FSP, Brasil, p. A7
Autor: LEROY, Jean Pierre
21 de Fev de 2005
Estado de Direito na Amazônia requer dinheiro, diz pesquisador
Relator nacional para o direito humano ao ambiente teme que falta de recursos e elite impeçam implantação das medidas do governo
Entrevista da 2ª - Jean Pierre Leroy
Claudia Antunes
Da sucursal do Rio
"Se quisermos implantar o Estado de Direito na Amazônia, é preciso dinheiro." A advertência é dada pelo pesquisador Jean-Pierre Leroy, francês naturalizado brasileiro que acompanha há mais de 30 anos o processo de ocupação da floresta e de disputa pela terra no Pará.
Ontem, reportagem da Folha informou que o governo federal não usou em 2004 nem a metade do valor autorizado no Orçamento para o programa Paz no Campo, do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Como relator nacional para o direito humano ao ambiente, a primeira escala de Leroy foi no Pará, onde esteve em 2003 com a irmã Dorothy Stang e com participantes dos PDS (Projetos de Desenvolvimento Sustentável) de Anapu e cidades vizinhas.
Seu "Relatório da Missão ao Pará", enviado na época a autoridades federais e estaduais, advertia para o aumento da violência e para as ações de grileiros e madeireiros contra pequenos agricultores.
Em junho do ano passado, Leroy enviou uma carta à Secretaria Especial de Direitos Humanos em que reforçava as denúncias do relatório e pedia providências. Nada foi feito. Mesmo assim, ele espera que as medidas adotadas pelo governo federal depois do assassinato da irmã Dorothy, há dez dias, possam ter algum efeito.
Ele avalia, porém, que a implantação das áreas de proteção ambiental criadas no decreto da última quinta-feira e a demarcação definitiva dos PDS não ocorrerão sem mais recursos para o Ibama e o Incra e sem uma presença permanente da Polícia Federal.
Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha, na qual historia as disputas agrárias no Pará desde a construção da rodovia Transamazônica, nos anos 70.
Folha - Gostaria que o senhor descrevesse o processo de ocupação de terra no Pará e a origem das pessoas que disputam a região de Anapu: grileiros, fazendeiros...
Jean-Pierre Leroy - Essa história começa no início dos anos 70, com a construção da Transamazônica. Diferentemente do que foi feito em outros municípios da região, a área de Anapu não foi loteada para o pequeno produtor porque o governo pretendia implantar grandes fazendas de 3.000 hectares. Essas glebas foram licitadas e produtores se candidataram aos chamados Contratos de Alienação de Terras Públicas.
Os produtores deveriam apresentar um plano de trabalho a ser executado em cinco anos, ao fim dos quais a terra passaria a ser propriedade deles. Só que a maioria das glebas ficou desocupada, e os planos não foram realizados.
Essas terras deveriam voltar automaticamente ao patrimônio da União. Com a inoperância do poder público, o Estado não conseguiu arrecadá-las de volta. Ficou uma confusão legal que é uma das origens dos conflitos na região.
Folha - Quando chegou a população atual?
Leroy - Nos anos 70, nas áreas em que houve distribuição de lotes, chegaram colonos de várias regiões do país, principalmente gaúchos, como eram chamados todos os do Sul. Depois vieram pessoas para ocupar o fundo desses lotes, 30, 40 quilômetros floresta adentro, principalmente maranhenses. Esse tipo de pequeno produtor é meio nômade, sempre vai à frente porque atrás dele vem o fazendeiro, o grileiro.Em Anapu, todos chegaram após a primeira onda de colonização, há 20 anos no máximo. Muitos vieram do sul do Pará, a maioria estava sem terra e veio na esperança de conseguir um lote.
Folha - Eles conseguiram a propriedade da terra?
Leroy - Não, são posseiros. Uma pequena minoria conseguiu títulos ao longo da Transamazônica, mas todos os que são clientes dos PDS, os Projetos de Desenvolvimento Sustentável, não. No sul do Pará, quando terminou a primeira fase do desbravamento, e, em geral, quem desbrava são os posseiros, imediatamente a posse foi comprada por fazendeiros. Muitos posseiros que não quiseram vender foram ameaçados e tiveram de sair. São essas famílias que chegam a Anapu e se candidatam aos assentamentos.
Folha - Famílias expulsas por grileiros?
Leroy - Expulsas pela força ou pressionadas. Outras saíram porque acharam que a terra não valia mais nada. Por que em Anapu foi criado um núcleo de resistência? Normalmente, o grileiro chega, ocupa a terra e não se fala mais no assunto. Mas em Anapu havia um núcleo animado pela irmã Dorothy, tinha um projeto de extrativismo, de agricultura ecológica.
Lá também existe uma tradição de organização de trabalhadores rurais, o Movimento de Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu [MDTX], com sede em Altamira e ramificações em outros municípios, Anapu inclusive. Além disso, há a idéia de sair da condição de nômade. E de ficar não mais como um colono tradicional, com um lote e uma agricultura de subsistência, que eram um fracasso, mas com outro projeto.
Essa proposta de desenvolvimento sustentável foi muito influenciada por outra categoria, mais presente nas áreas próximas aos rios, que é a população tradicional, cabocla, que sempre combinou produção de subsistência com extrativismo. Essa população teve um papel importante para mostrar que era possível explorar a floresta de outra maneira.
Folha - E quem são os que disputam as terras de posseiros em Anapu?
Leroy - Uma parte dos grileiros tem a mesma trajetória dos posseiros, é de origem rural. Antes tomaram terras no Maranhão, no sul do Pará, em Mato Grosso e no Tocantins. Geralmente eles ocupam a terra, conseguem uma legalização no cartório, desmatam, vendem e seguem adiante. Não têm interesse em cultivar. No melhor dos casos, podemos dizer que são comerciantes de terras. Mas, como o comércio legal de terras é quase impossível na Amazônia, então é o banditismo.
Essas pessoas não são como um grande fazendeiro paulista, mas são muito úteis a quem vem depois. Elas facilitam as coisas, de modo que o fazendeiro possa comprar a terra e mostrar um documento.
Folha - Como o grileiro "legaliza" a terra?
Leroy - Muitas vezes ele consegue pegar um título qualquer, ou pega a posse de um posseiro, compra outra a dez quilômetros e declara que tudo é dele. Há casos em que fazendeiros compram um Contrato de Alienação de Terras Públicas. A própria Sudam [Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia] deu dinheiro para projetos em terras não-regularizadas.
Folha - Os posseiros de Anapu têm ligação com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)?Leroy - Não. Os colonos de Anapu têm seus sindicatos de trabalhadores rurais e estão também no MDTX. Na fundação do MST, em 1985, havia um representante de um sindicato rural do Norte. Ele considerou que na região o MST não era necessário porque lá o posseiro ocupava a terra. Com o tempo, o MST chegou a Mato Grosso, ao Tocantins, ao sul do Pará e parte do Maranhão. Mas não ao norte da Amazônia, na região dos PDS.
Folha - Como funcionam esses Projetos de Desenvolvimento Sustentável?
Leroy - A categoria Projeto de Desenvolvimento Sustentável foi criada pelo Incra nos anos 90 como um empreendimento coletivo no qual cada um teria um lote, mas com uma lógica de produção comum. Quando isso foi anunciado, grileiros entraram reivindicando as terras daquelas antigas glebas da União e começaram as pressões.
Paradoxalmente, a presença dos posseiros, candidatos a esses projetos, chegou a ser usada pela procuradoria-geral do Incra no governo passado para não fazer vistorias nas terras, com base na lei que havia sido feita contra o MST e que proibia a vistoria de áreas invadidas. Com isso, os PDS não avançaram. Os clientes dos projetos chegaram a entrar em alguns lotes, mas tiveram casas queimadas e sofreram ameaças.
Folha - As medidas adotadas pelo governo nesta semana vão resolver a situação?Leroy - Eu tenho, pela primeira vez, uma certa esperança. Depois que fizemos o relatório [sobre a situação social e ambiental do Pará], em 2003, depois que a Dorothy denunciou em audiência pública a situação em Anapu, a ministra do Meio Ambiente ficou sensibilizada. Ela chegou a me alcançar por telefone em Québec, pedindo que eu telefonasse ao ministro do Justiça porque ela lhe havia entregue o relatório e ele faria uma viagem ao Pará. Não consegui falar com o ministro.
Em seguida, chamamos por duas vezes a Polícia Federal, e ela não foi: faltou gasolina, dinheiro, diária. Quando foi, a missão era prender os grileiros que receberam dinheiro da Sudam. Ótimo, mas isso não resolveu o problema da violência. Há no Pará uma disputa entre a Polícia Federal e a estadual, entre o Ministério Público Federal e o Estadual.
Desta vez, houve uma mobilização maior. Os ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrários, sozinhos, não têm força nenhuma. Nem recursos humanos e financeiros. A Polícia Federal não tem presença física permanente. Agora juntaram-se outros ministérios, além da Casa Civil e da Presidência.
Folha - Essa determinação vai persistir ou só dura enquanto durar o impacto da morte da irmã Dorothy?Leroy - Eu acredito na boa vontade pessoal do presidente, pelas medidas que tomou. Mas tenho dúvidas de que isso seja um sinal duradouro. Primeiro, o Congresso parece ir na direção do conservadorismo. Segundo, há uma grita para que o Estado gaste menos. Tudo bem que não se desperdicem os recursos públicos, mas, se queremos realmente instaurar o Estado de Direito na Amazônia, é preciso dinheiro. De um lado, a sociedade aprova as operações da PF que desmantelam cartéis de colarinho branco. Do outro, nega recursos à própria PF, ao Incra, ao Ibama, à Funai.
Folha - E isso vai mudar?
Leroy - Não sei, mas pelo menos o governo não ficou em cima do muro. Com as medidas, poderemos cobrar. Para implementar projetos sustentáveis e reservas extrativistas será necessária uma ação contínua com as populações.
Pela minha experiência, são necessários de sete a dez anos de assistência para viabilizar esses projetos. Sem isso, não será possível criar as condições para que essas pessoas possam se fixar e dinamizar sua participação na economia.
Folha - Muitos prefeitos e políticos do Pará apóiam madeireiros e fazendeiros. Isso pode impedir a implantação das medidas do governo federal?
Leroy - O governador [paraense] Simão Jatene aceitou as medidas do governo, mas a primeira declaração que vi dele na TV foi de que seria feito um desarmamento geral no Estado. Ora, quando se fala em desarmamento nessa região significa desarmar o posseiro. O resto continua na mesma.
Dizem que, se Dorothy fosse brasileira, não haveria essa grita. É possível, porque há três anos foi assassinado o Ademir Alfeu Federicci, que era presidente do MDTX, e foi uma comoção para todos os que o conheciam. Mas a notícia não foi além do círculo mais próximo. A Dorothy era mais conhecida porque ela ia a Brasília, falava publicamente. No Brasil, infelizmente é assim.
FSP, 21/02/2005, Brasil, p. A7
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