FSP, Tendências/Debates, p. A3
Autor: VEIGA, José Eli da; BORGES, Alacir; CALOU, Silvia Maria
09 de Dez de 2006
Para crescer, o Brasil precisa mudar a legislação ambiental?
Não
Da ingenuidade à covardia
José Eli da Veiga
Claro que certos investimentos seriam desinibidos pela relaxação de restrições à possibilidade de depredar recursos naturais e de poluir. Tanto quanto outros o seriam pela relaxação de restrições à possibilidade de explorar crianças ou o trabalho forçado. Ou, ainda, pela relaxação de tantas outras instituições criadas no século passado para proteger as pessoas e a natureza da voracidade desse gênero de investidores.
Como a aceleração do crescimento requer elevação da taxa de investimento de 20% para 26%, é óbvia a vantagem imediata de retrocessos sociais que removam travas impostas à apropriação "a ferro e a fogo" dos biomas nacionais.
Não se trata de saber se a proteção legal do meio ambiente é ou não entrave ao crescimento. Afinal, o sindicato que o presidente liderou no início dos anos 1980 também o era -e é. Sob prisma tão bitolado, só se pode mesmo enxergar espetáculo de crescimento em um país dotado de amplos mercados consumidores e que não ligue nem sequer para a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Muito menos para uma Constituição como a de 1988. Aí está a China, onde nem existe efetivo Poder Judiciário.
Visão menos ingênua da questão supõe entendimento dos dois padrões essenciais de crescimento econômico. O que reinou quase absoluto por mais de dez mil anos foi chamado de "extensivo" por historiadores pois espalhava os acréscimos populacionais por novas áreas geográficas, enquanto o produto aumentava no mesmo compasso. Em raras ocasiões e em poucos lugares, algumas sociedades elevaram a renda per capita mediante o aumento da produtividade total dos fatores (recursos naturais, força de trabalho e capital). Mas foram proezas passageiras, que não tardaram a decair ou colapsar. Esses surtos de crescimento "intensivo" compõem a "história das grandes civilizações".
Essa forma intensiva de crescimento acabou por se tornar recorrente. Isso só foi possível porque o casamento da ciência com a tecnologia multiplicou de forma exponencial a capacidade de inovação das sociedades. Enquanto no crescimento antigo predominava a devora de recursos naturais pela força física do trabalho humano, o alicerce do crescimento moderno passou cada vez mais a depender do uso inteligente das inovações que tornam o trabalho mais decente e qualificado, além de conservar os ecossistemas.
Por dez milênios predominou o tutano sobre o neurônio, mas isso vem se invertendo com rapidez nos últimos 150 anos. A ponto de nada poder ser mais estranho ao padrão moderno do que a ânsia de turbinar o PIB pela depredação do patrimônio natural.
Por isso, em vez de exigir recuo da legislação ambiental, o crescimento moderno se apóia na capacidade de inovação da sociedade, que resulta de forte interação entre a ciência e a tecnologia (C&T). O Brasil não voltará a crescer bastante, com constância e qualidade, enquanto não atribuir a seu sistema de C&T um valor ao menos equivalente ao que dá ao futebol.
Simples miragem, claro, para uma sociedade que se faz governar por uma coalizão incapaz de desonerar a carga tributária com contenção das despesas correntes do setor público, incapaz de fazer reformas imprescindíveis (como a da Previdência), incapaz de melhorar a eficiência do sistema judiciário, de rever a CLT etc.
Em tais circunstâncias, não passa de covardia a propensão para escolher índios, quilombolas e ambientalistas como bodes expiatórios.
A sociedade brasileira está diante de troca intertemporal. É preciso que domine anseios ilusórios por imediatos saltos triplos do PIB para que seus filhos, netos e bisnetos tenham chance de abrir caminho ao desenvolvimento sustentável.
Por isso, um estadista não cederia a pressões dos arautos de obsoleto padrão de crescimento. Ao contrário, adotaria uma estratégia focada em decisivos investimentos públicos no sistema de C&T. Assim, estimularia os melhores investidores privados, em vez de promover os jurássicos que querem fazer da Amazônia e do que resta do cerrado exatamente aquilo que seus pais, avós e bisavós fizeram da mata atlântica e da caatinga.
José Eli da Veiga, 58, é professor titular e coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental da USP e autor de, entre outros livros, "Meio Ambiente e Desenvolvimento".
www.econ.fea.usp.br/zeeli
Sim
Para crescer, o Brasil precisa mudar a legislação ambiental?
Utilidade pública e relevância estratégica
Alacir Borges e Silvia Maria Calou
A regulamentação do artigo 23 da Constituição, que trata da competência para a concessão de licenças ambientais, enfim recebeu sinalização do governo de que é necessária para "destravar" os investimentos em infra-estrutura, operando mudanças na legislação ambiental.
A falta de regulamentação tem levado o Ministério Público a questionar as licenças expedidas por alguns órgãos, uma vez que não reconhece a aplicação da resolução Conama no 237/97, que define a competência licenciatória. A rigor, o projeto de lei mencionado nada mais é do que a transformação dessa resolução em lei, na qual a competência do licenciamento é determinada pelo território diretamente afetado pelo empreendimento, e não pelo domínio do bem.
Outra questão que merece tratamento legislativo é a existência de procedimentos diferenciados nos entes federados. Entendemos que os procedimentos para licenciamento devem ser uniformes e estáveis para todo o país e contemplar as particularidades regionais e locais. Os procedimentos dos Estados e municípios devem conformar-se aos da União, obedecendo a um efetivo plano de ação governamental de integração.
Deve também ser revista com cautela a lei de crimes ambientais, que responsabiliza os servidores dos órgãos licenciadores. Em que pese a necessidade de evitar atos de má-fé, o receio de algum processo a ser respondido pessoalmente pelo servidor, sem suporte do Estado, tem sido fator inibidor das expedições de licenças.
Todavia, se o governo quer realmente destravar o desenvolvimento, tem de promover também maior agilidade nos processos de licenciamento, para que os prazos estabelecidos em norma legal sejam cumpridos.
Na própria resolução 237, são estabelecidos os prazos para a expedição das licenças ambientais, que são, no máximo, de seis meses para as licenças prévias, ressalvado o caso em que houver estudo de impacto ambiental e/ou audiência pública (prazo de doze meses). Para as licenças de instalação e operação, os prazos de emissão estão limitados a seis meses. Exemplos da não observância dos prazos são os empreendimentos com concessão federal de geração de energia elétrica de Estreito (1.087 MW), desde 2001 no processo de licenciamento e desde 2005 aguardando a licença de instalação, e Pai Querê (172 MW), que desde 2001 aguarda a licença prévia.
Em ambos os casos, as questões que levaram ao atraso nos licenciamentos são exigências adotadas sem a devida previsão legal. Por outro lado, há casos em que as condicionantes para a emissão das licenças são tantas e os prazos para cumprimento são tão longos que comprometem o cronograma e podem afetar a viabilidade econômica do empreendimento.
O que se espera daqui para a frente é uma ação coordenada para que os objetivos de crescimento do país sejam atingidos de forma sustentada.
Além dos pontos mencionados, acreditamos que os empreendimentos de utilidade pública e relevância estratégica para o país devam ter um rito especial de licenciamento ambiental. Para um crescimento do PIB de 4% ao ano, são necessários cerca de 4.000 MW anuais de geração de energia nova. Entre 2003 e 2006, foram concedidas licenças de operação para 2.023 MW em empreendimentos de geração hidrelétrica de âmbito federal, ficando clara a urgência de medidas que alterem essa realidade.
Ressaltamos que nossas observações visam contribuir para o equacionamento dos entraves atuais, sem, contudo, afetar a proteção ambiental prevista na legislação vigente, contrariamente ao que se tem veiculado de forma equivocada por setores ambientalistas, que alegam que as mudanças visam a permissão para a destruição do meio ambiente.
Por isso, somos de opinião que se crie norma de licenciamento específica ou revisão na existente para dar mais agilidade à expedição de licenças para empreendimentos de relevância para o país.
ALACIR BORGES, advogada, especialista em direito ambiental pela FGV-SP, é coordenadora do Comitê de Meio Ambiente da ABCE (Associação Brasileira de Concessionárias de Energia Elétrica).
SILVIA MARIA CALOU, economista, mestre em política energética pela Universidade de Surrey (Inglaterra), é diretora-executiva da ABCE
FSP, 09/12/2006, Tendências/Debates, p. A3
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