cerimonial habitada pelo chefe Aracá. É a que mais fala, depois de Maiuá, professor, secretário da associação indígena e organizador do encontro.
Nessa mesma "casa dos homens", realizara-se dias antes a assembleia em que se decidiu, contra a inclinação inicial dos chefes masculinos, que seria importante mostrar o trabalho das mulheres à imprensa.
As palavras de Ayré foram decisivas, nos contam. Também foi da guerreira a ideia de chamar o grupo coletor de sementes de "yarang", formigas. Como as mulheres, elas recolhem muitas coisas pequenas do chão, que depois carregam na cabeça.

Arão Pinheiro, paranaense, coletor de sementes (Canarana)
Ex-policial, Arão Pinheiro chegou a Canarana vindo de Curitiba há 17 anos, com a intenção de criar os filhos "longe do vuco-vuco da cidade grande". Hoje afirma: "Vim pelo caminho certo".
Quando criança, Pinheiro trabalhou na lavoura de café. Queria envelhecer como agricultor. Aos 52 anos, considera-se um coletor profissional de sementes.
Associou-se com os cunhados Ivo Cesário da Silva e Sílvio Santos da Silva, ex-trabalhadores rurais no Paraguai e exímios no manejo do podão, para alcançar e derrubar os galhos mais altos.
A família toda se envolve com as sementes, seja com a coleta na mata vizinha à cidade, seja na limpeza -como os sogros Rosalinda dos Santos Silva e Darci Batista de Oliveira, de tesoura em punho na varanda da casinha cor de laranja.

FSP, 29/11/2009, Mais!, p. 4-6

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2911200906.htm
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2911200907.htm
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2911200908.htm

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