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Geometria também é programa de índio

FSP, Ciência, p.A12
Autor: CASTRO, Eduardo Viveiros de; LEITE, Marcelo
20 de Jan de 2006

Geometria também é programa de índio
Testes com mundurucus em comparação com americanos sugerem caráter universal de intuições espaciais

Marcelo Leite
Colunista da Folha

Não é de hoje que a ciência ocidental tenta responder se habilidades matemáticas são uma característica universal da humanidade ou culturalmente determinadas. E tampouco é inédito o recurso a povos "primitivos" em busca de luz sobre a questão, como fizeram agora pesquisadores americanos e franceses com índios mundurucus, do Pará. O resultado não chega a surpreender: indígenas nascem com o mesmo programa cerebral submetido a tortura nas aulas de geometria ocidentais.
Pode parecer óbvio, mas foi consagrado como pesquisa original pelo periódico "Science" (www.sciencemag.org) na sua edição de hoje. Pela segunda vez, aliás. O grupo de Stanislas Dehaene, do Collège de France, agora com a colaboração de Elizabeth Spelke, da Universidade Harvard, já havia publicado na revista, em outubro de 2004, estudo similar sobre as limitações da língua mundurucu (do tronco tupi) na realização de operações aritméticas precisas.
Desta vez Dehaene deixou de lado a linguagem. Um total de 44 mundurucus de 5 a 83 anos foi submetido a uma bateria de testes silenciosos, apresentados na tela de um computador portátil. Cada teste se compunha de seis retângulos contendo figuras geométricas, entre as quais o índio tinha de apontar aquela que destoava.
Só nove entre os participantes falavam português, ou tinham passado por uma escola. Mesmo assim, saíram-se bem nas charadas, cuja solução exigia, segundo os autores, a mobilização de intuições geométricas como ângulos, simetria e eqüidistância. Acertaram as respostas em 66,8% dos casos, bem acima do que seria provável (16,6%) se estivessem tentando adivinhar as figuras.
Para tentar avaliar a influência da cultura sobre o desempenho, porém, os pesquisadores precisavam de um termo de comparação. Foram buscá-lo em crianças e adultos americanos, um grupo de 54 moradores da região de Boston (6 a 49 anos). Entre as crianças das duas culturas não se observou diferença significativa no desempenho. Já entre adultos, os americanos se saíram bem melhor, obviamente um fruto de seu treinamento escolar.
"Em resumo, adultos não-escolarizados de uma cultura isolada, assim como crianças pequenas da mesma cultura ou de uma cultura ocidental, exibem uma competência partilhada para conceitos geométricos básicos", concluem os autores do estudo.

Pensamento selvagem
Há problemas com esse teorema, no entanto. Em primeiro lugar, os mundurucus não são tão isolados assim. Segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional, essa nação tem pelo menos 250 anos de contatos com brancos. "Estiveram entre os personagens principais da Cabanagem [revolta popular que sacudiu Belém do Pará em 1835-1840]. Além disso, há vários mundurucus de nível universitário", ressalva.
Dehaene afirma que seu artigo não leva o leitor a concluir que os mundurucus estejam excluídos de contato com ocidentais. "O termo "isolado" é usado como um rótulo geográfico. Com efeito, somos muito explícitos sobre o nível de bilingüismo, a presença de alguma escolaridade e a alta variabilidade nessa população", afirmou, em entrevista por e-mail. "Sem enfatizar demais o isolamento cultural dos mundurucus, certamente não é um grupo inapropriado para testar a presença de intuições centrais na ausência de certa escolaridade, artefatos culturais ou um léxico amplo de termos geométricos."
Selvagens quem, cara-pálida?
Por outro lado, espantoso mesmo seria se os mundurucus não conseguissem ir pelo menos tão bem quanto crianças americanas nos testes. Ainda que apenas formalmente, o estudo pressupõe que se trate de seres inferiores, mais próximos da natureza biológica da espécie, "primitivos".
"Toda vez que alguém sai para checar uma "hipótese" sobre a universalidade de algum traço, componente, dispositivo ou sei lá mais que cognitivo entre os índios, eu me pergunto: mas alguém duvidava que os índios pensassem tão bem (ou mal) quanto "nós"?" -questiona Viveiros de Castro, autor do livro "A Inconstância da Alma Selvagem" (Cosac & Naify).
Dehaene esclarece: "Nunca estive em dúvida". Outros estudos com crianças no laboratório da colaboradora Spelke, afirma, apontam na mesma direção de um conhecimento universal básico. "Por mais limitado ou "óbvio" que seja nosso trabalho, tem o mérito de raspar a superfície das diferenças culturais e procurar padrões universais."
Um, dois, muitos
Apesar disso, Viveiros de Castro e Dehaene observam que há cientistas pesquisando exatamente o oposto. O brasileiro cita um artigo de Daniel Everett, da Universidade de Manchester (Reino Unido), publicado no segundo semestre de 2005 pelo periódico "Current Anthropology". O francês, um de Peter Gordon publicado também na "Science" e também sobre os pirahãs, em outubro de 2004.
Segundo Everett, a ausência de palavras designando números na língua (da família Mura) desses outros índios brasileiros -do Amazonas- e sua conseqüente incapacidade de contar são resultado justamente de aspectos peculiares de sua cultura. Entre eles, toda comunicação se refere, por definição, à experiência imediata dos interlocutores. Não há espaço para abstrações, como números.
Dito de outro modo, o caso excepcional dos pirahãs, em contraste com o dos mundurucus, apontaria na direção inversa: não existem universais matemático-cognitivos na espécie, uma vez que o domínio por excelência da particularidade -a cultura- pode impedir a sua emergência.
Em suma: há programas para todos os gostos.

FSP, 20/01/2006, Ciência, p. A12.

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