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Índios contra 'nova Belo Monte'

FSP, Mercado, p. A20
Autor: LEITE, Marcelo
03 de Jul de 2016

Índios contra 'nova Belo Monte'

Marcelo leite

Num barranco do rio Tapajós, a menos de 30 km de onde será construída a usina hidrelétrica de São Luiz, o "capitão" Juarez Munduruku, da aldeia Sawré Muybu, ajeita os colares de contas atravessados no peito. Começa a discursar: "Bom dia a todos e todas".
Está rodeado de outros mundurucus, nome dado pelos antigos inimigos parintintins e que significa "formigas de fogo". Há alguns "pariwat" (brancos), reunidos para a fixação de mais uma placa delimitadora da terra indígena que leva o nome da aldeia.
"Sawe!", gritam todos e todas em volta, na saudação tradicional. Ainda não oficializados pela União, os 1.780 km² da Sawré Muybu -quase 20% maior que o município de São Paulo- são habitados por 132 indígenas.
Fornecida pela ONG Greenpeace, a placa imita as que o governo federal usa para demarcar terras indígenas homologadas, mas não tem o logotipo da Funai. Na árvore ao lado, uma tábua mais simples colocada há dois anos pede respeito à "terra-mãe".
O bom guerreiro se distingue pela escolha das armas e pela destreza em seu uso. O líder Juarez faz jus à fama militar dos mundurucus e recorre ao que os brancos gostam de ouvir: "todos e todas". Afinal a guerra, agora, é de palavras, como gostam de dizer.
"Se for acontecer mesmo [a usina], vamos invadir. Todo o mundo já se comprometeu", havia dito Juarez um dia antes, num barracão erguido pela ONG na aldeia. "Vamos botar 500 guerreiros lá."
Os mundurucus não confiam na palavra dos caciques de Brasília. Recebidos na capital depois de invadirem a obra de Belo Monte, quase 500 km a nordeste, ouviram de Gilberto Carvalho (PT), então ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, em 2013, que o Planalto podia dialogar, mas não abria mão de São Luiz do Tapajós.
O capitão-geral dos 12 mil mundurucus, Arnaldo Kabá, retrucou que os índios não abriam mão de seu rio sagrado. Juarez corrobora: "Tem de me matar primeiro. Pelas minhas pernas, é difícil [sair]".

NOVA BELO MONTE
A UHE São Luiz é a bola da vez no portfólio de expansão do setor elétrico. Terá 8.040 megawatts (MW) de capacidade e deverá gerar em média pouco mais de 4.000 MW, o que daria para abastecer uma metrópole de pelo menos 8,5 milhões de pessoas.
Em conjunto com Belo Monte (11.233 MW), que também fica no Pará, São Luiz responderá por 68% da ampliação, até 2024, da capacidade de geração hidrelétrica.
Essa fonte renovável, mas combatida por ambientalistas e índios, passará de 90.000 MW para 117.000 MW.
Na região Norte (leia-se: Amazônia), ficam os últimos grandes rios brasileiros com potencial hidrelétrico não aproveitado. Ela aumentaria de 14% da capacidade instalada para 23%.
O Brasil todo, segundo projeções da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), precisará dispor de 206.000 MW. Hoje, são 144.650 MW.
Do ponto de vista da energia firme -aquela com que a rede de distribuição pode contar-, São Luiz não difere tanto de Belo Monte. A usina do Tapajós, mais eficiente, está cotada para gerar 4.012 MW, ante 4.571 MW da controversa congênere no Xingu.
Em contrapartida, vai alagar 40% mais floresta amazônica. E isso numa região mais preservada que o entorno da cidade de Altamira, em cuja vizinhança -cortada pela rodovia Transamazônica- se ergue Belo Monte.
Em abril, o Ibama suspendeu o licenciamento da usina baseado em pareceres da Funai, que apontam impactos "irreversíveis".

UNIÃO E FORÇA
Enquanto a Volta Grande do Xingu é cercada por mais de uma dezena de povos e terras indígenas, o Médio Tapajós é dominado pelos mundurucus. Nos séculos 17 e 18, com guerras de conquista, controlavam boa parte do território entre os rios Madeira e Xingu, afluentes do Amazonas a oeste e a leste do Tapajós.
"É diferente do que o governo enfrentou em Belo Monte", diz Danicley de Aguiar, engenheiro florestal destacado pelo Greenpeace para atuar na Sawré Muybu. "Eles têm união. Não se dividem facilmente", afirma.
"Será difícil o governo prosseguir com o plano da usina", prognostica, esperançoso, Paulo Adario, estrategista sênior de florestas da ONG. Imerso na vanguarda da luta mundurucu, Aguiar soa mais desafiador: "Duvido que o governo construa".
A Sawré Muybu parece mesmo oferecer obstáculo bem mais sério para a usina do que as áreas dos jurunas e araras criaram para Belo Monte. A Volta Grande do Xingu vai ter sua vazão diminuída, sem inundar diretamente terras indígenas, ao passo que as dos mundurucus perderão 7% para o lago.
Será imperativo remover algumas aldeias, como Dace Watpu. Ela fica logo abaixo de Sawré Muybu (esta aldeia está no alto de um barranco de 50 m de altura e não será alagada, só ilhada).
A Constituição diz que "é vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, 'ad referendum' do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do país, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco".
Foi o que bastou para travar o processo de demarcação da terra indígena. Embora já estivesse pronto havia dois anos o parecer da Funai ("relatório circunstanciado de identificação e delimitação", no jargão indigenista), de autoria da antropóloga Bruna Cerqueira Sigmaringa Seixas, ele ficou na gaveta.
Só em 19 de abril -dois dias após a abertura do processo de impeachment ser aprovada na Câmara- a presidente Dilma Rousseff (PT) publicou o relatório no "Diário Oficial da União". Correm agora os 90 dias de prazo para contestações.
Por conta própria, os mundurucus já iniciaram o que chamam de "autodemarcação". Colocam as placas copiadas da Funai na expectativa de afastar madeireiros, garimpeiros e palmiteiros que invadem o território pelo sul.

PASSAGEM DOS PORCOS
Quando dizem que o Tapajós é sagrado, os mundurucus estão falando sério. Ele é o fio condutor da epopeia de Karosakaybu, o criador de todas as coisas -inclusive do Tapajós, a partir de caroços de tucumã, e das mulheres, a partir de peixes.
Uma vara de porcos selvagens (queixadas) roubara seu filho, e Karosakaybu os perseguia. Para conseguir atravessar o rio, que chega a ter vários quilômetros de largura, os animais laçaram a outra margem -"a floresta era mole", diz Juarez- e puxaram.
Formou-se assim o "fecho", ou passagem dos porcos, ponto em que o Tapajós se afunila para pouco mais de 400 m de largura e que também será engolido.
Os pedrais e cachoeiras são igualmente sagrados, além de locais em que os índios pescam peixes cascudos (bodós). Eles serão inundados, assim como as florestas aluviais, que perderão o pulso de cheia e seca na origem da alta produtividade biológica.
As placas podem ser de mentira, e a floresta, mole, mas os mundurucus não são.
Na guerra contra as obras faraônicas dos "pariwat", estão dispostos até a pôr as bordunas de lado e lançar mão da letra da lei dos brancos para tentar ganhar essa batalha. Para eles, palavras têm valor de vida e de morte.

Para defensores, usina é mais barata e confiável

O Ministério de Minas e Energia disse, em nota, que as hidrelétricas são importantes para o crescimento do país "com nossa geografia favorável à geração desse tipo de energia, que ainda é a mais barata disponível".
Segundo a nota, os "empreendimentos hidrelétricos modernos têm como característica o respeito ao ambiente e às populações locais" e o governo "está permanentemente aberto ao diálogo com as comunidades".
PRÓ-HIDRELÉTRICA
Defensores do projeto dizem que o país não pode abrir mão de uma fonte de energia renovável e barata.
Para Adriano Pires, diretor da consultoria Centro Brasileiro de Infraestrutura, o país não pode "se dar ao luxo" de não construir Tapajós e as questões ambientais e indígenas devem ser "equacionadas", mas não podem impedir a realização da obra.
"O Brasil vive nos últimos anos o que chamo de 'ciclotimia', em que ora falta, ora sobra energia. Não podemos viver assim, senão a energia será sempre um problema."
O especialista defende que São Luiz do Tapajós vai fornecer energia limpa, renovável e barata necessária para sustentar a retomada do crescimento econômico.
Esses dados têm de entrar na conta na hora da avaliação do impacto ambiental da construção, afirma Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"Você tem que fazer uma análise comparativa com outras fontes antes de dizer não", afirma.
Para ele, usinas hidrelétricas são a melhor opção tanto em termos econômicos quanto do ponto de vista de operação, já que não sofrem da intermitência que caracteriza a eólica, por exemplo, que depende de ventos.
Atualmente, um grupo formado por Eletrobras, Eletronorte, GDF Suez, EDF, Neoenergia, Camargo Corrêa, Endesa Brasil, Cemig e Copel elabora estudos sobre o aproveitamento hidroelétrico da bacia do Tapajós, o que indica potencial interesse na obra.
Castro, da UFRJ, inclui ainda empreiteiras entre as interessadas no projeto.
CRÍTICAS
Os contrários à construção da usina dizem que a era de grandes empreendimentos centralizados, nos moldes de Belo Monte, acabou.
"Em razão da crise, o Brasil não tem demanda de energia para essa usina no curto e médio prazos", afirma Célio Bermann, coordenador da pós-graduação em energia da USP e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético.
A oferta deve começar a ser pressionada apenas no longo prazo, o que permite ao país planejar formas alternativas de geração de energia, defende Bermann.

SAIBA MAIS

Localização
- A usina hidrelétrica São Luiz dos Tapajós está localizada no rio Tapajós, a cerca de 300 km da sua foz no rio Amazonas, no Pará
- Abrange áreas pertencentes aos municípios Itaituba e Trairão, localizados no oeste do Estado
- A barragem está próxima à Vila Pimentel, situada na margem direita do rio Tapajós
Importância
- É a maior hidrelétrica em projeto no país
Situação do projeto
- Em abril, o Ibama suspendeu o licenciamento, baseado em pareceres da Funai, que apontam impactos "irreversíveis"
- Segundo o órgão indígena, para construir a usina seria necessário remanejar os índios que vivem na região, o que não é permitido pela Constituição
- O governo anunciou que pretende licitar o projeto ainda neste ano

Os jornalistas LALO DE ALMEIDA e MARCELO LEITE fizeram o trecho de Alta Floresta (MT) e Itaituba (PA) à Terra Indígena Sawré Muybu a convite do Greenpeace.

Para Ministério do Meio Ambiente, energia eólica seria opção a usina
Parque eólico Taiba no município brasileiro de São Gonçalo do Amarante, no estado do Ceará

O ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho (PV), considera dispensável a energia da hidrelétrica São Luiz do Tapajós.
A seu pedido, técnicos do ministério buscam alternativas para propor ao presidente interino, Michel Temer (PMDB), com destaque para a geração eólica.
"A combinação de fontes renováveis e limpas como eólica, solar e de biomassa desponta como a chave para o atendimento da demanda prevista com menor potencial de impacto negativo", informa nota do ministério.
Zequinha Sarney, como é conhecido, se diz "contrário a qualquer projeto que não garanta o efetivo equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e social com a manutenção ou melhoria da qualidade ambiental".
PARALISAÇÃO
O ministro se refere à paralisação do licenciamento ambiental da usina no Tapajós pelo Ibama, órgão da pasta, em 19 de abril deste ano. O processo se iniciara dois anos atrás, com a entrega do estudo e do relatório de impacto ambiental (EIA/Rima) do empreendimento planejado pela Eletrobras.
Pelo planejamento, São Luiz deveria entrar em operação em 2021.O Ibama levantou vários questionamentos ao EIA/Rima em março de 2015, mas ainda não recebeu todas as informações pedidas.
Em 26 de fevereiro passado, a Funai enviou ao Ibama parecer técnico afirmando a inviabilidade do projeto do ponto de vista indígena. Com base nessa avaliação, o licenciamento foi suspenso. O cerne da objeção está no alagamento de terras indígenas, algo que é vedado pelo parágrafo 5o do artigo 231 da Constituição.
Até então, sob pressão do setor elétrico no governo Dilma Rousseff (PT), a Funai vinha procrastinando o reconhecimento da Terra Indígena Sawré Muybu, a mais próxima da barragem projetada.O relatório de identificação dos 1.780 km² da área já estava pronto.
É um passo decisivo no processo, seguido da demarcação e da homologação, mas o documento só foi publicado no mesmo 19 de abril em que o Ibama paralisou o licenciamento da usina -dois dias depois da votação do impeachment da presidente Dilma na Câmara.
IMPACTO AMBIENTAL
Os índios mundurucus se queixam de que o estudo e o relatório de impacto ambiental de São Luiz foram feitos sem ouvi-los, como manda a legislação brasileira. Mas não deixam margem para dúvida: a única resposta que pretendem dar é "não".
Contam com o apoio de ONGs como o Greenpeace e o Cimi (Conselho Indigenista Missionário, da Igreja Católica), assim como o Ministério Público Federal, para barrar o processo de licenciamento. Agora, com a quase oficialização da terra indígena Sawré Muybu, ganham substancial vantagem jurídica em eventual processo no Supremo Tribunal Federal.

FSP, 03/07/2016, Mercado, p. A20

http://temas.folha.uol.com.br/indios-contra-usina-do-tapajos/indios-con…

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