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Nada justifica o olho gordo em nossas terras

FSP, Tendências/Debates, p. A3
Autor: GUAJAJARA, Sonia
01 de Set de 2021

Nada justifica o olho gordo em nossas terras
Não são os indígenas que podem acabar com o agronegócio, mas o próprio

Sonia Guajajara
Coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e ex-candidata do PSOL à Vice-Presidência da República (2018)

31.ago.2021

Minha língua materna é a ze'egete, que significa "a fala boa". Sou formada em letras, também conheço muito bem o português. "Narrativa", palavra favorita dos seguidores do presidente Jair Bolsonaro, é definida no dicionário como "texto em prosa cujos personagens figuram situações fictícias, imaginárias". E ela define a fala má dita na semana passada por Bolsonaro sobre o julgamento da tese do marco temporal no Supremo Tribunal Federal: "Se mudar o entendimento passado, de imediato nós vamos ter que demarcar, por força judicial, uma outra área equivalente à região Sudeste como terra indígena. Acabou o agronegócio". Como é possível caber tanta ficção em apenas duas frases?

Ruralistas chegaram a pagar anúncios de página inteira em jornais para ajudar a vender a fantasia presidencial; mas, no mundo real, se o STF decidir sepultar de vez o marco temporal não estará modificando nenhum "entendimento passado". Na verdade, quem fez isso foi a Advocacia-Geral da União (AGU), durante o governo Michel Temer (MDB), quando emitiu o parecer 001/2017.

O marco temporal -que determina que somente os povos indígenas que já estivessem ocupando suas terras na data da promulgação da Constituição, em 1988, poderiam reclamar sua posse- não era previsto por lei. A AGU se valeu do voto do ex-ministro Ayres Britto no julgamento sobre a homologação da terra indígena (TI) Raposa Serra do Sol para formar seu entendimento.

Em 2009, a corte havia decidido que a TI deveria ser demarcada "de forma contínua"; logo, posses não indígenas ficariam de fora da área delimitada. Apenas o voto de Britto fazia menção ao marco temporal. O Supremo foi acionado de novo, em 2013, para julgar apelações contra a decisão. E, além de manter o veredicto, determinou que ele não teria efeito vinculante. Aliás, a tese nem sequer foi aplicada no processo Raposa Serra do Sol, já que havia posses não indígenas nos limites de seu território que datavam do início do século 20 e foram anuladas. Isso não é história, é fato histórico.

Bolsonaro prometeu que o Brasil voltaria ao que era há 50 anos, mas a aprovação do marco temporal faria o país recuar ao período colonial. Alvará de 1o de abril de 1680, sancionado pela lei de 6 de julho de 1775, já estabelecia que, em "terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas". O presidente também não será obrigado a fazer nada "de imediato": o artigo 67 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988 previa um prazo de cinco anos para que todas as TIs estivessem demarcadas. O Estado já está 28 anos atrasado.

Hoje, as terras indígenas ocupam 13,8% do território nacional. Parece muito, mas a proporção é menor que a média mundial, 15%, segundo estudo publicado na revista "Nature Sustainability". Se comparadas à área ocupada por propriedades rurais, a gente perde de goleada: 41%. São 421 TIs já homologadas, que totalizam 1,066 milhão de km2 e 303 em fase de demarcação, ou 110 mil km2. Nelas vivem mais de 600 mil pessoas. Enquanto isso, 51,2 mil latifúndios, ou 1% das propriedades, ocupam 20% do Brasil. São dados do Diário Oficial da União, do IBGE, da Funai, do Instituto Socioambiental e do projeto MapBiomas.

Ainda para efeito de comparação, a TI Ibirama-La Klãnõ, reclamada pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina e cujo julgamento o STF tornou de repercussão geral, tem 370 km2 e dela dependem 2.057 indígenas; já a Fazenda Nova Piratininga, em Goiás, que pertence a três empresários, ocupa 1.350 km2.

Não há nada que justifique o olho gordo em nossas terras: só na Amazônia há 510 mil km2 de área não destinada, que poderiam ser usados para produção. TIs são fundamentais para conter o desmatamento -apenas 1,6% da perda de vegetação nativa no país se deu em seus limites entre 1985 e 2020-, e elas armazenam 28,2 bilhões de toneladas de CO2 na Amazônia, 33% do total.

Sem as terras indígenas, o planeta vai esquentar e o céu vai parar de chover. Não somos nós que podemos acabar com o agronegócio, mas ele mesmo.

FSP, 01/09/2021, Tendências/Debates, p. A3

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/08/nada-justifica-o-olho-gor…

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