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Réplica: Não olhe para baixo

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/poder
Autor: MAISONNAVE, Fabiano
11 de Mar de 2022

Réplica: Não olhe para baixo
Mineração e hidrelétricas em terras indígenas são temas importantes demais para serem aprovados em regime de urgência no Congresso

11.mar.2022
Fabiano Maisonnave

Sob o pretexto de que a guerra na Ucrânia ameaça o suprimento de potássio ao agronegócio, o presidente Jair Bolsonaro (PL) pressiona o Congresso a aprovar, com urgência, a mineração e projetos hidrelétricos em terras indígenas. Essa pressa turva o debate sobre a liberação de atividades que ameaçam a existência de diversos povos amazônicos e a gestão soberana dos recursos naturais.
Os dados sobre a localização do potássio desmontam o argumento oficial e deveriam bastar para cessar o açodamento no Congresso. Levantamento do ISA (Instituto Socioambiental) mostra que apenas 1,6% dos requerimentos para extração de sais de potássio registrados na ANM (Agência Nacional de Mineração) está dentro de terras indígenas.
Indiferente a esses fatos, a Câmara votou, na noite de quarta-feira (9), a urgência da votação do projeto de lei 191, o que o isenta de passar por comissões. Ignorou também um ato convocado pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e por artistas que, horas antes, reuniu milhares de pessoas em Brasília contra o desmonte ambiental.
Foi nesse contexto que, na sexta-feira (11), a Folha publicou um artigo do colunista Leandro Narloch em que ele tenta demonstrar que há lideranças indígenas na Amazônia favoráveis à regulamentação. Para fazer isso, cede o espaço para que três deles expressassem a sua opinião sobre o tema.
Até aí, parece uma atitude correta, mas o problema está na legitimidade e na representatividade. No caso dos dois primeiros, trata-se de lideranças de Mato Grosso que têm como pauta a liberação de agricultura mecanizada, principalmente soja, em seus territórios. Nenhum deles tem de lidar com invasão de garimpeiros, tragédia em andamento para yanomamis, mundurukus e vários outros povos.
Ao longo do governo Bolsonaro, ambos vêm emprestando a sua imagem ao lado do presidente, que tem um histórico de declarações racistas contra indígenas. Em uma estratégica política, oferecem apoio a propostas rechaçadas pelo movimento indígena nacional, liderado pela Apib, em troca do avanço de suas agendas em Brasília.
Tem sido assim em lives presidenciais, mas não deveria ocorrer em uma coluna de jornal. Mal comparando, é como, no mundo não indígena, pedir a opinião de um líder sojicultor do Centro-Oeste sobre a exploração de ouro no Pará.
O terceiro é uma liderança cinta-larga, povo de Rondônia que há décadas vem sofrendo os impactos do garimpo ilegal de diamante, com forte desestruturação social. O cacique ouvido faz parte de um grupo de líderes que se beneficia pessoalmente da atividade ilegal. Alvo de diversos processos, ele já fez até delação premiada com confissão.
A pressa na Câmara para votar o projeto de lei já em abril contradiz o artigo 231 da Constituição, que prevê a regulamentação de mineração e de projetos hidrelétricos em terras indígenas, mas também deixa clara a obrigatoriedade da consulta aos povos afetados.
Além disso, o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), comprometendo-se a fazer consulta prévia e informada às comunidades impactadas, por meio de procedimentos adequados e instituições representativas.
Outro problema é que, se aprovada agora, a liberação da mineração ocorrerá sem que o Estado disponha de estrutura para licenciamento e fiscalização ambientais eficientes.
Neste momento, a liberação da mineração em terras indígenas só tende a aumentar os já graves problemas socioambientais, de desestruturação das comunidades à contaminação das águas por mercúrio e dejetos. Além disso, projetos hidrelétricos vizinhos a terras indígenas têm se provado devastadores para os povos próximos, como no caso recente da usina de Belo Monte (PA).
Não se trata apenas dos direitos dos povos originários, mas sobre como o Brasil administra seus recursos naturais. A água e a biodiversidade, ameaçadas pelo avanço descontrolado do setor primário, são ativos cada vez mais importantes no cenário global.
Enquanto o Brasil não encontrar o caminho para desatar esses nós, o melhor a fazer é deixar os rios em terras indígenas correrem desimpedidos e manter os minérios onde estão, embaixo da terra.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/03/replica-nao-olhe-para-baixo…

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