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Mulheres da aldeia Maturacá (AM) descobrem espécie de fungo usado em cestaria

FSP, Ciência, p. B6.
30 de Jun de 2019

Mulheres da aldeia Maturacá (AM) descobrem espécie de fungo usado em cestaria
Autoras descrevem o përisi, fio preto brilhante que tiram do chão da floresta, em livro trilíngue

Marcelo Leite
MANAUS

Floriza da Cruz Pinto Yanomami, 48, que estudou até a 5ª série no Instituto de Educação do Amazonas, em Manaus, realizou o sonho de todo jovem biólogo: ser primeira autora de trabalho descrevendo uma espécie nova. Sem ela e 30 coautores, o mundo não conheceria o Marasmius yanomami.

A descrição científica está no livro trilíngue "Përisi - O fungo que as mulheres yanomami usam na cestaria", lançado quinta-feira (27) em Manaus. Outro lançamento havia ocorrido domingo (23) em Maturacá, perto do pico da Neblina e da fronteira com a Venezuela.

O Instituto Socioambiental (ISA) fez chegarem à aldeia de Floriza 218 exemplares do volume de 71 páginas, o 18o de sua série Saberes da Floresta Yanomami. No mesmo dia, a ianomâmi elegeu-se presidente da associação de mulheres Kumirãyõma e entregou o livro para líderes da comunidade, tradutores e autores indígenas.

Começou então a longa viagem para apresentar a novidade na capital amazonense. Duas horas de barco pelo rio Cauaburis, mais seis horas de camionete para cobrir 80 km na enlameada BR-307 até São Gabriel da Cachoeira (AM). Dali, de avião até Manaus.

"Agora o mundo vai ver que as mulheres ianomâmis são também pesquisadoras", diz a primeira autora da obra. "Pesquisadoras da natureza, sem estudar. Muito orgulho."

Floriza conta que as artesãs ianomâmis há muito queriam saber o que era, afinal, o përisi, fio preto brilhante que tiram do chão da floresta e usam para decorar seus cestos. Cipó? Raiz? Na cidade, chegavam a lhe perguntar se era plástico.

Num livro de 2010, "Urihi A - A Terra-Floresta Yanomami", o antropólogo Bruce Albert e o etnobotânico William Milliken fizeram referência ao uso de rizomorfos pretos por ianomâmis, mas em aldeias distantes de Maturacá. "Rizomorfo" quer dizer "com forma de raiz", mas são estruturas de crescimento de fungos -uma pista de que o përisi não é uma planta.

O ISA já organizava com a Kumirãyõma uma cartilha para preservar o conhecimento sobre manejo do fio -onde encontrar, como retirar sem esgotar o recurso etc. Surgiu a ideia de buscar ajuda da micóloga (estudioso de fungos) Noemia Kazue Ishikawa, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa).

Noemia tinha cestos ianomâmi há mais de 15 anos e nunca desconfiara que os desenhos negros pudessem ser um fungo. Por sorte, tinha como colaborador um especialista em rizomorfos, Jadson José Souza de Oliveira.

A cientista do Inpa já conhecia a equipe do ISA. Tinha colaborado, a pedido do antropólogo Moreno Saraiva Martins, em outro livro da série, "Ana Amopö - Cogumelos Yanomami".

Floriza e a artesã Maria de Jesus Lima visitaram o Inpa, em 2017. Foram com Noemia procurar o fio na reserva Ducke, mata vizinha de Manaus. Acharam só um "cunhado", rizomorfos mais grossos e quebradiços. Não era përisi.

A Kumirãyõma enviou carta-convite ao Inpa para que fossem a Maturacá coletar material com vistas à identificação e explicar como fariam isso. Na carta, além da autorização para pesquisa em terra indígena, pediam a devolução do material quando o estudo científico se encerrasse.

O trabalho de campo aconteceu em 2018, no sítio Batatal, aonde o grupo chegou em três barcos. Acamparam ali por cinco dias.

As ianomâmis sabem bem onde achar o fio, nas áreas da floresta em que brotam florzinhas brancas e vários cogumelos de outras espécies. Era importante para confirmar que se tratava de um fungo, porém, encontrar os cogumelos crescidos do próprio përisi.

As artesãs não conheciam essa estrutura de reprodução, com o característico chapéu de onde saem esporos. Quando elas puxam o fio do emaranhado de folhas e galhos que compõem a serapilheira sobre o chão da mata, os minúsculos cogumelos do përisi (máximo de 1 cm de comprimento) caem e se perdem.

Com a insistência de Jadson Oliveira, acabaram encontrando. "Deu um trabalho...", conta Luiza de Lima Goes, que participou da expedição e do lançamento em Manaus. Souberam então que era mesmo um fungo. Mas seria ele desconhecido da ciência?

O gênero Marasmius tem centenas de espécies. Coube a Jadson realizar a laboriosa comparação com registros dos integrantes do gênero que produzem rizomorfos. A confirmação de que era de fato um novo fungo só veio no começo deste ano.

A redação da cartilha -lenta e trabalhosa, porque feita coletivamente na aldeia em duas línguas, yanonami e português- tinha avançado, e o texto, crescido. Seis capítulos com a apresentação do conhecimento sobre a história natural e os usos do përisi em Maturacá já estavam quase prontos.

Nem sempre foi fácil conciliar os ritmos indígenas e não indígenas no acampamento. Em certa altura, uns queriam fazer reunião para avançar no texto, mas as ianomâmis tinham urgência de processar e guardar os fios de përisi, para não irritar o espírito feminino da floresta cujos pelos pubianos haviam arrancado.

Faltava a descrição científica. Surgiram dúvidas, de um lado e de outro, sobre incluir isso no livro ou não.

O texto, necessariamente em inglês, não seria de autoria nem compreendido pelas ianomâmis. Por outro lado, três dezenas de autores indígenas não seriam aceitos por periódicos científicos especializados, canal usual para publicação de novas espécies.

Decidiu-se enfim pela inclusão da chamada diagnose (descrição morfológica) como anexo da obra. Seu conteúdo se acha traduzido numa linguagem menos técnica, em yanonami e português, no capítulo 7.

A solução permite que o livro se consagre como a referência científica do novo fungo, pois o pesquisador que quiser mencioná-lo terá de citar Floriza e seu grupo, incluindo Noemia e Jadson. Ou seja, Yanomami et al.

"Essa coisa de espécie nova é um fetiche, mas em momento nenhum foi uma questão para eles [os pesquisadores do Inpa]", afirma Marina de Mattos Vieira, bióloga do ISA que participou da organização do livro. "Sempre quiseram dar o crédito para as ianomâmis."

"É delas. Ianomâmis fazendo ciência. Eu abro mão de um artigo [científico] tranquilamente para ajudar essas pessoas", diz Noemia.

Calcula-se que existam mais de 13 mil espécies de fungo no Brasil, a maioria desconhecidas. Noemia e William Magnusson, colegas no Centro de Estudos Integrados da Biodiversidade Amazônica do Inpa, estão convencidos de que, para a pesquisa na região avançar, é fundamental contar com o conhecimento ecológico indígena.

Depois de contribuir para a identificação dos cogumelos comestíveis ianomâmis à venda no mercado de Pinheiros e com a descrição do inédito Marasmius yanomami, Noemia já se apresenta como etnomicóloga. Em sua conferência no 9o Congresso Brasileiro de Micologia, encerrado quinta (27) em Manaus, terminou aplaudida por isso.

O colunista Marcelo Leite viajou a Manaus a convite do Instituto Socioambiental (ISA)

FSP, 30/06/2019, Ciência, p. B6.

https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/06/mulheres-da-aldeia-matura…

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