VOLTAR

Pesquisadores indígenas se voltam para vozes femininas e medicina da Amazônia

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/hermano-vianna/
Autor: VIANNA, Hermano
24 de Out de 2020

Pesquisadores indígenas se voltam para vozes femininas e medicina da Amazônia
Francy Baniwa analisa relações entre mulheres; João Paulo Tukano estuda tecnologias de cura

Hermano Vianna

"Acordávamos às quatro horas da manhã para ralar quatro aturás de mandioca." "Os mitos sempre fizeram parte de mim, pois toda noite ao me deitar na rede meu pai me contava um mito diferente." Em etnografias, essas são geralmente declarações de informantes nativos, homens. A novidade é que agora quem trabalha na roça com pai contador de mito é Francineia Bitencourt Fontes, primeira antropóloga mulher do povo baniua, com mestrado no Museu Nacional, da UFRJ.

Recentemente falamos ao telefone. Francy Baniwa, como é mais conhecida, estava em São Gabriel da Cachoeira (AM), cidade do meu coração, cosmopolita como poucas. Tem certamente muitos problemas, inclusive internet precária. Mesmo as aulas online do seu atual doutorado dependem de wi-fi emprestado.

Tinha lido, no site Amazônia Real, seu artigo sobre a pandemia. Sabia das mortes de familiares e de grandes mestres locais, perdas que deveriam gerar luto nacional como as de Higino Tenório e Feliciano Lana. Vivo apavorado também com notícias diárias de desmatamento, grilagem, mineração clandestina na Amazônia.

Então, tentando quebrar o gelo da tristeza dominante, minha e dela, logo citei frase que seu pai sempre repete: "Senta, que a conversa vai ser longa". A gargalhada deliciosa como resposta salvou o meu dia.

O pai, Francisco Luiz Lopes, é madzero: sábio, "conhecedor", benzedor. Rompeu barreiras culturais como informante principal na dissertação, transmitindo certos conhecimentos de pai para filhA, não para filhO. Isso gerou momentos "tensos". Novidade para a antropologia e para seu povo.

No doutorado, pesquisa relações intergeracionais entre mulheres, introduzindo pluralidade de vozes femininas nessa tradição etnográfica. Sinais dos tempos, que se refletem na educação ostensivamente igualitária que Francy Baniwa dá para seu filho e sua filha, mesmo respeitando os rituais de cada gênero. Atualmente o avô prepara iniciação do neto de 16 anos.

Em outra dissertação, de João Paulo Lima Barreto, tucano de São Gabriel da Cachoeira, o pai, o "kumu" (pajé) Ovídio Lemos Barreto, é também informante central, e até recebe crédito de coorientador. Isso não estava no projeto de mestrado, que previa trabalho de campo entre ictiólogos do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia.

Imprevisto: "Após um período observando o sistema classificatório de peixes nos laboratórios do Inpa, eu pude compreender que a pesquisa no instituto me propiciava o próprio estudo do conhecimento tukano. A partir daí comecei a fazer uma 'antropologia yo-yo', ou seja, na medida em que eu ia para o laboratório, mais eu era incitado ao conhecimento tukano em relação aos peixes". O termo "antropologia yo-yo", com sutilezas brincantes, parece mais promissor que "antropologia simétrica".

Hoje, João Paulo Tukano acelera o bamboleio epistêmico com doutorado, novamente na UFAM (Universidade Federal do Amazonas), sobre -entre muitas propostas inovadoras- como o pensamento tucano percebe a anatomia humana e, a partir disso, aprimora sua complexa tecnologia de cura. Em paralelo, ele abriu em Manaus o Bahserikowi'i, Centro de Medicina Indígena, que já decepcionou desejos de exotismo de pacientes ao não apresentar estereótipos de pajés com curas mágicas instantâneas.

Fez questão de usar a palavra medicina, causando polêmica mesmo entre amigos do movimento indígena que preferiam "conhecimento tradicional". João Paulo Tukano batalha por diálogos de igual para igual entre "kumuã" -plural de "kumu"- e médico(a)s.

Em vez de transformar todos os povos em dependentes químicos de substâncias como dipirona ou metformina, quer incentivar jovens indígenas a estudar/desenvolver os bancos de dados médicos acumulados na Amazônia há séculos, muito antes da invasão das tribos europeias. Acrescento: tarefas que podem ser colaborativas, como comprova a pesquisa sobre os ciclos naturais do rio Tiquié feita por povos locais e o Instituto Socioambiental.

O Bahserikowi'i, como outros consultórios, interrompeu suas atividades durante a pandemia. Agora tenta voltar aos poucos, respeitando "protocolos". Com grande novidade: se tudo deu certo, nessa semana abriu no mesmo sobrado a Biatuwi, Casa de Comida Indígena, experiência pioneira para além das fronteiras entre medicina, alimentação e benzimento.

Foi sorte conversar com João Paulo Tukano na correria para a inauguração. Com tanto problema/adrenalina, na sua fala boas ideias têm a fluência caudalosa do rio Negro na cheia. Fala de benzimentos e temperos de frutas da floresta como técnicas para construção de corpos "explosivos", fortes, armados contra vírus. Cada palavra sua é pura energia. Minha utopia desesperada de Brasil em vigorosa ação.

Hermano Vianna
Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/hermano-vianna/2020/10/pesquisado…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.