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Deslocamentos internos causados por desastres aumentam no país

FSP, Cotidiano, p. B1 e B2
09 de Jun de 2018

Deslocamentos internos causados por desastres aumentam no país
No ano passado, 71 mil pessoas deixaram suas casas por esse motivo

Cilene Victor
Victoria Abel
SÃO PAULO
"É melhor eu morar em uma área de risco, assim como eu fiz, do que ir para debaixo da ponte com minhas filhas e não ter sido uma mãe guerreira para lutar e vencer." Alda Cristina Soares Costa, 37, estava firme até o momento em que falou sobre a construção de sua casa em uma área de alto risco de deslizamento, na Vila Areião, em São Bernardo do Campo, Grande SP.

O choro da chapista de padaria, mãe de duas meninas, traduz o medo e o trauma da remoção, do deslocamento interno provocado por desastres, cujas estatísticas superam as de migrações por conflitos violentos e guerras civis.

Em 2017, o Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC, na sigla em inglês), em Genebra, principal fonte de informação sobre o tema, registrou 30,6 milhões de novos deslocamentos internos em todo o mundo.

Isso significa dizer que, naquele ano, a cada segundo uma pessoa se tornava um deslocado interno, ou seja, obrigadas a abandonar suas casas, cidades ou vilarejos, mas continuaram dentro do território de seus países.

Desse total, 11,8 milhões são de deslocados por conflitos e violência e 18,8 milhões por desastres -número quase equivalente aos 21,4 milhões de habitantes dos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo, segundo o IBGE.

Ao final de 2017, o número acumulado de deslocados internos por conflitos era de 40 milhões. Já o total de deslocamentos forçados por desastres ainda é desconhecido.

No Brasil, esse número foi de 71 mil pessoas, em 2017, cerca de cinco vezes o registrado em 2016, segundo o IDMC.

Funcionária de uma padaria em São Bernardo do Campo (SP), Alda Cristina mora de aluguel e ocupou um terreno bem abaixo da sua casa quando soube que que corria risco de ser dispensada do trabalho, no início de 2018.

Sua história comoveu clientes da padaria, que doaram material de construção, e os vizinhos de Alda, em pouco tempo, levantaram a nova casa. O problema, que ela conhece, mas a necessidade a faz subestimar, é a localização do terreno em uma área classificada como de risco alto (R3) de deslizamento -o tipo de desastre com mais fatalidade.

Para Kátia Canil, 48, professora e pesquisadora do LabGris (Laboratório de Gestão de Riscos), da UFABC (Universidade Federal do ABC), nem toda ocupação em áreas R4 (risco muito alto) ou R3 (risco alto) demanda, obrigatoriamente, a remoção.

Obras de contenção podem ser feitas para controlar os riscos de deslizamento, por exemplo. Nesse caso específico, é a condição de vulnerabilidade que poderá indicar a remoção da moradia.

Kátia integra a equipe responsável pela atualização do mapeamento de áreas de riscos em São Bernardo do Campo e Franco da Rocha.

Segundo a geógrafa, um dos maiores desafios para reduzir os riscos é evitar a ocupação em terrenos de alta suscetibilidade a inundações e deslizamentos e a baixa aptidão geotécnica, além das áreas de preservação permanente, como matas ciliares, topos de morros e encostas.

Ao longo do desenvolvimento das cidades, que cresceram, na sua maioria, sem planejamento, as ocupações irregulares foram a última saída para milhões fugirem do aluguel.

Foi o que aconteceu com Edilene Maria Soares, 45, vizinha de Alda. Sua casa foi construída em área de risco."Eu sei que aqui é uma área de risco, mas foi onde eu consegui construir para escapar do aluguel", diz Edilene.

Questionada se tem medo de morar no local, principalmente no período de chuvas, ela diz que não. "No primeiro barulho que ouço, já fico atenta, caso precise correr para um local mais seguro."

Em Franco da Rocha, também na Grande São Paulo, a manicure e cabeleireira Silmara do Nascimento, 29, vive com o marido Leandro Siqueira, 33, repositor de supermercado, e os filhos, de 11 e 5 anos, no núcleo Luiz Coutinho de Abreu, um dos 207 setores de riscos, distribuídos em 31 áreas mapeadas na cidade. Em março de 2016, um deslizamento destruiu sua casa.

Por precaução, ela havia saído momentos antes e se protegido na casa da mãe. Logo após o desastre, Silmara, o marido e os filhos foram assistidos pelo Programa Aluguel Social e levados para um condomínio do Minha Casa Minha Vida, que contemplou 310 famílias de áreas de risco.

Silmara diz ter vivido um pesadelo ao sair da comunidade onde vivem seus pais e tios. Sua depressão se intensificou e tentou o suicídio. Mesmo com acompanhamento de assistentes sociais e de psicólogos da prefeitura, a cabeleireira preferiu voltar para a área de risco, onde diz viver sem medo de desastres e seus filhos não passam fome, como ela relata ter acontecido durante os dois meses em que viveu no residencial.

CONVIVER COM PERIGO DÁ SENSAÇÃO DE CONTROLE, DIZ PSICÓLOGA
Segundo a psicóloga e membro da Associação Brasileira de Redução de Riscos de Desastres, Daniela Lopes, o medo da remoção pode levar a subestimar os riscos, mas também há outras explicações. "Elas têm a sensação de controle do risco porque convivem com ele há anos. É como se a pessoa estivesse no comando, aquilo lhe é familiar."

Em casos como o de Silmara, a presença da família na mesma área intensifica esse sentimento e dificulta sua adaptação em outro lugar, ainda que mais seguro. "Para essas comunidades, pior do que viver sob o risco é perder as suas referências, os seus laços de vizinhança, a sua própria história."

Daniela, que já dirigiu o departamento de Prevenção e Preparação, da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, ligado ao Ministério da Integração Nacional, lembra de um caso emblemático, o do tremor de terra, em 2007, que atingiu a comunidade rural de Caraíbas, em Itacarambi, no norte de Minas Gerais.

Algumas famílias foram deslocadas para apartamentos do Minha Casa Minha Vida. Os costumes do meio rural, diz Daniela, dificultaram a adaptação na área urbana. "Devemos lembrar que o cenário dos riscos ou dos desastres já é de perdas. A pessoa já perdeu ou está prestes a perder algo. E as escolhas não são dela, não competem a ela. Ninguém quer viver em risco, mas as pessoas querem viver no lugar onde elas possam sentir um conforto afetivo."

Em M'Boi Mirim, extremo sul de São Paulo, a relação de pertencimento ao local ou a sensação de controle sobre o risco pode explicar o que levou algumas famílias a ocupar três vezes uma área de risco alto que já havia sido desocupada por determinação judicial.

Simone da Silva, geóloga da Defesa Civil da prefeitura regional de M'Boi, conta que na Chácara Santa Maria, em Três Marias I, uma das 51 áreas de risco do distrito, foi feito um mapeamento em 2003 depois que um deslizamento provocou a morte de uma criança.

A família não conseguiu retirar a criança, que não andava. A comoção da morte da garota e o drama do resgate, quando o carro do Corpo de Bombeiros tombou dentro do córrego local, pareciam ser suficientes para afastar por definitivo as famílias daquela área, mas não foi o que aconteceu.

Por volta de 2005, as famílias foram removidas e indenizadas por determinação judicial. Em alguns anos, a área já estava novamente ocupada. Entre 2010 e 2011, outra desocupação foi feita, também com indenização das famílias. "Em 2016, houve nova ocupação com casinhas extremamente vulneráveis, a maioria de madeira. E no início de 2017 teve outro deslizamento de grande porte, deslizou uma cunha de lixo, lá de cima, que passou por cima das casas, ferindo oito pessoas."

Simone diz que quando começaram a fazer o levantamento da documentação encontraram nomes de pessoas que já tinham sido indenizadas, mas que voltaram. "Fizemos diversas reuniões com a população e explicamos os riscos. Como já tinha tido um deslizamento em janeiro, todos estavam cientes do perigo e saíram pacificamente, sem grande comoção. Umas 300 famílias foram removidas em 2017."

O Coletivo JRRD (Jornalismo e Redução de Riscos de Desastres) é formado por profissionais e pesquisadores da área da comunicação.

O colete laranja usado pelos coordenadores e agentes de Defesa Civil sinaliza muitas mensagens para os moradores de áreas de riscos. Entre as mais temidas está a da remoção de famílias de locais classificadas como sendo de risco muito alto.

Não foi diferente quando a coordenadora de Defesa Civil de Franco da Rocha, Elaine Terron, 46, sua equipe e o diretor de habitação do município, Antonio Carlos, desceram uma das vielas do núcleo Luiz Coutinho Abreu.

Até chegar na casa de Silmara do Nascimento e de sua vizinha, duas das moradias mais preocupantes do local, o grupo foi observado com desconfiança por alguns moradores. Uma senhora chegou a perguntar se estava tudo bem ou se eles estavam ali para remover alguma família.

No local, Antonio Carlos mostra os entulhos das últimas demolições, um dos recursos para impedir que a área seja reocupada até que alguma intervenção do poder público ou da iniciativa privada possa ser feita no local. "Enquanto o entulho dificulta a reocupação, buscamos formas de intervenções permanentes no local, como reflorestamento por meio de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs)", diz.

Em São Paulo, instituições como IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), Instituto Geológico e Universidade Federal do ABC, mapeiam as áreas de risco. Para as equipes responsáveis, a principal evidência é a de que os riscos não são estáticos e por isso o monitoramento, a fiscalização e o diálogo são determinantes para tornar os Planos Municipais de Redução de Riscos mais efetivos, uma vez que é no município que o desastre acontece.

Para Luiz Antonio Neves Costa, 63, ex-coordenador da Defesa Civil de São Bernardo do Campo, uma boa gestão de risco se faz com conhecimento dos riscos no município, saber onde estão, os tipos e a classificação.

"Com essas informações, tomamos as medidas estruturais e não-estruturais para fazer um bom monitoramento para gestão de risco do município. A remoção é o último caso, por isso temos boa parte das moradias de áreas de risco em monitoramento, evitando retirar as famílias do meio onde elas vivem", afirma.

"O que procuramos garantir a essas populações é uma convivência segura dentro dos setores de riscos, mas, diante da identificação de uma situação mais grave, não temos como mantê-las no local, então ocorre a remoção", completa.

Em quatro municípios visitados pela Folha, os líderes comunitários são bastante presentes e atuam como uma extensão do trabalho das defesas civis, geralmente formadas por equipes reduzidas.

Em M'Boi Mirim, por exemplo, a população do distrito é estimada em 560 mil e a Defesa Civil local conta com seis funcionários. Em 2017, atenderam 451 ocorrências: 11 alagamentos e 15 deslizamentos.

Em Mauá, o pastor Paulo Ferreira dos Santos, 68, é uma referência. Atuante na sua comunidade, o Macuco, uma das 31 áreas de risco do município, Paulo Ferreira lembra do desastre de 2011, que resultou na morte de cinco vizinhos.

O caso de maior comoção foi o de um garoto de 11 anos que morreu soterrado com a mãe. "Geralmente as mortes por desastres acontecem à noite, quando as pessoas estão dormindo e não têm nem mesmo tempo de entender o que está acontecendo", diz. "O choro, a revolta, o medo e a tristeza das pessoas ainda estão na minha memória."

Para Ronaldo Melo, 54, outro líder comunitário de Mauá, os moradores de áreas de risco vivem um drama cotidiano, mas é como se essas pessoas não existissem, exceto, critica o líder, quando ocorre um desastre com mortes.

Em todo o mundo, estudos apontam os desastres como violação dos direitos humanos. Segundo Silvia Saito, 38, pesquisadora do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Riscos de Desastres Naturais), isso acontece porque no pós-desastre as vítimas continuam vivenciando outra tragédia.

A perda dos documentos pessoais, as condições precárias em abrigos temporários, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde são exemplos que as fragilizam. Em outras situações, as vítimas ainda se deparam com violência, discriminação e retirada forçada de suas moradias."

BRASIL TEVE MÉDIA DE 2.400 DESASTRES NOS ÚLTIMOS CINCO ANOS
Nos últimos cinco anos, 2013 a 2017, a Sedec (Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil) reconheceu 12.025 desastres no Brasil. Uma média de 2.400 desastres por ano associados a deslizamento, alagamento, à inundação e seca.

O número pode ser muito maior, uma vez que esse total corresponde só aos desastres que demandaram decretação de situação de anormalidade, dividida entre situação de emergência ou estado de calamidade pública.

Levantamento de 2013, do IBGE, revelou que de 2008 a 2012 as enchentes atingiram 28% dos municípios brasileiros (1.543), com mais de 8.942 ocorrências. As enxurradas afetaram 28% (1.574) e os deslizamentos 16%, (895 cidades). Essas estatísticas se somam às de um estudo feito pelo Banco Mundial e a Universidade Federal de Santa Catarina sobre os impactos econômicos dos desastres no país.

Segundo o relatório, de 1995 a 2014, o país perdeu R$ 182,8 bilhões com desastres -R$ 9 bilhões anuais. O período contempla grandes desastres dos últimos anos, como o deslizamento na região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, com 918 mortes, as enchentes em Alagoas e Pernambuco, em 2010, com 51 mortes, e as enchentes e os deslizamentos no Vale do Itajaí (SC), que completa dez anos e teve 135 mortes e 1,5 milhão de atingidos.

Alguns esforços tentam alavancar a cultura da prevenção. Entre eles estão avanços como é o caso do trabalho do Cemaden, criado em 2011, ainda no calor da comoção do desastre da região serrana do Rio.

Responsável pelos alertas de riscos, o Cemaden monitora 958 municípios das cinco regiões do país, incluindo três dos quatro visitados pela Folha: São Paulo, Mauá e São Bernardo do Campo.

O monitoramento contempla os 821 elencados como prioritários pelo Plano Nacional de Gestão de Riscos e Respostas a Desastres, instituído em 2012. Esses 821 respondem por 94% das mortes e 88% do total de desalojados e desabrigados por desastres registrados nos últimos anos.

Segundo Marcelo Enrique Seluchi, 55, coordenador-geral de Operações e Modelagens, o Cemaden tem uma tarefa difícil que é emitir os alertas com a maior antecedência e precisão possível.

Entre as limitações estão as científicas, como a dificuldade em prever "com suficiente precisão" quantidade, horário e local da chuva, e a quantidade de equipamentos que compõem a rede de observação, como radares e pluviômetros automáticos.

Sobre o número elevado de desastres no país, Seluchi tem três explicações. Segundo ele, cada vez mais populações estão ocupando áreas suscetíveis a desastres, o que e as políticas públicas não têm conseguem evitar.

A segunda é a exposição midiática dos desastres, que agora não acontecem mais em silêncio. A terceira razão resultaria de um cenário de mudanças climáticas. "Já temos de começar a nos adaptar. As chuvas estão se tornando mais violentas, especialmente em algumas áreas, como na Região Metropolitana de São Paulo, onde, segundo estudos, elas estão mais violentas do que 50 anos atrás. Nesse cenário, é muito difícil reduzir o número de ocorrências".

Para o desenvolvimento da pesquisa nessa área e, consequentemente, maior contribuição da comunidade científica para reduzir o número de desastres, Silvia Saito destaca alguns desafios, como a dificuldade de acesso a bancos de dados de ocorrência de desastres no país.

"Saber o que ocorreu no passado nos ajuda a pensar no futuro. Acredito que a temática dos desastres abre um campo muito grande de pesquisa, com caráter interdisciplinar, com a interação de diversas áreas do conhecimento, o que pode melhorar a ajuda da ciência àqueles que vivem esse drama."

Cilene Victor e Victoria Abel fazem parte do Coletivo JRRD (Jornalismo e Redução de Riscos de Desastres), formado por profissionais e pesquisadores da área de comunicação

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/06/deslocamentos-internos-…
FSP, 09/06/2018, Cotidiano, p. B1 e B2.

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