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Liberalismo hídrico murcha cidade chilena

FSP, The New York Times, p. 3
23 de Mar de 2009

Liberalismo hídrico murcha cidade chilena

Por Alexei Barrionuevo

Quillagua, Chile - Nas últimas quatro décadas, os moradores de Quillagua, cidade que aparece nos livros como o lugar mais seco do mundo, viram esporadicamente gotas de chuva à distância, sobre os contrafortes. Elas porém nunca chegam ao chão, evaporando-se ainda no ar, como uma miragem.

O que a cidade tem é um rio, alimentando um oásis no deserto do Atacama. Mas as mineradoras poluíram e compraram tanta água, dizem os moradores, que todos os anos, durante meses, o rio não passa de um filete -aliás, inutilizável.

Quillagua está entre as muitas pequenas cidades tragadas nas guerras por água, cada vez mais intensas no Chile. Especialistas dizem que em nenhum outro lugar o sistema de compra e venda de água é tão permissivo quanto aqui, onde os direitos sobre a água são propriedade privada, e não um recurso público, e podem ser comercializados como "commodities", com pouca fiscalização do governo ou salvaguardas ao meio ambiente.

A propriedade privada em algumas áreas é tão concentrada que uma única empresa de eletricidade, a espanhola Endesa, adquiriu 80% dos direitos hídricos em uma enorme área do sul, causando revolta. No norte, produtores agrícolas estão competindo com as mineradoras para desviar rios e aproveitar os escassos suprimentos de água, deixando cidades como esta ressecadas, murchas.

"Tudo, parece, está contra nós", disse Bartolomé Vicentelo, 79, que costumava criar e pescar camarões no rio Loa, que abastecia Quillagua.

A população hoje é cerca de 20% do que era há duas décadas. Vicentelo é uma das 120 pessoas ainda vivendo ali.

Alguns economistas elogiam o sistema chileno de comércio hídrico, estabelecido em 1981, durante a ditadura de Augusto Pinochet, por verem nele um modelo de eficiência do livre mercado, que aloca a água para o seu uso econômico mais elevado.

Mas outros argumentam que tal sistema é insustentável porque promove a especulação, ameaça o meio ambiente e permite que interesses menores sejam enxotados por forças poderosas.

"O modelo chileno foi longe demais na direção da regulamentação desimpedida", disse Carl Bauer, especialista no mercado hídrico chileno, da Universidade do Arizona. "Ele não refletiu sobre o interesse público."

Preocupações com a escassez atormentam a expansão econômica do Chile, baseada em recursos naturais como cobre, frutas e peixes -todos recursos dependentes da água.
"O dilema que estamos enfrentando é se podemos nos permitir continuar nosso desenvolvimento com a mesma quantidade de água que temos agora", disse Rodrigo Weisner, diretor de águas do Ministério de Obras Públicas do Chile.

"Não há consenso político sobre como lidar com o desafio de produzir os recursos que temos -inclusive as maiores reservas de cobre do mundo- num país que tem o deserto mais árido do mundo", disse Weisner.

Quillagua figura há 37 anos no Guinness como "o lugar mais seco" do mundo, embora tenha prosperado graças ao rio Loa, chegando a ter 800 habitantes na década de 1940. A prosperidade começou a se esvair em 1987, quando o regime militar reduziu em mais de 65% a água da cidade, segundo o geógrafo Raúl Molina, da Universidade do Chile. Mas os grandes golpes vieram em 1997 e 2000, quando dois episódios de contaminação arruinaram o uso agropecuário do rio.

Um estudo inicial feito por um professor concluiu que a contaminação de 1997 provavelmente veio de uma mina da estatal Codelco. O governo chileno na época contratou técnicos alemães, que disseram que a contaminação teve origem natural.

Mas o Serviço Agrícola e Pecuário, ligado ao Ministério da Agricultura, rejeitou essas conclusões em 2000, dizendo em um relatório que a responsabilidade foi de pessoas, não da natureza. A Codelco nega ter qualquer responsabilidade.

O debate, no entanto, é em grande medida acadêmico, porque, sem água adequada para plantar, os moradores não viram razão para continuar resistindo às ofertas externas para vender os direitos hídricos na própria cidade. A mineradora Soquimich acabou comprando cerca de 75% dos direitos em Quillagua.

Numa cruel reviravolta, a cidade só sobrevive atualmente por causa de caminhões-pipa parcialmente bancados pela Codelco e a Soquimich.

Alguns moradores continuam determinados a salvar a cidade. O chefe dos índios aimará, Victor Palape, dono do principal restaurante do lugar, ainda sonha em atrair turistas para as 108 crateras de meteoros em Quillagua e arredores. Sua irmã Gloria é igualmente orgulhosa do lugar de Quillagua na história.

"Para conseguir viver no lugar mais seco do mundo, com tudo o que aconteceu, o povo tem de ser resistente, teimoso", disse ela. "Não vamos desistir."
Colaborou Pascale Bonnefoy, em Santiago

FSP, 23/03/2009, The New York Times, p. 3

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