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Muito além das audiências públicas

FSP, Tendências/Debates, p. A3
Autor: TUFFANI, Maurício
25 de Mai de 2007

Muito além das audiências públicas

Maurício Tuffani

A necessidade que levou o Supremo Tribunal Federal a realizar em 20/4 audiência pública sobre a utilização de células-tronco embrionárias humanas (CTEH) em pesquisas e tratamentos foi mais um atestado do fracasso do poder público e da própria comunidade científica brasileira na condução, com a sociedade, de temas complexos relacionados à ciência e à tecnologia.
Ao promover a audiência pública, o STF agiu corretamente diante do que lhe cabia e restava fazer. No entanto,
essa discussão não só deveria ter sido realizada muito antes de ela ter sido objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade como também deveria ter sido precedida por uma ampla divulgação sobre os aspectos científicos, jurídicos e éticos envolvidos.
Essa omissão atinge vários outros temas polêmicos, desde a legalização do aborto e a aprovação de pesquisas e cultivos de sementes geneticamente modificadas ao licenciamento de obras de grande impacto ambiental, como a das usinas hidrelétricas do Rio Madeira. E é o que ameaça se repetir com a promessa dos microscópicos engenhos da nanotecnologia.
Talvez os ministros do STF estejam satisfeitos com as explicações dos 34 especialistas na audiência pública.
Mas, para a sociedade brasileira, o saldo do evento talvez seja só a lembrança da tentativa desastrada do subprocurador-geral da República Claudio Fonteles de desqualificar a geneticista Mayana Zatz (favorável à pesquisa com CTEH) por ela ser judia, configurando o que os mais simples manuais de lógica definem como falácia ("argumentum ad hominem").
Em alguns países, órgãos responsáveis pelas áreas de meio ambiente e de ciência e tecnologia têm promovido fóruns públicos de debates sobre temas polêmicos. Por exemplo, no Reino Unido, desde 2002, assuntos como sementes transgênicas, pesquisas com CTEH, "screening" genético pré-parto e outros vêm sendo discutidos por especialistas com diferentes opiniões em várias cidades.
Por sua vez, no Brasil, temas científicos polêmicos cabem a órgãos como a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), cuja orientação exclusivamente técnica tem sido reiterada por sua direção e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia.
Não se trata de negar a competência nem a correção ética de seus membros, mas de ressaltar que os critérios científicos não são os únicos a considerar em decisões que influenciarão toda a sociedade. É o caso, por exemplo, da recente aprovação do plantio comercial da variedade de milho geneticamente modificada para adquirir resistência a um herbicida, que tramitou por nove anos na CTNBio.
Com o devido respeito aos cientistas brasileiros, sobretudo aos que desenvolvem pesquisas por puro idealismo em meio a todo tipo de adversidade, na minha opinião -que desvinculo de minha atual função-, está mais do que na hora de eles e o governo agirem com base no princípio de que, assim como na política em geral, na política científica a sociedade civil deve ter canais de participação nas decisões que irão afetá-la.
Essa advertência foi apresentada para todos os países em 2005 pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em seu relatório "Towards Knowledge Societies" ("Rumo às Sociedades do Conhecimento"). "Cientistas e especialistas precisam reconhecer que suas argumentações técnicas só serão aceitas no debate público se eles puderem esclarecer como elas foram obtidas e quais são seus pressupostos", diz o documento. "Os argumentos de autoridade já não são mais válidos."
Realizados com a divulgação prévia de material informativo para os leigos, os fóruns públicos não devem pretender chegar a um consenso nem esgotar a discussão, mas podem explicitar opiniões conflitantes por meio do confronto de idéias organizado e transparente, em vez da guerra de desinformação travada na mídia entre governo, pesquisadores, ONGs e empresas em torno de temas ambientais e de biotecnologia.
Também não devem esses debates visar a plena certeza nem a negação absoluta da segurança de novas tecnologias ou de grandes obras, mas o esclarecimento de parâmetros sobre riscos potenciais e benefícios previstos a serem ponderados nas instâncias de decisão. E isso não tem nada a ver com o que se tornaram nossas desgastadas audiências públicas.
As ações propostas pela Unesco certamente não são garantias de um verdadeiro debate público. Mas são, sem dúvida, necessárias para que ele possa acontecer.

Maurício Tuffani é jornalista especializado em ciência e meio ambiente e assessor de Comunicação e Imprensa da Unesp.

FSP, 25/05/2007, Tendências/Debates, p. A3

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