FSP, Mais, p. 9
Autor: LEITE, Marcelo
11 de Jun de 2006
Enfim, BR-163
Bastou o anúncio da intenção de asfaltar a estrada de chão aberta na década de 1970 para desencadear um processo intenso de grilagem e desmatamento
Marcelo Leite
Uma das mais arrastadas novelas ambientais da Amazônia brasileira parece ter chegado a um final razoavelmente feliz cinco dias atrás, com a conclusão do licenciamento para asfaltar a estrada BR-163, a Cuiabá-Santarém. Assim como madeireiros, sojicultores e agricultores do local, o presidente Lula comemorou, de olho em centenas de milhares de votos amazônicos. Há razão também para o país todo comemorar, com alguma cautela.
Não pelo asfalto em si, que deve levar alguns anos ainda para cobrir os cerca de 900 quilômetros a pavimentar na maior porção de floresta intacta que sobrava no sul do Pará, a um custo de R$ 1,1 bilhão. A história mostra que estradas pavimentadas induzem desmatamento de uma faixa de 30 quilômetros a 50 quilômetros ao longo das rodovias, por facilitar o acesso de madeireiros e grileiros.
Bastou o anúncio da intenção de asfaltar a estrada de chão aberta na década de 1970 para desencadear um processo intenso de grilagem e desmatamento, que chegou a bater recordes na região. Nomes de lugares como Novo Progresso e Castelo de Sonhos viraram sinônimos de devastação ambiental e conflitos agrários. Era o pior dos mundos: a destruição prevista com a pavimentação, mas sem o asfalto propriamente dito, que nunca chegava.
Na linha de frente de questionamento estavam associações de agricultores e ONGs socioambientais, como a Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Essas forças se reuniram num fórum regional que lutava não contra a pavimentação, que também vai beneficiar os pequenos proprietários, mas por um inédito planejamento participativo capaz de ordenar a ocupação do solo e brecar o caos característico das fronteiras agrícolas. Asfalto, sim, mas com zoneamento ecológico e desenvolvimento socioeconômico.
Já na administração da ministra Marina Silva, o governo federal encampou a organização de base e patrocinou o Plano BR-163 Sustentável. Participação e planejamento dignos do nome, no entanto, tomam tempo. Enquanto ele passava, a soja caía de preço no mercado internacional e, com ele, despencava o entusiasmo dos sojicultores com investimento em infra-estrutura (a BR-163 pavimentada facilitaria o transporte até Santarém, de onde a commodity seguiria em barcaças para Belém e daí para a Europa, com grande economia de custos). Em agosto de 2005, o consórcio privado que bancaria a obra desistiu de fazê-lo.
Foi um ano difícil na região. O assassinato da freira norte-americana Dorothy Stang, em fevereiro, tinha desencadeado uma série de medidas de preservação em preparo pelo governo federal. Entre elas, a criação de gigantescas unidades de conservação na chamada Terra do Meio e a interdição de outras grandes áreas a oeste da BR-163. A Operação Curupira desmantelou quadrilhas que fraudavam autorizações para derrubada de árvores. Em represália, madeireiros chegaram a fechar a estrada por vários dias.
As coisas agora parecem mais calmas. Existe um plano para a região e a disposição do governo para enfim asfaltar a Cuiabá-Santarém, com mobilização de batalhões de engenharia de construção do Exército e de PPPs (parcerias público-privadas). É bom ficar de olho, pois do sucesso desse experimento depende o futuro da noção de que estradas não são sinônimos de destruição para a Amazônia.
Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor dos livros paradidáticos"Amazônia, Terra com Futuro" e "Meio Ambiente e Sociedade" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (cienciaemdia.zip.net). E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
FSP, 11/06/2006, Mais, p. 9
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