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Juiz trava projeto de porto em área indígena de Peruíbe

FSP, Cotidiano, p. C1, C10-C11
30 de Mar de 2008

Juiz trava projeto de porto em área indígena de Peruíbe
50 famílias de índios moram em terreno que pode abrigar empreendimento
A pedido do Ministério Público Federal, Justiça concedeu liminar que cancelou audiência pública que discutiria projeto

Afra Balazina
Enviada especial a Peruíbe

A presença de índios tupis-guaranis na terra indígena Piaçagüera é hoje o principal entrave para a construção de um megaempreendimento em Peruíbe, no litoral sul de São Paulo: o Porto Brasil, projeto orçado em R$ 6 bilhões e que divide opiniões no município.
Cerca de 50 famílias -ou 180 índios- vivem em cabanas e casas que foram de funcionários de uma ferrovia desativada que passa pelo terreno, conhecido como espólio (conjunto dos bens deixados por alguém ao morrer) Leão Novaes.
Na última quarta-feira deveria ter ocorrido a primeira audiência pública sobre o projeto, mas a reunião foi cancelada por determinação do juiz federal substituto Antonio André Muniz Mascarenhas de Souza, por meio de uma liminar.
O cancelamento foi pedido pelo Ministério Público Federal pelo fato de a área abrigar uma população indígena.
Em comunicado, o órgão afirmou considerar "incongruente" que o Consema (conselho estadual do meio ambiente) dê início ao licenciamento de um empreendimento em uma área que o próprio poder público reconhece se tratar de terra tradicionalmente ocupada pelos índios.
O juiz cita em sua decisão o artigo 231 da Constituição, que afirma que as terras indígenas "são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis".
O artigo diz ainda que "é vedada a remoção de grupos indígenas de suas terras", a não ser que o Congresso Nacional aprove a medida.
Placas da Funai (Fundação Nacional do Índio) no local onde o porto pode futuramente ser construído informam tratar-se de área protegida, porém a terra ainda não foi oficialmente demarcada.
"A área foi delimitada em 2002, e o processo está sendo finalizado. Pode ser que a demarcação saia no Dia do Índio [19 de abril]", afirma Cristiano Hutter, chefe da Funai em Itanhaém/Peruíbe.
Os índios vivem da venda de artesanato e palmito, além de doações. Alguns trabalham na escola estadual indígena de primeira a quarta série do ensino fundamental.

Investimento
O investimento anunciado para a construção do porto de cargas pela empresa LLX -do grupo EBX, do empresário Eike Batista- é de R$ 6 bilhões.
Como comparação, o Orçamento do município de Peruíbe gira em torno de aproximadamente R$ 105 milhões.
O projeto prevê a construção de uma ilha artificial com capacidade para receber 11 navios simultaneamente.
Como a profundidade chegará a 18,5 m, navios de grande porte poderão atracar ali. Uma ponte ligará a ilha ao continente -dessa forma, afirma a empresa, a praia não será impactada negativamente.
A população, em geral, vê o porto como possibilidade de progresso e modernização.
São previstos 30 mil empregos diretos e indiretos na construção do porto e outras 5.000 vagas na operação.
Ambientalistas criticam o projeto e afirmam que a obra trará enormes prejuízos. Peruíbe conta com áreas preservadas de mata atlântica -parte da Juréia, que é uma unidade de conservação, por exemplo, fica dentro da área do município. Animais ameaçados de extinção, como o papagaio-da-cara-roxa, são vistos por ali.
As ONGs tentam chamar a atenção dos turistas para a poluição que o porto pode trazer. A ONG Mongue, de proteção ao sistema costeiro, distribuiu panfletos aos visitantes na Páscoa. "Aproveite o dia! Afinal, esta pode ser a última vez que você vem aqui", afirma o texto.

Pontos favoráveis

Trabalho
A empresa estima gerar 30 mil empregos diretos e indiretos durante a implementação do porto e 5.000 vagas na operação

Tributos
Aumento da arrecadação de impostos para Peruíbe (a prefeitura ainda não tem uma estimativa de quanto poderá arrecadar)

Profundidade
O porto terá calado com 18,5 m, o que permitirá navios de grande porte

Pontos contrários

Índios
Dentro da área escolhida para a implantação do empreendimento vivem cerca de 50 famílias indígenas que serão desalojadas se o porto for construído

Favelas
Possibilidade de favelização na região, com a migração de pessoas para trabalhar na construção

Desmatamento
O porto vai afetar a mata atlântica existente na área, onde vivem animais ameaçados de extinção, como o papagaio-da-cara-roxa

Moradores apóiam porto; ambientalistas temem danos
ONGs acreditam que empreendimento prejudicará área de conservação da Juréia
Comerciantes e prefeitura são favoráveis à construção, por conta da geração de renda e da possibilidade de elevar arrecadação

Enviada especial a Peruíbe

Um outdoor na av. Padre Anchieta anuncia: "Porto Brasil e o aniversário de Peruíbe, dois excelentes motivos para você comemorar". Pelo que se vê e se ouve na cidade, muitos moradores de Peruíbe realmente festejam a obra.
"É muito importante para a região, vai ampliar o mercado de trabalho e criar uma saída para o mundo inteiro. Se o projeto não for adiante, será muito frustrante, principalmente para a juventude", afirma o administrador de empresas José Carlos Battaglia Ribeiro, 72.
Ribeiro foi uma das cerca de 500 pessoas que estiveram na semana passada no Centro de Convenções de Peruíbe, onde ocorreria a audiência pública, para saber mais do projeto.
Cybele da Silva, que representa as ONGs do litoral sul no Consema (conselho estadual do meio ambiente), também estava na audiência e diz que os benefícios podem ser menores do que os prejuízos trazidos por um porto. Ela teme, principalmente, a degradação da área da Juréia com a implantação do empreendimento.
"A Juréia é um dos poucos lugares que ainda não foram atingidos pela devastação. Possui uma diversidade enorme de flora e fauna. Se ocorrer um vazamento de óleo de um navio, por exemplo, isso irá impactar diretamente as praias e o ecossistema marinho", diz.
Comerciantes e a própria prefeitura, no entanto, são favoráveis à construção do empreendimento -em razão da geração de renda e da possibilidade de aumentar a arrecadação de impostos do município.
A prefeita Julieta Omuro (PMDB) foi ao Rio de Janeiro discutir o projeto com Eike Batista. "Percebemos o entusiasmo dele e da equipe sobre a construção do porto", diz. Segundo ela, a prefeitura é a favor do desenvolvimento regional, mas isso não significa estar contra os índios ou a natureza. "Somos um município preservacionista."
Julieta afirma que foi discutida a questão do planejamento -para evitar, por exemplo, a favelização, com a vinda de trabalhadores para erguer o porto. "Estamos escutando vários setores, entidades, especialistas. Existem no mundo exemplos de portos que convivem muito bem com áreas de preservação, turísticas, sem provocar impactos negativos."
Ainda não há uma estimativa de quanto a administração municipal arrecadará em impostos com a concretização do porto.
Quanto à geração de empregos, a conselheira do Consema ressalta que a população se ilude com a oferta de vagas, já que muitas são para mão-de-obra especializada.
Segundo João Malavolta, dirigente da ONG Ecosurfi (Entidade Ecológica dos Surfistas), o projeto "será uma ferida na mata atlântica, no último maciço que liga a serra do Mar à praia".
Ele e outros integrantes da ONG chamavam a atenção no local onde ocorreria a audiência pública da última quarta, com nariz de palhaço e apitos.
Para a Fundação SOS Mata Atlântica, a região onde se prevê implantar o empreendimento está na área de grandes e importantes remanescentes de mata, "sendo essencial para a conservação de vegetação nativa e proteção de espécies ameaçadas de extinção".
Além disso, afirma a entidade, a obra afeta fortemente ambientes marinhos e costeiros, pescadores artesanais, comunidades indígenas e patrimônios históricos.

Comércio favorável
A Associação Comercial e Empresarial de Peruíbe está otimista com o projeto. Cerca de 320 empresários se reuniram com diretores da LLX na semana retrasada.
A diretora financeira da associação, Meyla Ibrahim, afirma que a intenção é preparar os comerciantes para participar do desenvolvimento que o porto trará. "É uma possibilidade de manter os jovens na região, de criar novas profissões. Pode haver aquecimento na construção civil e no comércio em geral. Se a implantação ocorrer de forma planejada, todos nós temos a ganhar", diz ela.
O dono da WGB Imóveis, Guilherme José Lopes Camargo, afirma que alguns proprietários têm suspendido a autorização de venda de seus terrenos em Peruíbe, esperando sua valorização. E alguns moradores da região já começaram a comprar terrenos.
O arquiteto Rubens Félix, por exemplo, adquiriu lotes numa área vizinha ao terreno onde pode ser criado o porto. "Comprei uma área por R$ 20 mil e agora já está o dobro." (Afra Balazina)

Empresa diz que propôs realocar índios em fazenda de Itanhaém

Enviada especial a Peruíbe

O diretor de desenvolvimento da LLX, José Salomão Fadlalah, afirma que a empresa propôs aos índios realocá-los numa fazenda em Itanhaém, cidade vizinha a Peruíbe.
"A área em que eles estão não é indígena, não está demarcada. Hoje eles não têm nem sequer água potável no local. Oferecemos uma fazenda com mata, dois rios, cachoeira e possibilidade de caça", diz o diretor.
Ainda segundo ele, a fazenda já tem 100 mil pés de palmito plantados, além de serralheria e marcenaria. "Não gostaríamos de dar salário, mas de fazer um plano para que eles consigam se manter com a estrutura oferecida", diz.
A aldeia está dividida com a proposta. Doze famílias afirmam que aguardam a demarcação da terra e que não vão negociar de forma nenhuma com a LLX. "Estamos batalhando para demarcar [a área]", diz o cacique Aua-dju, 48, mais conhecido como Pitotó.
Segundo ele, se não sair a demarcação, a negociação será com a Funai (Fundação Nacional do Índio), e não com a empresa. "Eu não nasci aqui, nasci na aldeia Bananal, também em Peruíbe. Mas essa é uma área tradicional dos índios. Uma índia vive aqui há 60 anos. E sempre usamos a área para trânsito e coleta de maracujá, caju. Também há cemitérios indígenas na terra", afirma o cacique.
O pajé Guaíra também teme perder a posse da área. "Se não lutarmos pela terra, o que nossos filhos e netos vão pensar?" Ele lamenta a divisão da aldeia por conta do empreendimento. "Somos um grupo só."
Outra parte da tribo, entretanto, admite que tenta negociar com a empresa. Eles afirmam que a LLX ainda não lhes deu nada e que a negociação está estagnada no momento.
"Eles não cumpriram nada até agora", afirma Fabíola dos Santos Cirino, 25, vice-diretora da escola estadual indígena.
A professora de pré-escola Lilian Gomes, 42, afirma que os índios acham difícil vencer uma empresa tão poderosa e rica e que aceitaram negociar para não "sair sem nada" caso tenham de deixar a terra.
"Eles ofereceram uma fazenda com escola, posto de saúde e uma compensação financeira. Mas a fazenda não tinha casas suficientes para todos", diz ela.
A reportagem questionou de quanto seria a "compensação financeira", mas as índias disseram que o valor não chegou a ser determinado.
Após conversar com a Folha, a professora saiu com sua turma de alunos, de três a seis anos, para um passeio numa trilha de mata em direção à praia. Os estudantes se integram naturalmente ao ambiente -pisam em poças, sobem em galhos, rolam na grama e fazem estrelas e cambalhotas na areia. "As crianças adoram pegar abricó nas árvores", conta. Uma das alunas explica à reportagem que a semente da fruta serve para fazer brincos e colares. Já na praia, os estudantes brincam de roda e cantam "se eu fosse um peixinho e soubesse nadar..."

Empreendimento custará R$ 6 bilhões e terá ilha artificial
Proximidade do porto de Santos traz oferta de mão-de-obra; malha ferroviária e rodovias facilitam acesso de cargas
Com 18,5 m de profundidade no local, ilha artificial pode comportar navios de grande porte; em Santos, atracam apenas os de médio porte

Enviada especial a Peruíbe

Peruíbe foi escolhida pela empresa LLX para receber o porto de R$ 6 bilhões por sua localização e estrutura de acesso. "Vamos construir o porto no Estado de São Paulo, no coração do país. Nós encontramos em Peruíbe uma área com dimensões adequadas para receber um empreendimento desse porte", afirma o diretor de desenvolvimento da empresa, José Salomão Fadlalah.
O fato de estar localizado a 70 km do porto de Santos é um facilitador, segundo a LLX. "Podemos usar mão-de-obra, como despachantes, que está acostumada a fazer esse tipo de trabalho na Baixada Santista", diz o diretor.
Para transportar as cargas que serão movimentadas no porto devem ser usados a malha ferroviária (hoje a linha férrea que passa no terreno está desativada) e o acesso rodoviário pela rodovia Padre Manoel da Nóbrega.
O plano de trabalho da empresa prevê a criação de uma ilha artificial a 3 km da praia -dessa forma, a profundidade no local deve chegar a 18,5 m e será possível a atracação de navios de grande porte. Santos, por exemplo, recebe hoje navios de porte médio.
Haverá espaço para abrigar 11 navios ao mesmo tempo. A ilha e os pontos de atracação serão protegidos das ondas por quebra-mares -que podem alterar o ambiente local. A ilha será ligada ao continente por uma ponte, o que permitirá o acesso da carga por caminhões e esteiras transportadoras.
Para conseguir efetivamente implantar o empreendimento, a empresa precisará, primeiro, fazer um Eia-Rima (estudo e relatório de impacto ambiental), o que deve levar dez meses. Se o Eia-Rima for aprovado pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente, a construção do complexo portuário levará três anos para ser concluída.
De acordo com o engenheiro João Acácio Gomes de Oliveira Neto, presidente da DTA Engenharia, responsável pela elaboração do estudo de impacto ambiental, o cancelamento da audiência pública deve atrasar o processo.
"Não consigo entender por que foi suspensa a audiência, que é um instrumento democrático e legítimo. Mas trabalho em projetos de dezenas de portos no país e acredito que o Porto Brasil seja possível de concretizar", afirmou.
A empresa LLX não encara o porto de Santos, hoje o principal do país, como um concorrente. "É como comparar os aeroportos de Congonhas e Guarulhos [o primeiro na capital paulista, e o segundo, na Grande SP], que têm uma complementaridade. O porto de Santos continuará sendo muito importante", diz Fadlalah.
De acordo com a Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), Santos atualmente é o porto brasileiro que movimenta o maior valor. Já o porto de Tubarão (ES) é o que movimenta a maior carga, com destaque para o minério de ferro.
O ministro Pedro Brito do Nascimento, da Secretaria Especial de Portos, disse à Folha que ainda não recebeu formalmente o projeto do Porto Brasil, mas que conhece a idéia do complexo portuário para Peruíbe. "É claro que vamos analisar toda iniciativa privada com muita atenção."
Ele afirmou, entretanto, que têm sido feitos investimentos no porto de Santos que permitirão o aumento de sua capacidade. Segundo ele, foi contratado com recursos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), de R$ 1,3 milhão, um estudo para a ampliação.
O ministro diz ainda que há um programa de dragagem para aprofundar o canal -hoje com cerca de 13 m- para 15 m. Dessa forma, Santos também poderá receber navios de grande porte. De acordo com a Codesp (estatal que administra o porto de Santos), há obras de construção de duas avenidas perimetrais para melhorar o acesso ao porto. O objetivo das obras é duplicar a capacidade do local, que hoje opera cargas que representam 26% da balança comercial do país.
(Afra Balazina)

Apesar de complexo, projeto é viável, diz professor da Poli

Enviada especial a Peruíbe

Rui Botter, professor de logística e transporte da Escola Politécnica da USP, acredita que o projeto de porto para Peruíbe seja viável, apesar de complexo.
"O litoral paulista poderia abrigar mais terminais, e hoje estamos restritos a Santos e São Sebastião", diz.
Botter afirma que o litoral norte é mais protegido ambientalmente e, por isso, apresentaria mais restrições à construção de um porto, enquanto Cananéia, por exemplo, tem profundidade muito pequena para receber os navios.
Em sua opinião, o porto de Santos opera bem, mas já existe um nível de ocupação muito alto no local.
O professor acredita que o impacto à praia será pequeno em Peruíbe, uma vez que o plano da empresa LLX é fazer a ligação da ilha artificial com o continente por meio de uma ponte. "A água passa por baixo dos pilares", afirma.
"É factível, um terminal que pode ser feito. Vai gastar muito dinheiro, mas é uma questão de fazer análise de risco de importação e exportação." Para o especialista, o maior desafio será o acesso terrestre ao porto -já que a ferrovia está desativada. "Deve ocorrer um impacto viário grande na região."

FSP, 30/03/2008, Cotidiano, p. C1, C10-C11

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