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O boi da Amazônia

FSP, Comida, p. G4-G6
17 de Nov de 2011

O boi da Amazônia
Dois top endereços de SP já ensaiam receitas com a carne da tartaruga-da-Amazônia para resgatar pratos que marcaram a cultura gastronômica brasileira; o animal, que teve a caça proibida nos anos 60, começa a ser comercializado por criadouros certificados pelo Ibama

LUIZA FECAROTTA
ENVIADA ESPECIAL AO ACRE

Para entender a tímida, rara e recentíssima presença da carne de tartaruga em endereços da alta gastronomia é preciso ir longe. Precisamente, a Xapuri, cidade a duas horas de Rio Branco, no Acre.
Lá, na fazenda Três Meninas, há um programa de auxílio ao repovoamento e de comércio do animal.
Com proposta semelhante, o projeto Tamazon, primeiro criatório do Acre, é responsável pela chegada a São Paulo de um lote de 60 kg dessa carne. Pela primeira vez, um criadouro daquele Estado comercializa o lombo da tartaruga nessa quantidade.
A caça no Brasil foi proibida em 1967 e houve campanha de órgãos públicos para sua conservação na natureza. "Hoje não é um animal ameaçado e é facultada sua criação comercial", diz Messias Costa, do museu Emilio Goeldi, o mais importante órgão de pesquisa sobre a Amazônia, em Belém (Pará).
"O aumento das comunidades [ribeirinhas e indígenas] e a agressão ao ambiente haviam levado ao declínio das populações de tartaruga-da-Amazônia", diz Costa.
Para Caloca Fernandes, autor de "Viagem Gastronômica Através do Brasil", não faz sentido a caça ser proibida no país. Para ele, deveria ter sido feito um trabalho de prevenção, com a caça restrita a determinadas épocas do ano.
Após quase 30 anos de proibição, a carne ficou de fora até dos cardápios do Norte do país. Para reintroduzi-la, será preciso superar um "conflito cultural", já que as tartarugas são consideradas animais domésticos.
Em 1992 houve liberação de criatórios. E foi somente em 1996 que a comercialização foi regularizada -hoje, ainda é burocrática e depende de certificados do Ibama.
É quando entram em cena figuras como Valmir Ribeiro, do projeto Tamazon, e Miguel Fernandes de Araújo, da fazenda Três Meninas, que sustentam programas de auxílio ao repovoamento da espécie, antes ameaçada de extinção, e começam a dar vida ao comércio dessa carne.
Segundo Costa, os investimentos são altos para sustentar os açudes e a ração -e é preciso aguardar cerca de cinco anos para que as tartarugas atinjam o peso para abate e outros 15 para reprodução. "Muitas espécies se perpetuaram com domesticação e uso alimentar", diz.
SABOR
A chef Ana Luiza Trajano, do Brasil a Gosto, servirá o lombo, a parte "mais sutil da tartaruga", a partir do dia 22. Servida como entrada fria no cardápio que homenageia o Acre, essa carne passará a noite em marinada de azeite e especiarias. Depois, será cozida em baixa temperatura. Completa o prato uma emulsão de leite de castanha, alfavaca, chicória e um crocante de mandioca (R$ 49). Alex Atala, que estuda a introdução da tartaruga no seu menu-degustação, inspirou-se em uma receita clássica, que conheceu no Japão, para fazer o consomê que serviu no D.O.M. na semana passada (leia na página ao lado).
Ele mesclou sabores brasileiros, como ervilha-torta, hortelã, limão, cogumelo e tapioca, a um caldo denso feito com patas e pescoço de tartaruga (as partes que têm mais pele) e alga kombu. A carne foi cozida por oito horas em baixa temperatura.
Em outro prato, explorou o jeito amazonense: da carne cozida aproveitou o caldo, para um pirão. Do fígado, de sabor potente, fez base para a farofa. Da pele, torresmo.
Os chefs usam tartarugas certificadas pelo Ibama, de criatórios regularizados.

Para críticos, o abate não se justifica

DE SÃO PAULO
O principal argumento dos entrevistados que se posicionam contra o abate da tartaruga é a falta de justificativa para a morte do animal.
O professor de direito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Daniel Braga Lourenço, autor do livro "Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas" (editora safE), defende que não se pode matar para satisfazer o que ele chama de "um mero prazer gastronômico", já que existem outros alimentos na natureza que não implicam na morte dos animais.
"A morte é contrária ao interesse biológico fundamental de continuidade da vida", diz Lourenço. "Do mesmo modo, não justifica abate o fato de que ele possa gerar benefícios econômicos", diz.
Para Izabel Cristina Nascimento, 60, presidente da Suipa (Sociedade União Internacional Protetora dos Animais), o ser humano não tem necessidade de comer animais. "Quem disse que a tartaruga quer virar comida?"
Há 18 anos membro da Suipa, ela levanta outra questão: "Se o Ibama está protegendo os animais silvestres, exóticos, por que libera criadouros para o bicho ser vendido?". (LUIZA FECAROTTA)
Veja galeria de fotos de tartarugas em folha.com.br/fg5408

Ovos
Os ovos das tartarugas-da-Amazônia são alvo de cobiça de homens e animais. Sua predação é uma das principais causas da diminuição da espécie na natureza -hoje o consumo do ovo é proibido. Eram recolhidos como alimento e para fazer manteiga de tartaruga -nome que se dá aos óleos espessos ou banhas. Ela era usada como combustível para lâmpadas e condimento para receitas.

Entrevista Alex Atala
Gastronomia pode ser ótima ferramenta de conservação

DE SÃO PAULO

Na semana passada, Alex Atala preparou dois pratos de tartaruga, em quantidade restritíssima -e já finda-, no seu restaurante D.O.M. À mesa, o chef falou à Folha sobre a caça no Brasil. (luiza fecarotta e priscila pastre-rossi)
Repovoamento
A logística de trazer para cá é complicada e é um ingrediente caro e difícil de conseguir. Você corre atrás de tartaruga e parece um ser cruel. Tem de explicar que isso é importante para que exista repovoamento. Para haver reintrodução na natureza, o criatório precisa da renda do comércio.
Ferramenta de conservação
Muita gente desistiu de criar tartaruga na Amazônia por causa das burocracias. Espero que a gente consiga fazer da gastronomia uma importante ferramenta de conservação. Existe um benefício ambiental, social, e a utilização desse ingrediente abre mais uma porta para a gastronomia.
Caça
A saída não é legalizar a caça. O manejo de fauna é que é fundamental. As pessoas perderam a cultura de trabalhar com carne de caça. Até o chef desconhece o produto e a carne de caça foi virando sinônimo de mau produto. Está na hora de reverter isso no Brasil.
Resistência cultural
Se a tartaruga sai de um criatório conservacionista, em que o objetivo final é a favor do ambiente, vamos ter de entender que o sacrifício de alguns animais faz parte. A gente humanizou a tartaruga; a vaca e o frango a gente desumanizou. É uma questão de interpretação cultural.
Carne da tartaruga
O que a diferencia [das outras carnes] é a quantidade enorme de colágeno que ela tem. Isso rende preparações completamente diferentes.
Aproveitamento
O principal é aproveitar as texturas. Você consegue um pirão aveludado, um caldo denso com textura de gelatina quente. A carne em si podemos dividir em vários pedaços: o peito tem fibra longa, é um pouco mais claro e de sabor delicado, as patas são mais musculosas e remetem a sabor de músculo bovino.

Perfil Maria Barbosa Maia, 80
Senhora tartaruga
Há quase 60 anos dona Maria aprendeu a fazer 19 pratos com tartaruga; na semana passada, preparou quatro deles para dar clima especial ao bate-papo sobre a sua vida e suas receitas

LUIZA FECAROTTA
ENVIADA ESPECIAL A XAPURI (ACRE)

Não vi o olhar de dona Maria. Por toda a tarde -e soube que até quando cai a noite, não importa- ela permanece, intocável, com aqueles óculos escuros que lhe cobrem boa parte do rosto. Fez uma operação de catarata recentemente, pelo governo.
Conheci Maria Barbosa Maia, 80, na fazenda Três Meninas, em Xapuri, a duas horas de carro a partir de Rio Branco, no Acre, onde há criação de tartarugas.
Dona Maria é famosa pelos 19 pratos que prepara com o animal, "cada qual com um sabor". E qual é seu prato preferido, dona Maria? "Do meu gosto? É a buchada!" E como se faz? "Do bucho", reponde.
Contou que o bucho descansa por 12 horas numa mistura de sal grosso e limão, porque isso "tira toda a fortidão", bate a carne do lombo da tartaruga com temperos -pimenta doce, alho, cebola. "Menos tomate e pimentão, que azedam a comida de repente". Enche o bucho e coloca no fogo "bem baixinho".
Dona Maria não sabe ler nem escrever. Aos 14 anos, fugiu do Ceará para o Amazonas. "Pulei num navio e disse pra um senhor: 'Quando vierem conferir as crianças, diga que sou sua filha'."
Ela conta que, com ele, foi ao último seringal do Acre, perto da Bolívia. "Esse velho me ensinou a cortar seringa, descascar castanha, andar no mato e atirar nos bichos."
Foi em 1952, no Baixo Amazonas, que viu o preparo de uma tartaruga -fez sua primeira dois anos depois. Quem lhe ensinou as diferentes receitas foi seu Armando, para quem trabalhou - "o melhor cozinheiro de Belém".
Explica que a tartaruga de 30 quilos "rende material para os 19 pratos". Com o sangue faz sarapatel, com o músculo, a buchada, com as pernas, o guisado, com o osso, o caldo." Para ela, boa cozinheira não salga a comida nem queima a panela.
Teve 17 filhos. "Todos com o mesmo homem, que depois me deixou". Estende o braço. "Essa queimadura é de fazer massa. Essa é de fritar salgado para vender."
Com a catarata, fazia tudo sem enxergar. Diz que ficou "ruim da vista" por causa dos acidentes -dois de carro, um de moto. Cuidou com ervas, como aprendeu com os caboclos. "A senhora faz um emplastro com gema de pata e com a rapa do jenipapo preto. Cura qualquer osso."

FSP, 17/11/2011, Comida, p. G4-G6

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/comida/9299-o-boi-da-amazonia.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/comida/9300-para-criticos-o-abate-nao-…
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/comida/9302-ovos.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/comida/9304-gastronomia-pode-ser-otima…
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/comida/9306-senhora-tartaruga.shtml

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